Oriontte
Terapia
- E então, como se sente hoje?
A voz chegou abafada aos seus ouvidos, talvez pela acústica da sala rodeada por paredes revestidas de madeira, onde extensas prateleiras sustentavam uma série de livros tão pesados quanto o conhecimento que carregavam em suas páginas. Tomos e mais tomos antigos se ladeavam, contendo em suas capas escuras os nomes de antigos autores consagrados, grafados em letras douradas cuja tinta começava a desaparecer aqui e ali sob o efeito da inexorável passagem do tempo.
O lugar estava escuro, em atendimento a um pedido que ele próprio fizera. Não gostava muito da luz forte que vinha de fora. Sua pele clara e seus olhos escuros se incomodavam um pouco com aquele excesso de luminosidade e calor. Não a ponto de machuca-lo, mas a sensação incômoda que causavam o aborrecia, e sua mente buscava esquivar-se a todo momento de qualquer forma de aborrecimento que pudesse ter, o que era uma das razões de estar ali.
Seus olhos negros e profundos, ao mesmo tempo frios e inexpressivos divisaram o restante do ambiente. Os quadros nas paredes amadeiradas, portando diplomas e certificados que denunciavam a capacidade e ao mesmo tempo o egocentrismo da pessoa que estava em sua companhia naquela sala. A mesa escura de carvalho, tão antiga quanto os livros que jaziam na estante, há muito intocados, servindo apenas de decoração para enaltecer a vaidade da dona daquele lugar.
Não havia plantas ali. Nenhum indicativo de vida que pudesse contrastar com a penumbra que o circundava enquanto as pesadas cortinas escuras cerravam a grande janela que dava para a rua. Sem luz, sem cores, sem vida. Aquilo deveria agradá-lo, dado seu gosto e aparência, mas não o deixavam de um todo satisfeito. Não era admirador da luz do sol ou do calor que havia naquele lugar, mas nem por isso deixava de admirar as outras formas de vida e as demais sensações que aquele mundo lhe proporcionava.
- Ahn, Ahaaaan! – O pigarro ecoou pela sala, talvez um pouco forte demais para uma reação natural a algum estímulo do corpo humano, o que lhe mostrou que o sinal fora proposital, e acabou dando-se conta de que não respondera a pergunta que a mulher sentada próxima ao divã onde estava deitado havia feito.
- Ah... sim. Perdão. Estava divagando um pouco, por isso não respondi imediatamente. Peço desculpas pela falta de modos.
A voz fria, pacata e polida era quase automática, como se tivesse saído de uma máquina, o que não passou despercebido à mulher que sentada observava atentamente o paciente, munida de uma caneta e um pequeno bloco de notas nas mãos tranquilas. Apesar de já ter se acostumado à aparência do outro, assim como à dos conterrâneos dele, a frieza daquela voz ainda a perturbava um pouco, assim como a inexpressividade daquela face e dos imensos olhos negros que pareciam não carregar vida alguma.
- Como está hoje? – Ela repetiu a pergunta, como se ignorasse o pedido de desculpas que ele havia oferecido. – Como se sente?
- Superior, como de costume. – Respondeu, com uma tranquilidade perturbadora. – Mas acho que isso não é novidade alguma para você.
- O fato de ser superior, ou de se julgar superior? – Perguntou a mulher, com um tom de ironia na voz. Por mais que já conhecesse a frieza dele, assim como o autodeclarado desapego pelas emoções humanas, havia descoberto que seu paciente tinha uma queda pelo sarcasmo, assim como uma espécie de sadismo ponderado.
- Ambas as coisas. Todos vocês sabem que nós somos superiores, o que torna redundante eu dizer que me sinta dessa forma.
- Então por que faz questão de repetir a mesma coisa sempre que chega aqui? – Perguntou, achando que havia encontrado uma brecha nas defesas dele.
- Sua espécie demora um pouco a assimilar as coisas, por isso me sinto na obrigação de repetir. Além disso, seu povo aprecia a rotina. Em sua maioria vocês a desejam, e se sentem seguros com ela. Por isso temem tanto o desconhecido. Por que ele foge da mesmice à qual estão acostumados, então, achei que seria confortável para você se eu criasse algo que representasse essa repetição que tanto apreciam.
- Entendo. – Disse, batendo levemente com o lápis no bloco de notas enquanto olhava para a parte da enorme cabeça branca e desprovida de cabelos que era visível daquele ângulo, em que o divã ficava de costas para ela.
Embora a resposta dele tivesse sido bem articulada achou que já conhecia bem o paciente para desconfiar de que fora por demais bem construída, o que mostrava que não havia tanta sinceridade ali quando o ser que estava deitado esperava que ela acreditasse que existia.
- Algo mais? Aconteceu alguma coisa nova com relação ao que me disse na última sessão? Ou não há nenhuma novidade e você continua na mesma... rotina?
O comentário veio mais carregado de ironia do que ela gostaria que tivesse saído, e achou que seria difícil quem um ser tão frio e com tanta capacidade de ler emoções, como ele o era, deixasse escapar com facilidade aquela percepção. Observou por alguns segundos à espera de uma resposta, e quando começou a achar que não receberia nenhuma, o paciente começou a falar.
- Há sempre algo novo a aprender sobre vocês. – Disse ele, sem preocupar-se em responder a provocação. – O que pode parecer paradoxal, já que são tão avessos às mudanças. Não querem fugir da rotina, mas suas reações muitas vezes são das mais inesperadas, o que não condiz com quem preza tanto pela mesmice. Talvez por isso sejam uma espécie tão interessante e ao mesmo tempo tão enfadonha. Repetem os mesmos comportamentos, mas quando são retirados da zona de conforto podem surpreender até mesmo a nós, que passamos séculos colhendo informações sem que percebessem nossa presença.
- Interessante. E o que foi que presenciou, que tenha sido capaz de chamar sua atenção a um nível tão... profundo?
- Aconteceu ontem, durante minha caminhada noturna. Você sabe, alguns de nós, como eu, não apreciamos muito a luz do sol de vocês. É um pouco forte demais, embora outros da nossa espécie gostem de sentir na pele frágil esse calor um pouco excessivo. Em meu sistema solar, a estrela principal já está em vias de se tornar uma anã-branca, o que torna a luminosidade bem menor.
- O que foi um dos motivos para saírem pelo espaço em busca de novos mundos para colonizar.
- Acho colonizar uma palavra muito forte, Doutora. – Ele retrucou, com a mesma frieza que vinha mantendo na voz. – Nosso sol vai morrer em alguns milhares de anos, o que nos obrigou a buscar a sobrevivência de nossa espécie. Nada mais natural. No entanto, não impusemos nossa vontade sobre a de vocês, o que poderia ser feito, já que tecnologicamente somos bem mais avançados.
“Passamos centenas de anos analisando as condições desse planeta e a linha evolutiva da raça humana, esperando que chegasse o dia em que estariam maduros o bastante para nos receberem e nos aceitarem. Não gostamos de conflito, e certamente não apreciamos violência, por isso batemos à porta de vocês antes de entrarmos.”
- Depois de espiar um bom tempo por cima do muro. – Ela provocou.
- Quando vai analisar um paciente já chega perguntando tudo sobre a intimidade dele, ou vai ganhando confiança aos poucos? – Perguntou o alienígena, e não precisou virar-se do local onde estava deitado para ver que ela ficara encurralada com o questionamento. – Precisávamos ver onde estávamos pisando, para depois ganhar a confiança de vocês. E quando julgamos que estavam relativamente prontos para não se desesperarem com nossa presença, nos apresentamos ao mundo. Mas em momento algum impusemos nada, correto?
- E se não tivéssemos aceitado a presença de vocês? Ou dividir nosso planeta com sua espécie? Teriam sido tão educados assim?
- Não posso falar por nossos comandantes, mas seguindo o raciocínio da nossa espécie, teríamos partido. Há muito tempo estamos esquadrinhando o universo, doutora, e a Terra não foi o único planeta que encontramos. Há outros, e desabitados. Nenhum com condições tão boas quanto esse, mas ainda assim são habitáveis e nossa espécie poderia viver bem em cada um deles. Por isso, se tivéssemos recebido um não, buscaríamos as outras opções. Acho que esse é mais um aspecto que nos diferencia da raça de vocês.
- Poderia explicar? – Perguntou, ajustando os óculos e olhando para ele em tom de desafio. Ficava irritada sempre que o alienígena começava a fazer comparações com a espécie humana, principalmente aquelas em que a humanidade ficava em posição de desvantagem com relação aos visitantes.
- Estudamos a história de vocês durante esse tempo. Podemos dizer até mesmo que acompanhamos uma parte dela, já que estamos observando há séculos, e o que vimos, infelizmente em muitos momentos, foi uma falta de tolerância entre os membros de sua própria espécie. Você falou há pouco em colonização, então comecemos por ela. No continente africano, por exemplo. Quando os europeus chegaram lá e viram toda aquela quantidade de terra certamente ficaram impressionados e desejosos de explorá-la. Mas já havia povos ali antes que eles chegassem, e o que eles fizeram quando perceberam que eram tecnologicamente mais evoluídos que aqueles habitantes?
“Dominaram pela força. Expulsaram os que não se opuseram, e mataram aqueles que tentaram resistir. Chegaram até mesmo a encontrar nisso uma oportunidade de negócio, vendendo como mercadorias gente da própria espécie humana, como se fossem objetos que pudessem ser usados e descartados. Durante muito tempo isso mexeu com nossa curiosidade, já que em milhões de anos de existência nosso povo nunca fez nada parecido, mesmo quando éramos bem menos evoluídos do que somos hoje.
“O mesmo se deu nas Américas. Quando os descobridores chegaram no continente americano, tanto no norte como no sul, fizeram coisa semelhante. Expulsaram e massacraram os povos menos desenvolvidos que aqui viviam, não aceitando partilhar algo que sequer era deles. Agora lhe pergunto, se a minha espécie tivesse agido da mesma forma que a sua, estaríamos tendo essa conversa pacífica?”
O silêncio da terapeuta respondeu mais do que qualquer palavra que pudesse pronunciar, e ela bateu insistentemente, mais do que já estava fazendo, em seu pequeno bloco de notas. Se havia algo que a deixava mais incomodada do que as comparações que o alienígena fazia entre suas espécies era quando ele estava certo quanto ao que dizia.
- O senhor falava de algo que havia acontecido e que o tinha deixado incomodado. Pode me dizer o que foi? – Perguntou ela, voltando ao assunto principal e encontrando nele a deixa de que precisava para se esquivar da saia justa na qual o alienígena a tinha colocado.
- Doutora, a senhora pode me chamar de Zorth. Foi o apelido que recebi da garotinha que é filha de um dos oficiais do exército que nos recebeu. Como meu nome verdadeiro é muito grande na língua de vocês, acredito que esse é mais propício para ser pronunciado.
- Tem algum significado?
- Significa “olá”, em meu idioma. Quando falei isso para um dos meus conterrâneos, a pequena ouviu, e disse que me chamaria assim.
- Você prefere ser chamado assim?
- Não tenho preferência, mas como prezam pela identificação, achei que seria mais confortável que soubesse disso para falar comigo.
- Tudo bem. – Disse ela, ligeiramente aborrecida com aquela nova comparação. – Pode me dizer o que aconteceu de tão interessante... Zorth?
- Como eu ia dizendo, a situação ocorreu quando eu estava fazendo minha caminhada diária, observando vocês e ao mesmo tempo sendo observado atentamente pelas pessoas da sua raça, já que sua espécie ainda não se habituou completamente à presença da minha, e em dado momento, presenciei quando dois veículos se aproximaram, havendo em cada um deles um homem gritando com o outro.
“Aparentemente um deles havia feito uma manobra contrária às normas a que estão habituados, e uma discussão ferrenha teve início. Ainda hoje fico impressionado com a capacidade de vocês de bradarem palavras ofensivas quando os ânimos estão acirrados, característica que, curiosamente, apenas piorou com o avanço da tecnologia. A evolução pela qual passaram deveria apontar para o caminho inverso, mas a cada dia que passa os vemos mais impacientes e intolerantes uns com os outros do que víamos cem anos atrás.
“Mas estou divagando novamente. Voltando ao assunto... os dois motoristas estavam gritando um com o outro tão ferozmente que conseguiram desviar a atenção dos demais terráqueos, que estava voltada para mim, em direção a eles, o que pode-se dizer que é algo digno de nota. Por pouco não desceram de seus veículos para chegarem às vias de fato.
“O semáforo então abriu, e um deles partiu rapidamente, bradando mais uma série de impropérios contra o outro, que respondeu no mesmo nível e preparou-se para disparar em seu rastro a fim de continuar aquela discussão tola. Mas logo que o fez, freou imediatamente, porque mais à frente uma idosa começava a caminhar pela faixa de pedestres para alcançar o outro lado da rua.
“Pelas regras de trânsito de vocês, o que aquela senhora fez estava errado, já que o semáforo já havia ficado verde, o que retira a preferência do pedestre. Seguindo uma linha de raciocínio lógica, se aquele motorista tinha se irritado tanto com a atitude de outro, certamente faria o mesmo com a pobre idosa, e imediatamente me pus a analisar, esperando os gritos e provavelmente os xingamentos que ele lançaria àquela mulher.
“Mas a atitude dele foi completamente inversa. O homem parou o veículo, sinalizou para avisar aos outros que estavam atrás, e sem importar-se com as críticas que recebia dos motoristas que tinham pressa em seguir seus caminhos desceu do carro e gentil e pacientemente ajudou a idosa a chegar ao outro lado da rua, parecendo, naquele momento, uma pessoa completamente diferente da que instantes antes estivera a ponto de agredir o outro terráqueo com o qual discutira. São atitudes como essa que ainda fazem com que alguns da nossa espécie fiquem tão impressionados com a raça humana.”
- Ele agiu diferente porque a mulher era uma idosa. Está em uma situação de mais fragilidade em relação a algumas outras pessoas, como o outro motorista, por exemplo. Não fez nada mais do que agir de acordo com o que a boa moral determina.
- Discordo. – Retorquiu Zorth, com a mesma voz impassível de antes, como se o que estava dizendo fosse a coisa mais natural do mundo.
- Discorda da boa moral?
- Discordo que ele tenha agido conforme a moral manda. Se o tivesse feito não teria dito aquelas palavras tão fortes e agressivas ao outro motorista, chegando mesmo a arrancar com o carro como se quisesse persegui-lo quando o sinal abriu, coisa que só não fez porque a senhora de que falei começou a atravessar a rua, impedindo-o de seguir adiante.
”O conceito da moral indica que ela é um conjunto de regras e valores que definem o que é certo ou o que é errado numa sociedade, e o que se estabelece como correto é que todas as pessoas, independente de quem sejam, devem ser tratadas com respeito e cordialidade. Nesse caso, o motorista agiu parcialmente da forma correta, mas não na integralidade.
“Isso é mais um demonstrativo da dualidade que rege o comportamento de vocês. Quando veem alguém numa posição de desvantagem, muitos dos humanos se revoltam, se compadecem, e não medem esforços para ajudar, mas com outras pessoas agem de forma grosseira, agressiva, e podem chegar ao ponto de partir para a violência física se forem tomados pelo descontrole, o que acontece em grande parte dos casos.
- Não tratam de forma diferente os de sua raça? – Perguntou a terapeuta. – Os mais velhos, por exemplo. Supondo que na sua espécie passem pelo mesmo desgaste e fragilidade que nós passamos, vocês não lhes dão prioridade?
- Sim, nós damos, mas não é disso que estou falando. O que quero dizer é que todos deveriam tratar-se com o mesmo respeito. Limitações físicas são inevitáveis. Até mesmo as estrelas envelhecem e morrem, o que também acontece com os da nossa espécie, demandando cuidados maiores daqueles que os rodeiam. Mas em nossa raça, por exemplo, havendo ou não fragilidade, pautamos nossas ações pelo completo respeito de um para com o outro. Coisa que vocês não fazem. Talvez seja esse o motivo de promoverem tantos conflitos e disputas. Porque não respeitam um ao outro.
- A sua espécie não discute entre si? Não brigam? Não se irritam? São carentes de emoções?
- Temos emoções, e se quiser incluir a raiva como uma delas, pode fazê-lo, mas com o tempo aprendemos a pautar nossas condutas pelo controle destes sentimentos, e com o passar das eras nos tornamos senhores de nossas ações. Se por acaso um ímpeto surgir, o que é natural, saberemos mantê-lo sob controle, e é por isso que não discutimos, brigamos ou nos irritamos.
- Alguns de nós acham que segurar a raiva pode ser maléfico para o corpo ou para a mente.
- Porque são imediatistas. Preferem justificar uma ação violenta com os mais diversos argumentos do que buscarem se preparar para evitar esse tipo de ação. Vocês são uma espécie jovem, mas ainda assim já tiveram tempo para evoluir o bastante a ponto de entender que a forma como agem está errada. É como se fizessem questão de fugir da racionalidade que possuem, o que é mais um fator estranho para nós.
- Está dizendo que somos irracionais? – Perguntou a terapeuta, um tanto insatisfeita.
- Ao fugirem de sua racionalidade se tornam tão irracionais quanto os outros animais. – Disse Zorth, com a calma de quem estava citando os itens de uma lista de compras. – Esse é mais um dos mistérios de sua espécie que mesmo depois de séculos de observação não conseguimos desvendar. E antes que fique mais ofendida do que o tom de sua voz indicou que havia ficado, permita-me explicar. Mas para isso, primeiro devo lhe fazer algumas perguntas. Diga-me, quando uma criança encosta a mão no fogo e a queima, ela voltará a fazê-lo sabendo do resultado daquela conduta?
- Evidente que não. Ela assimilará o que aprendeu com a experiência, e a informação ficará gravada em sua memória para, da próxima vez, não voltar a fazer aquilo.
- Perfeito. Próximo exemplo. Você possui algum animal de estimação, doutora?
- Sim, um cachorro. Mas não sei o que isso tem a ver com o assunto que estamos tratando aqui.
- Tenha um pouco de paciência que logo chegarei ao ponto de convergência entre os temas. Agora me diga... se o seu cachorro eventualmente explorar algum objeto que acabe por cair de uma estante e o atinja, machucando-o, ainda que levemente, ele voltará a repetir o gesto?
- Provavelmente não. Alguns podem até repetir, mas como os cachorros aprendem rápido, dificilmente faria a mesma coisa duas vezes sabendo que poderia se machucar com aquilo.
- Exatamente. Por mais limitada que seja a mente destes animais em relação à dos humanos, a informação ficará gravada na memória, impedindo-os de agir da mesma forma. Perceba que até um animal irracional é capaz de aprender rapidamente com suas experiências negativas, mesmo com as limitações que sua mente possui.
- Continuo sem entender o que quer dizer com tudo isso.
- Responderei com outra pergunta. Por que, mesmo depois de milênios se digladiando e trucidando um ao outro em guerras e batalhas sem fim, a raça humana continua insistindo em se matar nestes conflitos? Por que, mesmo depois das atrocidades cometidas durante as duas grandes guerras, vocês continuam a batalhar ao menor sinal de ofensa, vestindo as cores de algo que sequer vida própria possui, como é o caso das bandeiras de seus países, para se mutilarem e matarem nesses combates atrozes que acabam travando?
“Milênios de sangue derramado em inúmeras guerras travadas parecem não ter sido o bastante para que vocês aprendessem que jamais deveriam repetir esse comportamento. Então me diga, quem é mais irracional, o cachorro que rapidamente aprende com o erro perpetrado e não volta a cometê-lo, ou a raça humana que insiste em consumar os mesmos equívocos, sabendo desde o início que o resultado será sempre o mesmo?”
O silêncio se instalou entre eles assim que a pergunta foi feita, e a terapeuta se pôs a olhar para o contorno acinzentado da parte daquela enorme cabeça que lhe era visível daquele ângulo, pensando em tudo o que o alienígena dissera, mais intrigada do que incomodada com aquele novo defeito que o visitante havia encontrado na já enorme lista que possuía das contradições e problemas que regiam a vida dos humanos.
- Suponho que seu silêncio seja uma concordância. – Disse ele, sem qualquer tom de provocação na voz.
- Tenho que admitir que está certo em alguns pontos, mas discutir os defeitos da espécie humana não é nosso objetivo nessas sessões, se bem lembra. – Contornou ela, sem querer se aprofundar naquele assunto.
- Nosso objetivo é exatamente esse, doutora. Ou esqueceu que vim procura-la para debater sobre as peculiaridades da raça humana, e de como elas estavam deixando alguns de nós, incluindo a mim mesmo, intrigados? E quando falo de peculiaridades, nelas estão inclusos o que você mesma definiu como defeitos. Ou não?
O lápis voltou a bater insistentemente contra o bloco de notas, denunciando o incômodo da terapeuta ao ver-se novamente encostada contra a parede, sem uma resposta à altura para dar ao alienígena. Quando fora procurada por ele ficara empolgada, já que o contato com aquela nova espécie ainda não era tão frequente, embora já houvesse uma aceitação quase que completa que os humanos tiveram algum tempo depois do choque inicial da descoberta de que a humanidade não estava sozinha na vastidão do cosmos.
Estava certa de que aquela seria uma excelente inclusão para o seu já farto currículo, antecipando o orgulho que sentiria ao anunciar que fora procurada por um daqueles alienígenas para desvendar os segredos das mentes deles, o que poderia abrir as portas para a chegada de mais membros daquela espécie buscando ajuda, e pensando naquilo ela já se punha a imaginar os livros que escreveria sobre a psique dos extraterrestres, as palestras, os congressos, os prêmios, e seu nome estampado na mais ampla variedade de artigos na comunidade científica.
Mas logo que o contato tive início ela foi sendo colocada contra a parede pelas observações do alienígena, começando assim a rever sua impressão inicial, e se dependesse dela, já teria dado alta àquele “paciente” e se livrado de seus incômodos comentários.
Sempre fora a melhor em tudo o que tinha feito, construindo, à medida que as conquistas se sucediam, uma reputação impecável, além de uma imagem de si mesma que possuía aquela mesma natureza. Mas a partir do momento em que se viu desafiada pelas observações do extraterrestre, que em vários momentos contestavam, ainda que sem intenção, aquela impressão de perfeição que tinha dela própria, o contato começou a se tornar por demais incômodo, e apesar de aquele ser apenas o segundo encontro que tinham a terapeuta já se sentia como se estivesse carregando aquele peso há anos.
- Tudo bem. – Disse secamente, depois de passar um tempo esforçando-se para controlar o ímpeto de colocar aquele paciente para fora de seu consultório. – Então me diga, por gentileza, o que ainda não falou desde que chegou. Como essas coisas têm lhe afetado?
- Sinto pela demora. Estava apenas fazendo uma introdução sobre o tema. – Respondeu Zorth, com a mesma naturalidade que tanto a incomodava. – Quanto às questões que essas peculiaridades de vocês têm causado a mim e a alguns dos meus pares, o que posso dizer é que diversamente da maioria dos humanos, o desconhecido não nos amedronta. Pelo contrário, ele nos fascina, e nossa espécie sempre buscou explicações plausíveis para tudo o que havia encontrado até então.
“Mas no caso da mente humana, apesar de já estarmos há séculos procurando algo que possa nos explicar porque agem assim, ainda não encontramos nada, e isso tem nos incomodado consideravelmente.”
- Então nossas mentes são um desafio para vocês. Mesmo sendo tão avançados. – Falou ela, com um discreto tom de provocação que se foi percebido pelo alienígena, este não deu qualquer sinal de que o tinha feito. Quanto à terapeuta, sentia naquela confissão uma satisfação pessoal, já que era a primeira vez que o extraterrestre admitia que não se sentia acima da raça humana, mas que ela se mostrava como um desafio para o qual não tinham resposta, chegando ao ponto de deixar aqueles seres frios e quase desprovidos de emoções com um sentimento bastante inerente à humanidade. A impaciência.
- A resposta é sim. – Disse Zorth. – Temos observado, analisado, e até mesmo exames físicos e um pouco mais invasivos nós fizemos...
- Abduzindo pessoas. – Interrompeu a terapeuta, em tom de reprovação.
- Sim. Foi uma necessidade científica, e embora nunca tenhamos machucado nenhum de vocês, até hoje nos desculpamos por essas ações... invasivas, se me permite o termo.
- Eu diria que é muito leve para o tamanho da repercussão destes atos. – Retorquiu ela, com impaciência. – Mas não estou aqui para julgar, e sim para investigar o que se passa em sua cabeça. Por favor, continue.
- Como eu vinha dizendo... – Continuou ele, sem dar sinais de incômodo com o comentário reprovador que ela fizera. – Observamos e analisamos há muito tempo, mas continuamos sem compreender porque agem assim, e quanto mais permanecemos aqui, mais isso nos afeta.
- Pensei que tivessem controle total sobre seus sentimentos.
- Também pensávamos dessa forma. – Respondeu Zorth, sem apresentar qualquer traço de incerteza ou aborrecimento ao reconhecer aquela fragilidade em sua espécie. – Mas o tempo que passamos em contato com vocês mostrou que ainda temos muito a aprender. Há eras não nos deparávamos com um desafio como esse, que é a ausência de certeza ou precisão quanto ao comportamento e à forma como suas mentes funcionam, e agora que estamos diante de algo desse tipo, percebemos que havíamos nos acostumado a êxitos constantes, o que nos retirou a possibilidade de nos preparar para os entreveros que surgissem no caminho.
A terapeuta sorriu por dentro. Pela segunda vez naquela sessão o alienígena estava reconhecendo uma fragilidade de sua espécie, e aquela era uma que tinha ligação direta com os humanos. Ao que parecia, a humanidade não era tão inferior quanto o extraterrestre a fizera pensar que fosse, representando um desafio tão grande para uma raça tão evoluída quanto era a daqueles visitantes.
- E o que sente exatamente? Como possuem o controle de suas emoções, desconfio que saiba descrevê-las. – A terapeuta não conseguiu conter o ânimo crescente que havia em sua voz. A admissão de fragilidade somada à possibilidade de explorar o campo nebuloso que era a psique daquela espécie havia reacendido nela a empolgação que aquele desafio lhe trouxera no início, e agora já não ansiava tanto por livrar-se daquele paciente.
- Pela lógica das descrições que os antigos nos deixaram podemos identifica-las, embora essa seja a primeira vez que as estamos experimentando.
- E pode descrevê-las?
- Acho que frustração é uma delas. Um pouco de impaciência. Às vezes, uma leve dose de revolta. Como disse antes, aprendemos a controlar essas emoções, o que não nos impede de senti-las.
- E qual é o problema então? Sabe que pode senti-las, e que também pode controla-las, então por que está tão incomodado com isso?
- A incidência com que tais sentimentos têm aparecido tem chamado nossa atenção. Não sei se ficamos tanto tempo inertes em algumas de nossas emoções que ao experimentá-las novamente nos abalamos, ou se o efeito que vocês causam em nós aumenta exponencialmente a força desses sentimentos. Talvez seja ambas as coisas.
- Por que não começa falando das atitudes que a humanidade toma e que mexe tanto com vocês? – O lápis havia parado de bater no bloco, mostrando que a impaciência da terapeuta havia desaparecido e dado lugar uma vez mais àquela curiosidade científica que costumeiramente guiava seus passos e suas atitudes. – Além daquelas que já mencionou, claro.
- A primeira que me vem à mente, e talvez a mais absurda de todas elas, até mesmo por um conceito científico, é a forma como diferenciam negativamente uns aos outros apenas pela tonalidade da pele, ou algumas características étnicas que não possuem relevância alguma. Do ponto de vista científico, com o qual já deveriam ter se acostumado já que passaram por uma evolução considerável nos últimos séculos, todos os humanos são idênticos.
“A disposição dos seus órgãos é a mesma. O sangue tem os mesmos elementos, e todas as suas ações conscientes e inconscientes, além das reações químicas, são dominadas pelo cérebro, que não possui qualquer diferença entre um e outro indivíduo da mesma espécie. Então, nos causa verdadeiro espanto o modo como muitos de vocês se julgam superiores em relação aos demais com base em um critério tão pífio.
“Há pessoas que se atribuem alguma superioridade até mesmo por terem nascido em um determinado espaço geográfico, o que em termos científicos em nada influencia ou contribui para que exista alguma diferenciação. O que me remete, aliás, ao outro ponto de incômodo cuja existência constatamos. O apego territorial que vocês sentem, e ao mesmo tempo o desprezo pelo próprio território em que vivem.”
- Pode ser mais específico? – Perguntou a terapeuta, confusa com relação àquele apontamento.
- Decerto que sim, e usarei meu lar como referência para fazê-lo. Nosso planeta é um pouco menor que o seu, mas ainda temos tantos recursos naturais quanto esse possui. Não fosse o fato da morte inevitável do nosso sol, o que acarretará também a morte do nosso lar, jamais o teríamos deixado, e em todos os milênios em que estivemos ali soubemos tirar nosso sustento do chão em que vivíamos, mas tendo o cuidado de repor e de respeitar os períodos de recuperação de que a natureza precisava.
“Também soubemos usar o espaço que nosso planeta nos dava, comportando todo o nosso povo naquele território sem que tivéssemos que passar por conflitos envolvendo a posse de terras ou de extensões territoriais. Nunca passamos por esse tipo de disputa. Também não criamos distinções ou bandeiras com o passar das eras.
“Sim, na aurora de nosso povo, quando ainda não éramos tão desenvolvidos, alguns clãs se espalharam pelo mundo, criando suas próprias cores e tradições. Mas nunca se distanciaram uns dos outros, e conforme as necessidades de ajuda mútua surgiram, e à medida que foram vendo os benefícios que aquela união proporcionava, as cores e bandeiras foram sendo eliminadas, criando assim a junção de um só povo que perdura até os dias atuais.
“Mas o mesmo não pode ser dito sobre vocês. Primeiro, não apenas criaram, como fortaleceram essa divisão territorial e limitação dos povos a um único espaço ao qual batizaram de nações. Depois, fizeram uso da justificativa de defesa e preservação dos interesses desses núcleos desprovidos de vida e consciência, que são as chamadas pátrias mãe, que defendem com tanto afinco a ponto de matarem e morrerem por elas.
“No entanto, de uma forma completamente contraditória, atacam vocês mesmos o próprio território que dizem proteger, desmatando, poluindo, destruindo, esgotando tudo o que a natureza fornece ali, a ponto de depois usarem a falta de recursos como justificativa para atacar outros povos. Pode haver contradição maior? Brigam por algo que dizem proteger quando sentem uma ameaça rondando aquele lugar, ao mesmo tempo em que vocês mesmos atacam e destroem aquele espaço sem medir as consequências dos seus atos.
“E o que é pior, continuam a fazê-lo, mesmo depois de terem recebido todas as lições e exemplos do quão prejudicial é esse tipo de comportamento. Há um ditado em seu mundo com o qual concordo, e acho bastante sábio. ‘Quem não aprende com a história está fadado a repeti-la’. Mas vocês não aprenderam com a história, mesmo ela estando ali, visível, à mostra, escancarando todos os seus erros do passado e mostrando os efeitos destruidores que as ações que insistem em repetir podem causar no futuro. E ainda assim vocês as repetem.
“Como entender a mente de um povo que conquistou o átomo, que aprendeu sobre as estrelas e que em pouco mais de um século avançou a ponto de criar engenhos espantosos, mas que mesmo assim não só tem deixado de evoluir nos pontos cruciais, como também tem regredido em todos eles? É essa contradição da mente humana que nos confunde.
“Uma raça que busca a excelência ao mesmo tempo em que insiste em chafurdar na lama da violência, da destruição e da falta de respeito com a própria população e com o planeta em que vivem. Existem quase sete bilhões de humanos nesse mundo, mas até hoje não aprenderam a pensar uns nos outros como um só povo. Pensam apenas em si mesmos, vendo os demais muitas vezes como inimigos, dos quais se aproximam apenas quando há algum interesse envolvido.”
- Acho que está exagerando. Não pode generalizar uma população inteira com base no comportamento de alguns.
- Tenho ciência de que o ato de generalizar é um erro de raciocínio cometido muitas vezes por aqueles que não se deram e nem se dão ao trabalho de promover uma análise acentuada sobre o tema que estão tratando. Dito isso, posso garantir que não estou generalizando, e afirmo que esse não é apenas um comportamento recorrente de sua espécie, mas tem se tornado quase dominante no planeta, e se faço tal afirmação é com base em séculos de observação.
“Sim, ainda existem aqueles que pensam com desprendimento e de forma quase que inteiramente altruísta, pensando nos pares e em maneiras cada vez melhores de ajuda-los, mas isso tem se tornado cada vez mais raro, o que é um verdadeiro contrassenso, já que no exato instante em que a tecnologia lhes proporciona a chance de se aproximarem, interagirem mais entre si e consequentemente construírem pontes para ajudarem o máximo de pessoas que puderem, os humanos destroem essas passagens e se distanciam, imergindo profundamente nas próprias realidades, preocupados apenas em satisfazer os próprios desejos e anseios, sem pensar em seus irmãos de espécie.
“Usam de um tempo precioso para olharem a vida alheia, se infelicitando pelo sucesso ou aparência de sucesso dos demais e se frustrando num isolamento ainda maior enquanto encontram maneiras de diminuir o próximo simplesmente por não terem o que os pares possuem. Atacam, invejam, se afastam, e quando têm a oportunidade, não hesitam em fazer uso da violência que é inerente à sua raça. Estão evoluindo tecnologicamente, isso é certo, mas infelizmente seguem o caminho contrário com relação à cognição e ao pensamento lógico, regredindo numa velocidade assustadora nesses aspectos, e é principalmente esse egoísmo e egocentrismo que estão os levando em direção ao abismo.
- Fala como se todos nós fôssemos assim, então, volto a pedir para tomar cuidado com as generalizações. – Falou ela, tentando esconder a ofensa que voltara a sentir com aquela nova série de apontamentos sobre os problemas dos humanos.
- E eu repito que existem as exceções, mas infelizmente, o que falei até agora tem se mostrado a regra entre seu povo. Você mesma, doutora, possui essas características.
- Do que está falando?! – Perguntou a terapeuta, sem conseguir conter a surpresa e a ligeira sensação de revolta que ficaram expressos em seu tom de voz.
- Do egocentrismo que pauta suas ações. – Respondeu, tão impassível quanto estivera em qualquer outro momento.
- Egocentrismo? De onde tirou isso?! O que fiz para que chegasse a essa conclusão?! – Ela parecia cada vez mais revoltada. Duas sessões colocando a espécie humana em posição de inferioridade já tinham sido o bastante para incomodá-la a ponto de cogitar desistir daquele estranho paciente, mas uma crítica direta à sua imagem, como aquela que era feita, já passava de todos os limites. - Por acaso acha que pode me julgar depois de dois encontros? Se acha realmente superior a ponto de fazer isso?
- O que acho não é com base na superioridade, mas sim na observação. – Falou com neutralidade. – Lembre-se que há séculos observo a espécie de vocês, o que me trouxe alguma experiência sobre o assunto. E sim, duas sessões foram o bastante para chegar à conclusão que citei há pouco.
- Então me explique, por gentileza, como chegou a essa brilhante conclusão. – Pediu, em tom de sarcasmo.
- Perfeitamente.
O alienígena virou-se lentamente, e ela não conseguiu conter um leve espanto ao ter novamente o vislumbre daquele rosto inexpressivo, tão cinzento quando o de um manequim, e com olhos grandes e negros que pareciam não ter vida alguma. O corpo era quase idêntico ao de um ser humano magro, contrastando com a cabeça grande e oval, que de tão lisa chegava a brilhar mesmo na parca luz daquela sala.
O quadro era ainda mais estranho quando se considerava a calça de brim e a camisa social cuidadosamente engomada que ele usava sob o terno justo, feito sob medida, e diante daquela visão a terapeuta sentiu o aborrecimento se esvaindo por alguns segundos, dando lugar ao sentimento de quem nunca tinha realmente se acostumado com a presença daqueles seres entre os humanos.
- Vou começar pela forma como me atendeu quando entrei em contato. – Continuou, divisando-a com aqueles enormes olhos escuros e inexpressivos. – De início percebi a reticência em seu tom de voz quando me identifiquei como sendo um membro da minha espécie, assim como o silêncio que se seguiu a ela, como se estivesse refletindo sobre a possibilidade de aceitar o atendimento.
“Depois, quando finalmente respondeu dizendo que iria me atender, surgiu a pergunta sobre se haveria mais algum da minha espécie, e pelo tom de ansiedade de sua voz percebi que não havia medo, mas expectativa, como se seu desejo fosse que de fato eu trouxesse mais alguns do meu povo para que pudesse atende-los, e acabei notando a discreta decepção que teve quando respondi que eu seria o único.
“Logo em seguida, quando cheguei aqui, me deparei com a ficha que me apresentou, dizendo que era uma praxe entre pacientes, e dentre os pontos que havia nela um me chamou atenção, o que afirmava que estava autorizada a divulgar os estudos decorrentes da análise que faria, com a preservação, evidentemente, de minha identidade. Tal fato me fez relembrar de uma das razões de a ter escolhido para essa tarefa, já que pelo que vi, preza bastante pela divulgação de seu trabalho, mantendo-se sempre em evidência, dando entrevistas e aparecendo nos mais variados meios de comunicação.
“Por fim, bastou olhar para os inúmeros quadros cuidadosamente pendurados em um ponto de sua parede que pode ser visto de todos os ângulos desta sala, destacando diplomas e certificados que indicam, em tese, seu preparo intelectual para o trabalho que desempenha. Suponho, na verdade arrisco-me a dizer que sei que deseja promover ainda mais seu já conhecido nome, sendo esta a única razão pela qual me aceitou e também tolerou o desagrado que tem sentido em alguns momentos de nossas sessões, que ficaram evidenciados em seu tom de voz. Por acaso estou errado?
A terapeuta não percebeu, mas a caneta que estivera segurando agora jazia no chão, derrubada enquanto observava atônita à explicação do alienígena, perdida entre a indignação e o espanto que a tomavam mais e mais à medida que aqueles olhos inexpressivos a fitavam e a voz impassível narrava toda a explicação que era dada com uma margem de certeza que ela sabia que não podia contestar.
Era como se o ser tivesse olhado exatamente dentro dela, com uma precisão ainda maior que aquela da qual ela se gabava de ter na análise de seus pacientes, revelando uma parte que a própria profissional sabia que existia, embora não gostasse de admitir, tentando-a ocultá-la de si mesma para fugir da autocrítica que aquela característica lhe obrigava a fazer, o que era mais um dos indicativos do egocentrismo que muitas vezes pautava suas condutas, tanto profissionais quanto pessoais.
- Acredito que a ausência de resposta de sua parte seja uma forma tácita de confirmar o que falei. – Disse o alienígena, sem desviar dela aqueles olhos perturbadores.
- De forma alguma. – Retorquiu, depois de permanecer alguns segundos em silêncio, perturbadoramente atraída por aquele olhar quase hipnotizante, até que seu senso de defesa entrou em alerta obrigando-a a reagir a mais uma das investidas do alienígena que colocava ela e os humanos em posição de desvantagem. – Apenas... bem, aprendi com um de meus professores que uma das melhores respostas para se dar a um comentário despropositado é o silêncio. – Concluiu, depois de buscar avidamente na mente algo que pudesse lhe ajudar naquele embate.
O olhar frio e sem vida do alienígena permaneceu sobre ela enquanto o silêncio os rodeava, e por um instante achou que aquele ser estava perscrutando os segredos de sua própria alma, o que a fez sentir uma vontade cada vez maior de dar um fim àquele encontro e desmarcar as sessões seguintes, desconforto que permaneceu por mais alguns segundos enquanto a expressão incólume de Zorth permanecia a encará-la, sem dar qualquer pista do que poderia estar se passando no interior daquela enorme cabeça desproporcional que parecia conter o conhecimento sobre uma infinidade de formas de deixa-la constrangida.
Então, como se não tivesse ficado parado por um longo e desconfortável momento olhando-a ininterruptamente, o alienígena virou-se de repente e voltou a deitar-se no divã, deixando à vista apenas o contorno cinzento daquela enorme massa craniana que era sua cabeça lisa e brilhante.
- Podemos continuar? – Perguntou com aquela mesma voz neutra.
A terapeuta olhou incrédula para aquele contorno cinza, tentando assimilar a frieza com a qual Zorth fizera a pergunta depois de causar todo aquele transtorno com as coisas que dissera, como se não tivesse falado nada de mais, ou simplesmente tivesse lido friamente um trecho de um livro ou uma lista de afazeres.
- Doutora? – Insistiu friamente. – Quer continuar, ou acha que devemos parar?
- Podemos... continuar. – Ouviu-se dizendo, e para ela sua voz parecia gritantemente mecanizada. Ainda estava pensando na frieza de Zorth, e no peso das coisas que ele havia dito, lutando contra si mesma para não ter que admitir o que em vários momentos a nível inconsciente ela própria havia constatado.
- Ótimo. O que mais deseja saber?
- O que acha que deve fazer? – Perguntou ela, depois de pensar um pouco sobre o que deveria falar.
- Não seria você, enquanto terapeuta, a pessoa a me dizer isso?
- Esse é um processo de duas frentes. Ambos trabalhamos nele. Você me diz o que sente e eu tento identificar o problema, mas não faz parte do nosso trabalho dizer ao paciente o que ele deve fazer. Vocês têm que guiar os próximos passos que devem dar. – Parou e pensou um pouco, batendo no bloco de notas com a caneta que havia pego de volta do chão. – O problema, pelo que posso concluir, é que se sente incomodado com determinados... comportamentos da nossa espécie, o que tem mexido até mesmo com a forma com que já estavam habituados a controlar os próprios sentimentos.
“A questão agora é tentar encontrar uma solução para esse problema, já que estes... comportamentos não mudarão. Pelo menos não em um curto espaço de tempo. Então, tudo o que posso dizer é que ou deve se habituar a eles, ou buscar outra solução. Mas esse é um caminho que você deve encontrar.”
- Então, o que posso concluir é que cheguei a um caminho de onde não posso seguir adiante, a não ser que desvie dele. Uma força imparável que deparou-se com um objeto inamovível. Quando isso acontece, um dos dois deve ceder, caso contrário, ambos se destruirão ou permanecerão eternamente naquela refrega.
- Pode ser visto dessa forma. Mas o que pretende fazer?
- Não posso mudar vocês, doutora. Nenhum de nós pode. Se milênios de evolução não o fizeram, não seremos nós, em apenas alguns anos que vamos conseguir fazê-lo. Meu mundo está morrendo, e talvez eu viva o bastante para presenciar o crepúsculo de sua existência ao voltar para lá, mas ainda assim prefiro fazê-lo. Prefiro ver um planeta sendo extinto pelo decurso natural de sua caminhada do que outro, tão bom como esse, ser destruído pelo egoísmo de uma espécie.
“Também aprendi a apreciar a companhia de vocês, o que tornaria duplamente dolorosa minha permanência aqui, já que veria duas coisas que prezo sendo extintas pelas ações de uma delas. Meus pensamentos são a força imparável, e vocês são o objeto inamovível. Não posso movê-los, então desviarei desse caminho.”
Zorth levantou-se com uma leveza que espantou a terapeuta, que ainda tentava assimilar o peso daquelas palavras. Voltou então a encará-la, e mesmo com aquela expressão fria e aqueles olhos impassíveis ela achou por um segundo que tinha visto ali um traço de compaixão, como se o alienígena não sentisse desprezo por ela ou sua espécie, como as coisas que havia falado tinham dado a entender, mas sentia pena deles e do destino que estavam construindo com suas ações.
- Peço desculpas se a ofendi em algum momento, doutora. Não foi minha intenção. E agradeço por ter me mostrado, ainda que inconscientemente, qual caminho devo seguir. Voltarei para o meu mundo, onde as coisas fazem sentido para nós. E espero realmente que esteja errado quanto à certeza que construí com base nas observações que fiz, e na recusa que possuem em admitir a forma como se comportam. Espero realmente que mudem, e que assim como eu, adotem um novo caminho. Antes que seja tarde demais”.
O alienígena acenou para ela, virou-se, e caminhou com a naturalidade de quem estiva saindo para um dia usual de trabalho.
Dali, de sua poltrona, a terapeuta olhou enquanto ele se afastava, sem olhar para trás, e enfrentou um caleidoscópio de sentimentos e impressões que iam desde a raiva pela impotência que o outro a havia feito sentir, até o abalo pelas ponderações que a obrigara a realizar.
Seria a raça humana tão teimosa em reconhecer os próprios erros ao ponto de impacientar uma espécie que aprendera a controlar os próprios sentimentos depois de milênios de evolução, obrigando alguns deles a irem embora, incomodados que estavam com aquela recusa que levaria os humanos à própria destruição?
Seria ela própria detentora da mesma teimosia e do egocentrismo que com tanta frieza ele havia apontado?
Enfrentando as respostas para aquelas perguntas, as mesmas que ela tinha evitado por tanto tempo, a terapeuta acabou concluindo que descobrira mais sobre ela mesma e sobre a raça humana naquelas sessões, do que sobre a psique dos alienígenas, e por um átimo de segundo desejou, assim como o alienígena que acabara de ir embora, afastar-se de um lugar em que existiam tantas condutas destrutivas.
A questão que se punha no fim das contas era, ela aprenderia com aquela percepção que acabara de ter, ou faria como a maior parte dos humanos depois que reconhece um erro que cometeu, voltando a promovê-lo após um tempo, vez após vez, após vez, até que seja tarde demais para remediá-lo?
Essa pergunta, só o tempo poderia responder.
São João
A penumbra ainda dominava o quarto quando seus olhos se abriram lentamente, revelando a realidade que lhe estivera oculta enquanto caminhava pelo lado de lá das fronteiras dos sonhos, e levou um tempo para que pudesse adaptar-se àquele cenário escuro acinzentado, com a mente em parte ainda presente na loucura formada por um caleidoscópio de cores e imagens que envolvia o mundo onírico.
O silêncio que o cercava em meio àquela penumbra era quase palpável, quebrado apenas pela respiração lenta e cadenciada do irmão caçula que dormia ao seu lado. Na quietude correu os olhos pela extensão do quarto, observando atentamente os poucos objetos que havia ali enquanto lentamente ia despertando por completo do sono da noite anterior.
Pela velha janela de madeira uma fina réstia de luz esbranquiçada entrava, avisando que os primeiros sinais do sol vindouro despontavam em algum lugar no horizonte longínquo. Perguntou-se quanto tempo levaria antes que o galo cantasse, e se seria possível descansar só por mais alguns minutos antes que isso acontecesse, mas o ruído que chegou aos seus ouvidos vindo do quarto ao lado lhe disse que era o momento de levantar, pois seu pai já se preparava para um novo dia de trabalho.
Suspirando o menino ergueu-se devagar, sentindo ainda os dedos do sono tentando agarrá-lo enquanto sequer tinha se livrado das mãos do cansaço do dia anterior. Olhou para o irmãozinho que ressonava ao seu lado, ainda novo demais para a lida na roça, e em pensamento lhe disse que aproveitasse aquele momento, porque do ponto onde estava em diante o trabalho seria um companheiro constante.
Ciente de que deveria se apressar o garoto saiu da cama pequena e desconfortável e foi até o pequeno baú onde guardava as poucas roupas que possuía. Os trapos que usava no trabalho diário com o pai, as duas peças que vestia e alternava semanalmente para ir à escola, e um pouco mais arrumada e conservada, a roupa do domingo, que trajava para ir à missa ou outras ocasiões especiais.
Em pouco tempo estava vestido com o que usaria naquela primeira metade do dia, já que a segunda parte era destinada a ir à escola, coisa de que seu pai e sua mãe não abriam mão, pois como diziam a todos, queriam um futuro melhor para os filhos, que diferente deles seriam gente letrada que poderia colher mais frutos do que aqueles que arrancavam às duras penas, com as mãos calejadas nos intermináveis dias de trabalho embaixo de um sol escaldante.
Pisando nas pontas dos pés para não acordar o caçula, o garoto caminhou pelo chão de terra batida até chegar à sala que também servia de cozinha, onde o pai já sorvia o café que havia preparado às pressas e comia um duro pedaço de pão quase bolorento, já tendo separado a parte do menino, que repousava em cima de um prato de barro a um canto da pequena mesa de madeira.
O garoto olhou para o pai, um homem ainda jovem de idade, mas endurecido e gasto pela vida dura que viviam, já ostentando no rosto marcas profundas, sulcos abertos pelo sofrimento de um dia a dia que batia mais forte do que o mais bruto dos homens. O jovem envelhecido olhou para ele e acenou com seu costumeiro jeito arredio, tão típico das pessoas que ali habitavam, e respeitosamente o menino devolveu o cumprimento, dizendo quase num sussurro:
- Sua bênção, meu pai.
- DEUS te faça feliz. – Repetiu o homem em uma voz rouca.
Comeram em silêncio, mastigando com esforço o duro pão que punham na boca e sorvendo o café que fumegava nas canecas de latão, até que o pai pegou o chapéu de couro que estava pousado no colo e colocou na cabeça, o que por si só já era um sinal de que deveriam partir. O garoto fez o mesmo, bebendo de um gole o restante da bebida, que ajudou a descer a massa de pão que teimava em não desfazer-se no interior de sua boca.
Assim pai e filho levantaram-se e partiram, deixando para trás a mulher e mãe que acordaria em alguns minutos para sua cota de trabalho diário, tão duro quanto o deles, tão sofrido e desgastante quanto aquele que iriam encarar em seguida. Lá fora o sol começava a despontar no horizonte, afastando os últimos resquícios da noite que aos poucos se despedia, e tão logo os dois colocaram os pés para fora de casa o cantar estridente do galo finalmente chegou aos seus ouvidos.
- Mais um dia começa. – Disse o pai, respirando fundo e olhando para vastidão que cercava a casa simples de porta e janela. O menino acompanhou seu genitor, e também divisou com o olhar a terra que os rodeava. Terra seca e sofrida, mas que naquele ano tinha sido abençoada com a chegada das chuvas, aumentando a esperança tão parca de uma vida melhor para ele e para a família. – Já agradeceu a DEUS por estar vivo?
O garoto olhou para o pai, que em silêncio aguardava a reposta para aquela pergunta. Então acenou a cabeça em concordância e disse, agora com uma voz alta e segura:
- Sim, senhor. Agradeci sim, meu pai.
- Bom. Muito bom. – Disse o homem, vislumbrando o sol que se erguia por detrás das serras longínquas. – Essa é a primeira coisa que toda pessoa deve fazer assim que abre os olhos, e a última antes de fechá-los. Agradecer a DEUS pelo dom da vida. E hoje temos mais um motivo para sermos gratos, não temos garoto?
O menino olhou para o pai e viu algo que poucas vezes podia ser vislumbrado, o rosto do homem se abrindo em um breve sorriso que acentuou ainda mais os sulcos que possuía na face. À luz que se erguia o menino percebeu os tocos brancos que surgiam em meio à sua barba enegrecida, da mesma tonalidade dos primeiros fios pálidos que começavam a aparecer em seu cabelo.
Mas mesmo com as rugas e os cabelos brancos, aquele breve sorriso fez com que o pai por um momento lhe parecesse mais jovem. O garoto então sorriu sem jeito, despreparado para o gesto que acabara de perceber, e balançou novamente a cabeça em concordância ao que o homem dissera.
- Sim, garoto. Temos mais um motivo para celebrar o dia de hoje, porque há dez anos atrás você estava chegando nesse mundo sofrido de meu DEUS, numa noite fria e estrelada de São João. Bem que eu queria ter lhe colocado o nome do meu finado pai, mas sua mãe teimou que se tinha nascido nessa data, tínhamos que homenagear o santo que é representado, e sabe bem como ela é com essas coisas, não sabe?
- Sei sim senhor.
- Pois é, João. E como o tempo passa e os costumes se enraízam enquanto ele anda, a data ainda existe, o que quer dizer que hoje tem uma festa no pavilhão da vila. Um forró daqueles, danado de bom, de fazer cair a sola da bota e o queixo do matuto.
- Eu sei, meu pai. E pode ficar tranquilo que vou ficar de novo cuidando do meu irmão enquanto você e a mãe vão dançar na festa.
O pai olhou para João com um quê de admiração na face enrugada, e por um instante ficou orgulhoso do menino que estava criando e do caráter que se formava nele. Contente a seu modo, disse a si mesmo que estava indo no caminho certo, e que com as bênçãos de DEUS aquele garoto iria muito mais longe do que ele jamais fora na vida.
- Não, meu filho. Hoje você não cuida do seu irmão. Hoje a tarefa que vai ter será diferente.
- Diferente como? – Quis saber João, sem fazer ideia do que aquilo queria dizer.
- Hoje é dia do santo que lhe deu o nome, e também do seu aniversário. E como tem festa na cidade, e você já está ficando um rapazote, é justo que aproveite a celebração comigo e sua mãe. Então se prepare, porque nessa noite vai conhecer o São João da vila.
João ficou calado olhando para o pai boquiaberto, como se não tivesse entendido nada do que o homem ao seu lado acabara de falar. Desde que se entendia por gente ficava com o irmão na noite de festa junina que acontecia na vila, e a primeira pergunta que se fez foi quem ficaria com o caçula se saíssem os três naquela noite.
- Vamos guri, mexa esses cambitos. – Ralhou o pai, chamando sua atenção enquanto já ia caminhando à frente. – Aquele campo não vai se arar sozinho, e sabe DEUS quando vamos ter uma temporada de chuvas como essa de novo. Vamos de uma vez.
- Mas pai... quem vai ficar com meu irmão? – Perguntou, depois de dar um pique para alcançar o homem de passo largo que caminhava à frente.
- Sua avó vai ficar com ele. Agora fique quieto e não faça mais perguntas. A cavalo dado não se olha os dentes, e não é educado ficar perguntando sobre os detalhes do presente que ganhou.
João ficou calado e não disse mais palavra, constrangido como sempre ficava quando levava uma bronca do pai. Mas mal dera alguns passos parou quando o homem também cessou sua caminhada e olhou para ele, não do jeito sisudo como costumeiramente olhava, e sim com um olhar plácido e amigável. Abriu então um breve sorriso na face enrugada e depois de assanhar os cabelos do filho disse:
- Feliz aniversário, garoto. DEUS te abençoe.
E da mesma forma que tinha parado bruscamente, logo voltou a caminhar, deixando o filho para trás, com um misto de alegria e constrangimento pelo agrado que acabara de receber.
O dia passou com a lentidão com que os dias passavam naquelas paragens, enquanto pai e filho aproveitavam para arar a terra ainda úmida das chuvas abençoadas que tinham caído sobre suas cabeças. Mas enquanto o homem admirava contente o verde que se estendia ao seu redor, animado com a safra que lhes garantiria um ano menos sofrido, João não conseguia tirar da cabeça a expectativa da noite que estava por vir.
Desde que tinha lembrança desejava ver o desenrolar dos festejos juninos que animavam a vila, especialmente quando ia fazer compras com o pai ou a mãe exatamente na véspera de São João, vendo espalhada pelo lugar toda a decoração que coloria o pequeno vilarejo próximo à terrinha onde moravam, e à noite, já em casa tomando conta do irmão enquanto os pais iam festejar, ouvia os distantes estampidos dos fogos da festa, que chegavam aos seus ouvidos trazidos pelo vento frio noturno, enquanto vislumbrava à distância pontos coloridos que subiam lentamente e viajavam pelo firmamento como se fossem estrelas ambulantes, sabendo de pronto que aquele era mais um balão que os velhos tinham lançado lá na cidade.
Aquelas visões acentuavam a fantasia que formava em sua mente, imaginando os detalhes, cores, cheiros e sabores que vinham daqueles festejos, ansiando em sua mente pueril por conhecer o que para ele era um mundo inteiramente misterioso, e agora que tinha diante de si a oportunidade de finalmente conhece-lo, sentia crescendo no peito a ansiedade pela chegada da noite.
O tempo não tardou a passar, a hora finalmente chegou, e arrumado e vestido com a roupa de domingo, a melhor que tinha guardada no armário simples de seu pequeno cômodo, e com as botinas que o pai lhe dera de presente no ano anterior, que já começavam a ficar pequenas para seus pés, João se postou na entrada da casa à espera da avó, que logo chegou para cuidar do neto mais novo.
Depois de pedir a benção à velha e de despedir-se do irmão caçula, partiu ao lado dos pais, que também vestiam suas melhores roupas para a noite de festas que tinham pela frente. Tão logo afastaram-se do casebre onde viviam, o menino olhou admirado para o céu, que naquela noite fria parecia ter convocado todas as estrelas que lá habitavam para que se revelassem aos olhos admirados do mundo abaixo delas.
Tomando cuidado para não tropeçar, João alternava o olhar entre o céu estrelado e a estrada escura de terra batida, que o pai já conhecia de cor, e por onde ia com a tranquilidade de quem estivesse enxergando tudo nos mínimos detalhes. Andaram e andaram em meio ao frio noturno, ouvindo apenas a sinfonia dos bichos que saíam de seus abrigos para se aventurarem àquela hora tardia, e os sons dos próprios passos enquanto andavam pela estrada irregular, até que o menino sentiu algo além da brisa noturna invadindo-lhe o nariz.
De imediato João parou, identificando o tão conhecido cheiro de madeira queimando, e como se alguém quisesse convencê-lo de que se aproximavam do tão aguardado destino, um clarão de luz iluminou o céu à distância, espalhando cores que se revelaram em sua plenitude para logo depois se esvaírem com a mesma rapidez com que tinham surgido, cena que foi seguida de um estampido que ecoou pelo espaço e chegou aos ouvidos do garoto, enchendo seu coração de expectativa.
A festa estava próxima.
Apressou-se para alcançar os pais, que não tinham parado um segundo sequer para aterem-se ao clarão que iluminara o céu, e depois de caminhar alguns metros, um som choroso chegou baixinho aos ouvidos do menino. Já tinha ouvido aquele som muitas vezes, e sempre que o escutava sentia batendo no peito uma saudade que não sabia do que era, mas que estava lá, mesclada a uma satisfação crescente e uma alegria que fazia o sangue pulsar em suas veias e os pés baterem no chão como se tivessem vontade própria.
No meio da noite estrelada João ouvia o choro baixo e manhoso de uma sanfona sendo tocada à distância, e enquanto o fazia sentia o coração respondendo, levado pelas vozes e emoções de todos os antepassados que tinham vivido naquela terra tão bela e ao mesmo tempo maltratada, e experimentado aquela mesma sensação no exato instante em que a música que crescia da raiz daquele lugar lhes chegava aos ouvidos.
E assim como o coração de seus antepassados, o do garoto também batia em um compasso cada vez mais acelerado, semelhante ao que lhe chegava aos ouvidos, porque junto ao choro da sanfona o baque seco da zabumba ditava o ritmo da música que ecoava cada vez mais forte pelo lugar, avisando àqueles três andarilhos noturnos que estavam praticamente às portas de seu destino, certeza que se ampliou ainda mais quando o som cristalino de aço batendo em aço lhes alcançou, revelando que o tocador de triângulo chegara para compor o trio que animaria a noite de todos.
O menino mal teve tempo de assimilar a chegada da música, porque logo adiante, duas curvas após aqueles sons lhe chegarem aos ouvidos, depois de passar por enormes cercas vivas de mandacaru que cobriam a paisagem diante deles, os três se depararam com a entrada do vilarejo e com a sucessão de cores que se abriu diante de seus olhos.
Assim como no momento em que o estampido clareou o céu quando ele e os pais mal tinham saído de casa, o garoto novamente estacou, espantado demais com o que se desenrolava adiante para ter qualquer outra reação que não fosse a de admirar em êxtase o cenário que tinha à sua frente.
A alguns metros dali, logo na entrada do vilarejo, uma fogueira colossal ardia, levando ao alto as labaredas que iluminavam e aqueciam os passantes, e que pareciam dançar no ritmo da música que tocava em algum ponto daquela pequena cidade. Ao redor dela algumas pessoas dançavam enquanto outras acendiam pequenos foguetões que lançavam ao ar, e que se extinguiam depois da vã tentativa de competirem com a luz das estrelas que brilhavam no céu.
Um pouco mais à frente velhos sorriam sentados em um enorme banco, onde próximos à fogueira aqueciam os ossos gastos contra o frio cortante da noite, bebericando em bicadas intervaladas por sorrisos escancarados um pouco da cachaça que levavam na garrafa de barro envelhecido.
Ali de seus lugares, apesar das rugas profundas e dos corpos encurvados, as risadas que soltavam pelo ar faziam com que parecessem crianças novamente, felizes enquanto as matizes coloridas da noite de festa enfeitavam seus rostos, colorindo-os de vermelho, amarelo e laranja, ao sabor do fogo que crepitava e bailava em meio àquela festança.
João fitou admirado a cena que se desenrolava à sua frente até que um novo clarão explodiu no céu, iluminando em cores os rostos que se voltavam para cima a fim de ver o espetáculo, que foi enriquecido pelo jato de fogo que partiu do solo ali perto, encantando o menino à vista do vulcão que fora aceso, lançando suas labaredas para o alto como se quisessem alcançar o céu, enquanto tudo era acompanhado da gritaria alegre das crianças que corriam ao seu redor, animadas com o espetáculo que a cena proporcionava.
Viu então o pai parado adiante, lhe chamando impaciente para que os seguisse de uma vez, e logo apressou-se e correu até onde ele estava, passando pelo enorme jato que ainda espalhava luzes e fumaça pelo ar, tomado por um misto de medo, admiração e emoção que se alternavam em seu coração acelerado enquanto assistia àquela novidade que chegava aos seus olhos pela primeira vez.
Caminharam por mais alguns metros seguindo pela rua paralela àquela que era considerada a principal, com o som da música aumentando a cada passo que davam, ouvindo uma algazarra sem fim que crescia em volume a cada metro vencido, até que, ao passarem pela esquina do enorme armazém onde os homens endurecidos estocavam o produto do seu duro trabalho diário, se depararam com uma cena que o menino não tinha imaginado nem mesmo em seus sonhos mais fantasiosos.
João já passara naquela rua por tantas vezes que já perdera a conta, ora acompanhando a mãe quando esta vinha fazer as parcas compras que seu pouco dinheiro permitia, ora vindo com o pai para negociar os produtos retirados à guisa de tanto esforço da terra seca e sofrida. Já a vira inclusive enfeitada para a festa da noite de São João, mas apenas durante o dia, onde as estrelas ainda não estavam brilhando e nem as luzes resplandeciam acesas nas gambiarras que se espalhavam de um ponto a outro das velhas casas que ladeavam a via principal do vilarejo, o que justificava o espanto que sentia naquele momento.
Diante de seus olhos a rua que lhe era tão familiar estava agora completamente diferente de tudo o que já tinha visto em sua curta vida, repleta de tantos detalhes que por um instante achou que nem que vivesse cem anos conseguiria assimilá-los com a precisão que desejava.
Com uma admiração crescente e olhos vidrados ele divisava aos poucos o lugar, devorando cada imagem com a fome de quem a estava vendo pela primeira vez. Consumindo cores, luzes, cheiros e até mesmo os sabores que aqueles ativavam em sua memória, lembrando-o do milho assado e da carne na brasa sempre que o cheiro da fumaça das fogueiras lhe chegava ao nariz.
Do lugar onde estava olhou para toda a extensão da rua, vendo que de uma ponta a outra, da primeira casa até a extremidade em que ficava a Igreja, bandeirolas de todas as cores tinham sido penduradas, balançando ao sabor do vento sobre as cabeças dos passantes, que quando olhavam para cima sentiam-se como se estivessem embaixo de um teto multicolorido e esvoaçante.
Algumas eram cortadas em formato de uma só ponta, e outras dividiam-se em dois vértices. Umas ostentavam apenas cores em suas superfícies de papel, ao passo que algumas traziam pintadas as imagens dos três santos que representavam os festejos juninos daquela época, olhando silenciosos do alto para a festa que se desenrolava logo abaixo de onde estavam.
Alternando-se a elas, extensos fios se entrecruzavam, também pendurados entre as casas, levando inúmeras gambiarras de luz que tentavam rivalizar com as estrelas que se estendiam no céu, e embora não fossem tão belas quanto aquelas eram, traziam em si um encantamento que ajudava a embelezar ainda mais a vila que fervilhava em festa.
Nas calçadas, como um complemento àquela iluminação, pequenas fogueiras ardiam aqui e ali expulsando naquele pequeno espaço o frio que corria por fora do vilarejo, enquanto levavam aos olhos de João um brilho que era especialmente novo para o garoto, que nunca as tinha visto em tamanha profusão, e próximas a elas as crianças brincavam com seus pequenos chuveirinhos que cortavam riscos luminosos pelo ar, enquanto outras soltavam os estalidos que pipocavam no ambiente, encobrindo o ruído dos ratinhos e cobrinhas que deixavam rastros de fogo pelo chão enquanto faziam as velhas senhoras pularem de susto quando passavam perto de seus pés, arrancando risadas da garotada e dos homens que já sentiam no corpo o calor do quentão que entornavam como se não houvesse amanhã.
João caminhou encantado por aquele trajeto de luz, fogo e fumaça. De cores, cheiros e sabores. De gritos, risos e cantoria, seguindo inconscientemente os pais que andavam em direção à outra extremidade para tomarem a benção ao padre que assistia do patamar da igreja a festança que se desenrolava na vila, com um olhar atento e uma expressão séria no rosto, como se quisesse mostrar aos fiéis que estava de olho nos excessos que estes viessem a cometer, especialmente em uma festa que era realizada para homenagear um santo.
Mas assim que aproximou-se um pouco, João percebeu que apesar do olhar sério, o lábio do padre se erguia levemente de um dos lados, como se estivesse esboçando um sorriso, enquanto que logo abaixo da batina a ponta de um dos sapatos podia ser vista balançando para cima e para baixo, no mesmo ritmo da zabumba que jogava sua sonoridade pelo ar.
Depois de atender o pedido que lhe foi feito e abençoar aqueles três que ainda não tinham se jogado nos festejos, o padre voltou à posição inicial, com o mesmo olhar atento e as mãos entrecruzadas atrás das costas, e uma vez mais João reparou que mal se colocara daquele jeito, o pé abaixo da batina voltou a mover-se no ritmo que começava a contagiar o garoto, fazendo com que sentisse vontade de sair pulando ao compasso da música que ecoava pelo ambiente.
- Meu filho. – Disse sua mãe, depois de se afastarem um pouco da igreja. – Encontrou algum dos amigos que vão com você para a escola?
João olhou para a mãe que aguardava uma resposta, e depois divisou o lugar à procura de um rosto conhecido de criança, até encontrar alguns amigos em um pequeno grupo, divertindo-se perto de uma das inúmeras fogueiras que por ali ardiam.
- Achei mãe! Estão ali. – Falou, apontando para o lugar em que os vira.
- Pois então vá brincar um pouco com eles, já que é seu aniversário. – E depois de ouvir o estampido que veio do lugar onde os garotos estavam, e ver que tinham acabado de soltar uma bomba, falou, com um semblante que denotava cuidado. – Mas não se meta a mexer com aquelas bombas grandes que eu sei que esses moleques acabam conseguindo por aí, entendeu?
- Sim senhora. – Disse ele, balançando a cabeça em concordância enquanto encarava atentamente a mãe.
- Acho bom. – Disse seu pai, lhe encarando com o velho olhar sério que usava quando queria dar um aviso mais duro. – Agora vá brincar com seus amigos enquanto eu vou dançar com sua mãe no barracão. E se essa gurizada for se meter de ir para longe querendo estourar outras coisas, não se mande com eles. Fique ali na venda do Seu Ari nos esperando. Entendeu?
- Sim senhor.
João assistiu enquanto o pai pegava a esposa pela mão e saía andando em direção ao barracão. Mas depois de dar alguns passos, o homem parou e voltou para o lugar onde o menino estava, tirando alguma coisa do bolso e se acocorando na frente do filho. – Tome, use esse dinheirinho para comprar um refresco e um lanche. E não vá me sair a tomar cachaças por aí, que você ainda não tem idade para isso.
- Mas pai. Esse dinheiro não é para as sementes ou para comprar comida?
O homem olhou para o filho com um misto de emoção e orgulho, e João percebeu que o semblante quase sempre sério do pai amainou um pouco, fazendo com que ele parecesse mais novo.
- O ano foi bom, garoto. Além disso, é seu aniversário, e você merece uma recompensa por toda a ajuda que me deu. Agora vá. Rale pé daqui e vá brincar com seus amigos. E logo, porque é seu pai quem está mandando.
- Sim senhor. Eu vou. – Respondeu, e depois de ficar em silêncio por um segundo, olhou para o homem à sua frente e disse. – Obrigado, pai. – E ergueu a mão para que ele a apertasse.
- Não agradeça, guri. Agora vá, antes que a festa acabe e sua mãe comece a ralhar comigo porque não dançamos. – Disse ele, afastando o filho para que o garoto não visse em seu rosto qualquer sinal da emoção que sentia. – E já sabe, não é? Nada de cachaça ou daquelas bombas que destroem tudo. Entendeu?
- Entendi pai. Pode deixar. – Falou, já se afastando e indo em direção aos amigos, enquanto era observado pelo homem e pela mãe, que o fitavam com olhares repletos de orgulho.
Enquanto corria pela rua João desviava dos casais que caminhavam ou mesmo dançavam no centro, levados pelo som da música. A fumaça das fogueiras mesclada ao cheiro da pólvora dos fogos queimando chegava ao seu nariz, mas ao invés de incômodo lhe trazia apenas uma sensação de familiaridade, fazendo com que se sentisse em casa, em completo contato com suas raízes.
João passou pelas pessoas, pelas bandeiras que esvoaçavam no alto, pelas fogueiras e mesas de comidas colocadas ao lado das calçadas, até chegar aos amigos que brincavam com os fogos que tinham em mãos, e ali ficou se divertindo, indo e vindo entre traques, cobrinhas, chuveiros e outros fogos.
Mas depois de um tempo naquela brincadeira acabou cansando, e deixou-se ser atraído para as inúmeras possibilidades que a festa abria diante de olhos que nunca tinham visto aquela variedade de detalhes. Assim, deixou os colegas para trás e andou pela rua principal, vendo a algazarra do povo que sorria, dançava e conversava entre amigos e vizinhos.
Passou pela venda do Seu Ari, vendo que o velho, como de costume, estava atrás do balcão conversando e ouvindo os causos dos demais (João por vezes se perguntava se o homem nascera grudado naquela mesma posição, já que nunca o vira fora do local onde estava). Ali dentro os homens bebericavam suas cachaças e contavam vantagem sobre conquistas e valentias, certamente exageradas pelo efeito do álcool que dominava suas cabeças inebriadas.
Riu com os demais aos ouvir os causos exagerados dos matutos inebriados, que levados pelo torpor que a bebida lhes causava contavam vantagem e aumentavam os feitos e conquistas que tinham realizado.
Ainda sorrindo passou pelas inúmeras mesas de comida espalhadas pelas calçadas, e com a boca salivando admirou os bolos, pés de moleque, milhos cozidos e assados, caldos verdes e mais uma infinidade de guloseimas que fizeram sua barriga roncar, até que contente recebeu de uma das mulheres que era amiga de sua mãe alguns quitutes, pelos quais deu um sincero sorriso de agradecimento, que logo sumiu quando começou a encher a boca com o agrado que recebera.
Passou novamente pela venda do Seu Ari, e ali usou o dinheiro do pai para tomar um refresco gelado, que levou para a calçada e bebericou enquanto fitava com olhos brilhantes os detalhes da festa que transcorria ao seu redor.
Ouviu então um chamado que laçou seu coração, pois ali perto, no palhoção montado ao lado do começo da rua, o choro da sanfona, que tinha cessado logo que haviam chegado para dar um pouco de descanso ao trio que tocaria a noite toda, voltou a ecoar pelo ar, e o menino logo ficou preso àquele gostoso lamento cheio de manha, aguçando os ouvidos para escutar um pouco melhor os acordes que estavam sendo dedilhados.
E foi assim que logo seu coração pulou no peito e seus pés se encheram de energia quando entraram em uníssono o som da zabumba e do triângulo, anunciando que a pausa cessara e que a cantoria agora só terminaria quando o galo a eles se juntasse para também cantarolar assim que os primeiros raios de sol surgissem no horizonte.
Movido pelos próprios pés, como se estes tivessem vontade própria, João foi aos poucos conduzido pela música, passando alheio pelas pessoas que pareciam dominadas pelo mesmo encantamento, sem perceber que suas pernas já se mexiam em um ritmo que parecia fluir naturalmente de seu corpo, balançando ao sabor da canção cada vez mais alta que ecoava ao seu redor.
Em pouco tempo já estava em frente à enorme construção de palha e madeira de onde emanavam gritos, risos e um arrastar de pés ritmado que seguia o balanço ditado pelo trio que animava a festa. Dali ninguém parecia querer sair, e apesar de parecer lotado as pessoas não paravam de chegar para adentrar naquele lugar que desafiava as leis da física, acomodando tantos quantos pudessem ocupar o mesmo lugar no espaço, porque a lei que ali valia era a que mandava dançar e aproveitar a festa todos que ali entrassem.
João seguiu o que a norma parecia determinar, e assim entrou na enorme estrutura, deparando-se depois de pouco tempo com os pais, que dançavam em uma incontida alegria, e o menino admirou-se ao ver pela primeira vez um sorriso completo no rosto do pai, que agora já não parecia mais moço, mas sim um garotinho que tinha voltado à infância para aproveitar os momentos deliciosos de uma brincadeira despreocupada.
Repentinamente ele se viu flagrado por aqueles rostos tão familiares, e que ao mesmo tempo pareciam tão diferentes tomados por toda aquela alegria nada costumeira. Por um instante pensou que fosse receber uma reprimenda, especialmente do pai, por ter ido até lá sem o consentimento deles, mas qual não foi a surpresa de João ao ser puxado exatamente pelo homem a fim de unir-se a eles naquela animada dança, sofrendo de início para acompanhar o passo acelerado que levantava o pó do chão de areia batida, mas logo adequando-se a ele ao deixar-se levar por um ritmo que parecia estar gravado em seu próprio DNA.
E dali a noite correu solta enquanto as estrelas brilhavam no céu e as fogueiras iluminavam a festa, com brados de alegria, comida à vontade, cores a perder de vista e, claro, a música daquele trio animado, que não dava um só minuto de sossego aos instrumentos e aos pés das pessoas que ali dançavam.
E assim o menino brincou, sorriu e farreou, sentindo bater no peito, ao som daquela canção, a alegria de suas raízes, que levava no coração, e enquanto as estrelas brilhavam, e os pés batiam no chão, o garoto animado brincava, o seu primeiro São João.
Sapiêncio e a Páscoa
O dia não fora fácil. Nada fácil, é o que ele diria se alguém lhe perguntasse como as coisas estavam indo. Na verdade, se alguém se aproximasse, ainda que com um sorriso no rosto e a vontade de ajudar, questionando se estava bem, provavelmente receberia de sua parte uma resposta curta, seca, e quase que certamente indelicada.
Era naquilo que pensava enquanto via, sentado no banco da praça, as pessoas indo e vindo cuidando de suas próprias vidas, julgando que provavelmente as delas eram bem melhores que a sua. “E por que não seria?”, disse a si mesmo no silêncio de sua mente acabrunhada. “Minha vida é uma droga, tudo está dando errado e nada, absolutamente nada está indo de acordo com o que eu tanto tinha planejado.”
Enquanto pensava revia também o caminho que percorrera até ali, não um muito longo, já que ainda era bastante jovem, mas certamente um que fora repleto de acontecimentos, a maioria deles, diria, de percalços e infortúnios que o tinham levado àquele banco, naquela praça, num fim de tarde que para qualquer um que estivesse passando por ali parecia perfeitamente agradável, mas que para ele era apenas a antecipação do crepúsculo em mais um dia infeliz que retratava o quão miserável sua vida era.
Olhou um pouco mais adiante, para o pequeno parquinho em um cercado de areia onde várias crianças brincavam felizes e sorridentes, despreocupadas do mundo e de suas agruras, sem que passasse sequer remotamente por suas cabeças as dificuldades que quase certamente enfrentariam um dia. Naquele momento lembrou-se de sua infância, naquele mesmo parquinho, e desejou ardentemente que os ponteiros do relógio da vida ficassem confusos por algum tempo, e passassem a caminhar para trás. Talvez assim conseguisse de volta um pouco da felicidade que um dia tivera, e que agora parecia tão distante de ser alcançada.
Respirou fundo, não mais suportando ver aquelas imagens e a lembrança que traziam de um passado feliz e de um presente problemático, e virou o rosto para outro ponto, apenas para ser atingido pela visão de algo que continuava a lembrar-lhe dos problemas que enfrentava, e para os quais não conseguia encontrar uma saída.
Abaixo de uma enorme cerejeira que florescia em toda a sua plenitude, mostrando-se aos olhos de quem passasse como o que de fato era, uma imagem digna da pintura do mais belo quadro, um casal trocava carícias e juras de amor sentado a um banco exatamente igual ao que ele estava naquele instante. Vendo aquilo e com o coração repleto de mágoa não deixou de pensar o quão perto os dois estavam dele fisicamente, mas ao mesmo tempo o quão distante era o momento em que se encontravam aquelas vidas em relação à sua.
Lembrou do namoro recentemente terminado, o mesmo em que investira durante anos com a moça que conhecera ainda na faculdade e que elegera como mulher de sua vida, com quem construiria a família perfeita, digna das que apareciam nos comerciais de tv com sorrisos estampados no rosto em uma felicidade que parecia que duraria uma vida inteira.
Lembrou dos beijos trocados, das carícias compartilhadas, exatamente como o casal que à sua frente parecia ter esquecido do mundo enquanto lembrava apenas do próprio amor que sentia. E recordou também da tristeza nos olhos dela no dia em que chegara de repente, segurando na mão a aliança e dizendo com lágrimas nos olhos que o amor acabara.
Sentindo o aperto no peito que a lembrança trazia ele tentou afastá-la e voltou o olhar para o outro lugar, apenas para ver do outro lado da rua algo que renovou a desesperança e a raiva que sentia do mundo e da própria vida.
Descendo de um carro novinho, praticamente retirado da loja, e em meio a um grupo de pessoas que o cumprimentavam sorridentes estava seu velho amigo de infância, que provavelmente estava lá para visitar os pais, como sempre fazia nos finais de semana. Aos seus olhos ele parecia feliz e radiante, e por que não estaria?
Ao contrário dele, o amigo se dera bem na carreira que escolhera, crescendo a cada ano que passava e ganhando os rios de dinheiro que ele tanto tinha sonhado. Ao contrário dele, ainda estava com a namorada que tanto amava, de casamento marcado e com a vida andando exatamente nos trilhos dos planos que havia traçado. E a contrário dele, tinha um pai que o admirava e que não vinha com julgamentos ou pedras nas mãos todas as vezes em que o via, especialmente para lembra-lo do quanto errara no caminho que havia escolhido seguir.
Bufou impaciente, pensando que aquele dia realmente não estava indo nada bem, e que o pouco sossego que buscara no banco de uma praça que sempre tinha lhe trazido um pouco de paz em momentos de tristeza parecia escapar dele com a mesma rapidez com que a realização que tanto desejara escapava de seu caminho. Virou a cabeça novamente, em uma última tentativa de tentar descansar um pouco de suas agruras, e o que viu lhe deu um susto tão grande que teve um sobressalto, por pouco não caindo de lado pela beirada do banco de madeira.
Parado ao seu lado, com o mesmo corpo magro e desengonçando, olhos esbugalhados e observadores que pareciam sondar o interior de sua alma, e com as pernas finas de sariema cruzadas uma sobre a outra estava um velho conhecido seu, de sua família e de todos que viviam ou passavam pelos arredores daquela praça, olhando-o atentamente como se não estivesse fazendo nada de mais.
- Minha nossa Sapiêncio! Quer me matar de susto?! – Disse o rapaz, surpreso e irritado enquanto levava a mão ao peito.
- Boa tarde Juninho. Como vai você? – Perguntou Sapiêncio, com uma voz calma e preguiçosamente tranquila. A mesma com a qual sempre falava com as pessoas que passavam por ali, e que tanto irritava a outras, como o pai daquele rapaz, que sempre que mantinha alguma conversa com o mendigo lhe fazia pelo menos uma promessa de chutar-lhe o traseiro magro, embora a ameaça não passasse da etapa das palavras.
- Como eu vou? Vou a ponto de ter um infarto! Não faça mais isso, seu maluco! Desse jeito vai acabar matando alguém.
- Vire essa boca para lá, Juninho. Esse velho mendigo aqui é da paz. Só lhe vi de longe e quis conversar com um velho amigo, e também saber como ele estava.
- Então fique sabendo que esse velho amigo aqui está pior do que estava antes de você aparecer. – Falou irritado, e por um instante Sapiêncio se divertiu com o pensamento de como os filhos muitas vezes pareciam ser cópias perfeitas dos pais. Aquele rapaz lembrava não apenas no físico, mas também no temperamento o velho João, dono do boteco que ficava do outro lado da rua. O mesmo que sempre ameaçava com um petardo o pobre e frágil traseiro do mendigo.
“Se parecesse com dona Antônia seria um doce de rapaz. Mas é igualzinho ao pai, grosso como papel de enrolar prego... Só que também tem um coração mole e repleto de bondade, tal qual Seu João.” Disse aquilo em pensamento, não se atrevendo a aborrecer mais o rapaz, de quem gostava tanto e que já parecia tão irritado.
- Pode dizer a esse velho amigo aqui o que tanto está lhe aborrecendo?
- Não! – Retrucou, curto e grosso, parecendo-se cada vez mais com o pai quando não queria conversa com o insistente mendigo. Mas assim como fazia com Seu João, dificilmente Sapiêncio desistiria de falar com ele, e assim continuou, como se a falta de vontade de conversar do outro não tivesse ficado clara o suficiente.
- Ora Juninho, nunca ouviu falar que uma carga, quando partilhada, se torna bem menos pesada?
- E você nunca ouviu falar em bons modos e em respeitar a vontade dos outros de ficarem sozinhos? E pare de me chamar de Juninho. Meu nome é João.
- Hummmm... – Sapiêncio levou um dedo ao queixo e olhou para cima, parecendo pensar sobre algo, posição em que ficou por alguns instantes. Então continuou a falar, parecendo ignorar o comentário do rapaz sobre o desejo de permanecer sozinho. – Prefiro não chama-lo de João. Isso vai fazer confusão na minha cabeça por causa do seu pai, e como seu nome é João Júnior, só me restam as opções de Juninho e J.J., que pelo que me lembro era seu apelido quando era mais novinho.
- Detesto os dois nomes. – Disse João, amuado. – Na verdade os três, porque o outro é do cabeça dura do meu pai. – E olhou para Sapiêncio com um aborrecimento crescente. – Não vai me deixar em paz mesmo, não é?
- Não vejo problema com nenhum dos três nomes. – Respondeu Sapiêncio. – O primeiro é carinhoso, o segundo é descolado, e o terceiro é um nome forte e muito bonito. Quanto ao seu pai ser cabeça dura... É, disso não posso discordar, e além da cabeça, o pé dele é bem pesado também. Que o diga o meu pobre traseirinho.
- Exagero seu. Ele te chutou uma vez... e mesmo assim foi de leve. – Retrucou João, com a voz irritada, mas um pouco mais branda.
- Ahh, mas os efeitos da pancada ultrapassaram as eras. – Disse Sapiêncio, num tom que pretendia ser filosófico ou poético, mas que saído da boca do mendigo era tão cômico que não deixou de arrancar do rapaz um sorriso que tentou ocultar virando a cara para o lado, sem querer dar o braço a torcer e mostrar que aquela conversa não estava sendo tão desagradável quanto tinha dito que era.
- Não vai me deixar em paz mesmo, não é? – Perguntou João, olhando para ele com um misto de aborrecimento e resiliência.
- Há quanto tempo me conhece, J.J?
- Tanto tempo que já nem posso contar.
- Então ambos sabemos a resposta para sua pergunta. – E piscou um olho para ele, sorrindo em seguida e percebendo que um pouco da tristeza que encobria sua expressão se desvaneceu. – Agora me diga, o que está aborrecendo esse meu amigo, que sempre que vem aqui me conta uma piada ou chega com uma conversa cheia de pilhérias?
- Não tenho piadas hoje, Sapiêncio. Na verdade, tenho uma sim, mas ela não tem graça alguma. E essa piada é minha própria vida.
- E por que uma vida tão boa como a sua haveria de ser uma piada sem graça?
- Boa? Boa?! – João bufou com ironia e virou a cara, novamente irritado. – Minha vida não tem nada de boa cara. Só tenho levado para trás ultimamente. Um incidente atrás do outro que não está me dando tempo nem de respirar. Às vezes me sinto como... como um daqueles boxeadores que levam uma sequência de porradas, e quanto mais energia buscam, mais são empurrados contra as cordas. Estou nesse nível, e prestes a beijar a lona.
- Mas não dizem por aí que as lutas mais inesquecíveis são essas? As que são vencidas quando tudo parece estar perdido?
- Conversa! Histórias criadas para venderem livros e filmes, isso sim! – Retrucou aborrecido.
- Será? O mundo está cheio de exemplos reais desse tipo de história.
- Ah, Sapiêncio, não estou muito a fim de ouvir esses papos motivacionais. Quero mesmo é ficar sozinho e pensar em paz com os meus botões.
- Hummmm... tudo bem, tudo bem. – Sapiêncio descruzou uma perna, e depois cruzou a outra sobre a anterior, apoiou o queixo pontudo nos dedos ossudos e continuou. – Façamos o seguinte. Prometo que deixo você em paz, mas depois de me contar o que está acontecendo.
João revirou os olhos de uma forma quase teatral, querendo mostrar ao mendigo o quão irritado estava. Mas no fundo a ideia não lhe pareceu nada ruim. Na verdade, o que queria mesmo era desabafar com alguém, mesmo que esse alguém fosse o amigo pirado que tanto atazanava o juízo de seu pai e de tantas pessoas que já haviam cruzado seu caminho naquela praça.
- Tudo bem... – Falou num tom irritado, porém bem mais leve do que aquele que imprimira à voz momentos antes. – Mas promete que vai me deixar em paz depois disso? – No fundo João sabia que mesmo que Sapiêncio fizesse aquela promessa dificilmente a cumpriria, mas a ideia não o desagradou de um todo.
- Palavra de escoteiro. – Respondeu o mendigo, erguendo a mão em um gesto de juramento.
- E você já foi escoteiro alguma vez na vida?
- Mas claro! – Respondeu de imediato, olhando para João como se aquela pergunta fosse absurda.
- Onde? Nunca ouvi falar de que tenha sido escoteiro.
- Na minha cabeça, ora bolas. Na minha cuquinha já fui muitas coisas, inclusive presidente da república. – Disse Sapiêncio, erguendo o queixo de um jeito solene.
Daquela vez João não conseguiu conter o sorriso, e nem desviou o rosto para que o mendigo não o visse.
- Presidente da República! Essa é boa. Pagaria e muito para ver isso.
- Ah, não, não, meu amiguinho. Essa é uma experiência que não quero repetir nunca mais.
- E por que não? – Perguntou, curioso para ver até onde iria a loucura do mendigo e esquecendo por um instante as coisas que tanto lhe chateavam.
- Porque é muito chato ficar ouvindo todo mundo lhe pedindo dinheiro e favores o dia todo.
- E qual o problema com isso? Você também não pede a mesma coisa aqui na praça?
- É, mas eu não me ofereço para roubar ninguém em troca disso. – E piscou um olho para João, que murchou a boca e acenou a cabeça em concordância, mostrando que compreendia bem o que o mendigo queria dizer.
- Agora vamos. Já fiz meu juramento e contei meu segredo de já ter sido presidente da república. Chegou a sua vez de falar. O que está aborrecendo esse meu amigo geralmente irritadiço, mas também sempre sorridente?
João olhou para Sapiêncio perguntando-se do que adiantaria falar sobre as coisas que o magoavam para um mendigo que tinha pouquíssimo juízo, apesar de muita boa vontade. Mas logo lembrou-se das vezes em que tinha conversado com ele, e de como aqueles diálogos muitas vezes sem sentido tinham lhe ajudado de alguma forma, mesmo que os problemas, naquelas oportunidades, fossem apenas coisas sem importância se comparados com os que tinha agora, como uma paixão não correspondida ou dificuldades com alguma matéria no colégio.
- Tudo bem. – Disse, dando-se por vencido. – Tudo bem, eu falo.
E calou-se por alguns segundos, voltando a olhar ao redor, como para tomar coragem para contar àquele estranho que ao mesmo tempo era tão conhecido tudo o que estava se passando em seu coração. Então vislumbrou novamente as crianças brincando, representando a infância sem preocupação que tivera em uma época há muito passada.
Viu o casal de namorados trocando carícias e juras de amor, lembrando-o de como sua relação tinha ido por água abaixo, e por fim voltou a divisar o amigo de infância que efusivamente conversava com alguns conhecidos na calçada, ao lado de seu carro novinho em folha e da namorada com quem passaria a dividir a vida e os planos que juntos tinham traçado, sem que repentinamente ela lhe dissesse que não o amava mais e que tudo havia acabado.
João respirou fundo e suspirou, como se tentasse se livrar de alguma carga que internamente o consumia. Olhou então para Sapiêncio, que o encarava não com insistência, mas com uma expressão que parecia dizer que ele poderia levar todo tempo do mundo para falar o que sentia, e com aquele gesto o rapaz finalmente se sentiu à vontade, se não de falar tudo, ao menos de começar a fazê-lo.
- Me diga Sapiêncio, já se deparou com a realidade que lhe mostrava que a vida que achava que tinha sob controle na verdade mais se parecia com uma locomotiva descontrolada indo em direção a um trilho partido na beira de um precipício? – Ao acabar de fazer a pergunta ao mendigo, João imaginou que em sua loucura ele jamais poderia compreender o significado daquilo.
- E quem nunca se deparou com essa realidade? Apenas aqueles que são bobos demais para vê-la, ou os que tentam ser espertos o bastante para acharem que podem deixar de enxerga-la, o que no fim das contas dá no mesmo. No fim das contas todos os que se enquadram nessas duas realidades são estúpidos. – Respondeu o mendigo, deixando momentaneamente sem palavras o rapaz que o olhava.
- E quem são os sábios nessa história? – Perguntou, realmente desejoso de ouvir o que o mendigo achava.
- Aqueles que seguem o exemplo de outro sábio, que dizia que não sabia de nada. Por que no início, no meio e no fim do caminho nos deparamos com essa realidade, meu amigo. Que nesse trilho em que a locomotiva de sua vida segue, o maquinista no fim das contas é apenas mais um passageiro, e o controle que se acha que tem é tão ilusório e improvável quanto a foto de uma brisa.
- Pois é. – Falou João, com um franco desânimo. - Pelo visto eu faço parte da parcela estúpida que acha que sabe alguma coisa, quando na verdade não entende é nada.
- E o que você achava que sabia que acabou lhe deixando tão decepcionado quando viu a verdade? – Naquele momento os olhos esbugalhados de Sapiêncio, normalmente tão assustadores quanto cômicos acabaram se transformando em um convite para que João abrisse o coração.
- Eu... tanta coisa, cara. – João mordeu o lábio inferior e olhou para o alto, pensando em todos os desapontamentos que tivera e escolhendo sobre qual começaria a falar. – Antes de você chegar eu estava olhando aquela gurizada ali, brincando despreocupada no parquinho. Vê como eles são felizes, Sapiêncio? Nada os incomoda. Não se preocupam com o dia de amanhã, só com o hoje.
“Nada de acumular, de pensar em contas, em casas novas, em carros do ano, em mostrar aos outros o quanto têm e o quanto ainda podem ganhar. Sinto falta desse tempo. Hoje em dia já acordo pensando nas contas que vencerão semanas à frente, contando os minutos antes mesmo de levantar da cama e já chegando à conclusão de que não serão o bastante para que eu possa fazer tudo o que quero e preciso terminar antes que o sol se ponha. Mas essas crianças não pensam nisso. Não seria bom se tivéssemos ao menos metade da tranquilidade delas?
Sapiêncio não respondeu nada. Sabia que João tinha muito mais a dizer, e por isso manteve-se quieto, esperando que continuasse.
- Estava vendo aquele casal também. Aquele ali, embaixo da cerejeira, trocando beijos como se não houvesse amanhã. – João pôs um pouco de amargura na voz, revelando o que sentia em seu coração, e não foi difícil para o mendigo perceber aquilo. - Pouco tempo atrás eu achava que minha vida inteira seria assim com minha namorada... quer dizer, minha ex-namorada. Agora estou aqui, assistindo o namoro alheio enquanto lambo minhas feridas por causa de alguém que já não gosta mais de mim.
O mendigo olhou para o casal balançando positivamente a cabeça e abrindo um sorriso discreto, quase imperceptível enquanto pensava quão bonito era o amor. Mas não descuidou de manter-se atento a João, e o rapaz continuou.
- E ali, do outro lado da rua, encostado naquele carro novinho, com um sorriso de orelha a orelha, o emprego dos sonhos e uma noiva linda está o meu amigo de infância. Não me leve a mal, Sapiêncio, fico muito feliz por ele, é quase um irmão para mim e quero que se realize em todos os aspectos. – Fitou o mendigo com um olhar compenetrado e continuou. – Mas seria hipocrisia da minha parte dizer que não estou com inveja.
“E como estou! Da sorte no amor, do olhar despreocupado, do sucesso no emprego, e talvez ainda mais do fato de o pai dele o apoiar em tudo o que faz, enquanto o meu, grosso como sempre, continua me condenando por ter seguido meu sonho ao invés de ajuda-lo a conduzir o boteco. Ou melhor, “o negócio da família”, como ele gosta de chamar, sem me dar qualquer apoio em um momento como esse. Às vezes me pergunto como minha mãe aguenta tanto mau humor.”
Sapiêncio sorriu por dentro ao pensar em como o rapaz não se via no pai, já que eram quase idênticos em tudo, imaginando como é difícil para todos, sem exceção, enxergar os próprios defeitos, e divertiu-se também com a lembrança de como Dona Antônia não apenas sabia lidar com as grosserias do marido com uma habilidade sem igual, mas também era mestra em identificar os momentos de dar-lhe uma bronca e coloca-lo no lugar, deixando-o quieto como um garotinho que tinha que cumprir o castigo que lhe fora aplicado.
- Enfim... é isso. Esse é o trem... – E rodou o dedo para mostrar tudo o que mostrara ao mendigo na praça, apontando em seguida para si mesmo. – E esse é o maquinista. O precipício, bem, acho que já estou chegando bem perto da beirada. – E deu um sorriso repleto de tristeza para Sapiêncio. – Nem mesmo quando procuro descanso encontro sossego. Vim aqui para a praça para relaxar e colocar os pensamentos no lugar, como sempre gostei de fazer. E o que acabo encontrando? Coisas que só me lembram do meu problema, como se a vida estivesse passando na minha cara as coisas que estão acontecendo.
João calou-se de repente, e voltou a olhar ao redor com uma expressão que tentava mostrar resiliência, mas onde se via apenas tristeza e desapontamento. Sapiêncio então pensou no significado daquela época, e em como algumas pessoas gostavam tanto de reclamar e de enxergar em tudo o fim do mundo, ao invés de imitarem o exemplo de alguém que sofrera coisas infinitamente piores, sem proferir uma palavra sequer de reclamação.
- Talvez seja um sinal. – Disse de repente, quebrando o silêncio que se instalara entre eles.
- O que? Sinal? Do que está falando? – A tristeza abandonou por um segundo o rosto de João, que olhava para Sapiêncio com uma expressão confusa.
- A praça, as coisas que lembraram seus problemas, até mesmo euzinho aqui, presente em um momento como esse. Talvez tudo isso seja um sinal.
- Um sinal de que eu deveria ter ido a outro lugar. Só pode ser isso. – Retorquiu com sarcasmo. Mas vendo que o mendigo nada falava concluiu que ele estava falando sério, e perguntou: – Explique melhor essa coisa de sinal.
- Sabe que dia é hoje? – Quis saber Sapiêncio, conferindo as unhas e ignorando a pergunta de João, como se tivessem mudado completamente de assunto.
“Doido como sempre”, pensou o rapaz, sem estranhar aquela atitude e perguntando-se o que se passaria em uma mente tão esquisita e repleta de maluquices como a do mendigo.
- Hoje é sábado, Sapiêncio. Vem antes do domingo e depois da sexta. E o que eu deveria estar fazendo hoje era descansar e tentar colocar a mente no lugar ao invés de ficar aqui perdendo tempo com quem muda de assunto a cada segundo.
- Mas quem disse que eu mudei de assunto? Mudei? – E olhou confuso para João, como se realmente acreditasse que fizera o que o rapaz disse que tinha feito.
- Claro que mudou. Estava falando de um sinal e logo em seguida perguntou sobre a data.
- Ah, isso. – E abanou o ar com a mão, como se aquilo não tivesse importância. – Não, meu amiguinho, eu não mudei de assunto. Está tudo no mesmo balaio, e no final você vai entender porque.
- E o que tem a ver a história do sinal com o fato de hoje ser sábado?
- Paciência, meu amigo. Me escute e vai entender. E voltando ao assunto, sim, hoje é sábado, mas não é só isso. A data de hoje tem um significado maior.
- Sim, sim. Eu sei. Hoje é sábado de aleluia. – Disse João, tentando manter a paciência.
- Também conhecido como sábado santo, e véspera da Páscoa. – Falou o mendigo, como se estivesse lecionando para um aluno.
- É, é. Isso mesmo. Mas continuo sem entender a relação.
- Relação? Mas que relação? – O mendigo parecia confuso, como se tivesse perdido de repente o fio do raciocínio.
- Ora Sapiêncio, tenha paciência! Não estou com muito humor para suas doidices. Se for para explicar, faça isso logo de uma vez.
- Ah, sim. Claro. A relação. – Sapiêncio levou os dedos que pareciam gravetos em direção ao queixo, raciocinou um pouco e continuou. – Você é católico, não é João?
- Sabe que sim.
- E como filho de dois católicos praticantes, deve ter frequentado aqueles encontros que têm antes de fazerem a primeira comunhão, certo?
- Catecismo. – Completou João. – Sim, frequentei e fiz a primeira comunhão.
- Então aprendeu nesses encontros muita coisa sobre a Bíblia e a Palavra de DEUS, correto?
- Sim, sim. Aprendi muita coisa, mas também não sou nenhuma sumidade nesse tipo de conhecimento. Sei apenas do básico. – E parou por um segundo, olhando para o mendigo. – Por acaso quer dizer que é um sinal de DEUS você estar aqui nessa praça para falar comigo no dia de hoje?
- Paciência, meu amigo. Paciência. Logo vai saber o que eu quis dizer. Agora continuando. Disse que sabe pelo menos o básico.
- É, sei. Mas não venha me perguntar quais são os versículos exatos sobre determinada passagem porque garanto que na maioria dos casos não vou saber responder.
- Não precisa saber dos versículos, quero apenas que me diga algumas coisas. Por exemplo... lembra se nas andanças que teve por aqui há mais de dois mil anos o Cara lá de cima alguma vez disse que as coisas seriam um perfeito mar de rosas? Um céu de brigadeiro lindo, cristalino e sem percalços? Um dia ensolarado de verão em uma praia de areias brancas com uma brisa suave batendo no rosto enquanto descansa embaixo da sombra de um coqueiro?
- Não. – Respondeu João, depois de passar um tempo em silêncio. – O que Ele disse foi que no mundo enfrentaríamos aflições.
- Mas que mesmo assim deveríamos ter bom ânimo, porque Ele venceu o mundo. Não foi assim?
- Eu sei Sapiêncio... – Disse ele, depois de dar um suspiro. – Mas citar um versículo é uma coisa. O problema é na hora de ter que encarar as aflições. Sempre li essa passagem e me senti encorajado por ela, mas agora que estou enfrentando o problema... bem, é aquela história. Falar é fácil, mas fazer é que são elas. Quando falamos isso nos enchemos de fé e coragem. Mas quando o bicho pega...
- O bicho só pega se estivermos indefesos, meu amigo. – Sapiêncio olhou para ele e sorriu, e naquele momento não pareceu louco. João nunca tinha visto o mendigo com aquela expressão, e aquilo o surpreendeu. – Vou citar o versículo completo. Tenho uma cabeça boa para decorar. Já lhe disse que antes de ser pedinte eu era ator de novelas? Passava o dia decorando textos.
“Pronto”, disse João para si mesmo, “agora está doido de novo”, e pensou na bagunça que deveria ser o interior da cabeça do mendigo.
- O versículo... – Continuou ele, pondo o dedo magro em riste e adotando uma expressão digna de um professor que está para ensinar algo importante a um aluno. – É João, 16:33, e diz o seguinte, “Eu disse essas coisas para que em mim vocês tenham paz. Neste mundo vocês terão aflições; contudo, tenham ânimo! Eu venci o mundo". Entendeu?
- Sim, Sapiêncio, foi exatamente isso que eu disse há pouco. – Respondeu João, tentando manter a paciência.
- Não disse ele todo, mas apenas uma parte. Esqueceu de algo muito importante.
- Do que?
- “Eu disse essas coisas para que em mim tenhais paz”. – Falou, e agora a expressão de quem não tinha loucura alguma havia voltado. – Não adianta decorar as passagens e rezar no piloto automático se não fizer o mais importante. Buscar a paz no único lugar em que ela pode ser encontrada. Disse que veio atrás dela nessa praça... mas acho que não foi procura-la no lugar certo.
- Está dizendo que eu deveria ter ido à igreja? Já fui e não adiantou nada.
- Não é o lugar em que você procura a paz. Mas sim, o “Lugar” em que deve procura-la. – Falou, abrindo um discreto sorriso para João.
- Sapiêncio, lá vem você de novo com aquela coisa de falar em enigmas. Estou com a cabeça cheia e não entendi nada do que falou, então, se realmente quer me ajudar, faça o favor de explicar melhor. Não por charadas ou metáforas, mas direto e reto, como deve ser.
- O que eu quis dizer, meu amigo, é que não é o lugar físico em que você procura que importa. Sim, é necessário que vá à igreja, mas se for até lá sem o coração aberto estará apenas indo a um lugar no plano físico, sem realmente procurar de verdade. Se não estiver com o coração aberto não vai encontrar o que está buscando.
- Então por que Ele não me procura e me ajuda? Não cansam de dizer que Ele está batendo em nossa porta? – Contestou, mas não havia raiva naquela retorção. Apenas desapontamento.
- E você abriu? Ao menos escutou enquanto Ele batia? Está escutando enquanto está batendo? Você pode ter ido procurá-lo no lugar errado, mas talvez Ele tenha vindo até aqui para te encontrar.
- Aquela história do sinal de novo? – Perguntou com um ar cansado.
- Talvez. Ou acha que é uma coincidência ter vindo aqui só para se deparar com tudo o que lembrava o sofrimento que está passando?
- Tudo bem. Vou tentar acreditar em você. – Virou-se para o mendigo e o encarou com um ar penetrante. Olhos em que podia-se facilmente enxergar que ele não estava acreditando em nada daquilo. – Vamos supor que o que está dizendo seja verdade. Então me responda, se vim buscar paz, do que adianta encontrar mais sofrimento lembrando dos problemas que têm me afligido? Por acaso sabe o que Ele está me dizendo? Se quero paz, porque Ele me dá lembranças da dor?
- J.J, meu amiguinho, eu não falo por Ele. Não tenho essa pretensão. Mas se quer mesmo minha opinião, eu diria que o que nosso Amigão está tentando dizer é que deve busca-lo. Mas para isso não deve tentar fugir da sua cruz. No dia em que foi necessário, nosso Amigo não fugiu da Dele, e olhe que ela era infinitamente mais dolorosa que a sua. É insensatez até tentar comparar.
“Agora me diga... no momento de maior dor, onde o sofrimento era indizível e dilacerante, no instante em que poderia ter reclamado, gritado, xingado e até mesmo desistido de tudo, o que nosso Amigo fez? Ele abraçou sua Cruz e seguiu em frente. E quando tudo parecia perdido, sem resposta e sem saída, a quem Ele procurou?”
Sapiêncio não esperou que João respondesse, e com um sorriso ergueu para cima os olhos esbugalhados, fazendo o mesmo com o dedo ossudo. O rapaz também voltou o olhar para onde ele apontava, achando que não veria nada, mas esperando encontrar algo que aplacasse seu sofrimento.
- Pode olhar para o alto, J.J. Para os lados, para frente e para trás, mas se fizer isso só com os olhos do corpo, não verá nada.
- E como faço para conseguir ver de outra forma? – Perguntou, envolvido pelo que o mendigo dissera e realmente querendo saber a resposta.
- Entregue... confie... procure. – Disse Sapiêncio, com uma calma que espantou João. – Se fizer isso de coração aberto, acho que vai conseguir encontrar. “Peçam, e lhes será dado, busquem, e encontrarão; batam, e a porta lhes será aberta. Pois todo o que pede, recebe; o que busca, encontra; e àquele que bate a porta será aberta. “Qual de vocês, se seu filho pedir pão, lhe dará uma pedra? Ou, se pedir peixe, lhe dará uma cobra? Se vocês, apesar de serem maus, sabem dar boas coisas aos seus filhos, quanto mais o Pai de vocês, que está nos céus, dará coisas boas aos que lhe pedirem! Assim, em tudo, façam aos outros o que vocês querem que eles façam a vocês; pois esta é a Lei e os Profetas”. Não esqueça que antes de ressuscitar e subir Ele prometeu que sempre estaria conosco. E olha, esse Cara é ótimo em cumprir promessas.
- E você acha que eu não tenho batido na porta, Sapiêncio? Todos os dias eu peço a DEUS que as coisas melhorem, e tudo o que escuto em resposta é silêncio.
- Você pede o que você quer... talvez DEUS queira antes te dar o que você precisa.
- Mas eu preciso das coisas que descrevi. Um bom emprego, uma mulher que amo e que me ame, e paz, como a que aquelas crianças sentem. Não estaria pedindo se não precisasse. Agora, o que não preciso é de um pé na bunda, uma carta de demissão e a angústia da incerteza do que vai acontecer daqui para frente.
- Quando Cristo pediu para que o cálice fosse afastado Dele, imediatamente Ele disse que fosse cumprida a vontade do PAI, porque sabia que era daquela forma que deveria ser. Ele não fugiu da Cruz que tinha que carregar, mas a abraçou e pediu forças para prosseguir. Acho que é isso o que quer que você peça. Não pedir para afastar-se do que deve encarar, mas para ter Nele a força de que precisa para isso. Peça, e lhe será dado... para que em mim tenhais paz.
“Todos nós temos nossas cruzes, João. Mas não podemos fugir delas, e sim carrega-las. Inspire-se em alguém que carregou a Dele há muito tempo, por mim e por você. E peça ajuda a Ele para conseguir fazer isso. Garanto que não vai ficar desamparado.”
Sapiêncio calou-se, assim como João, e os dois ficaram daquele jeito, em um silêncio quebrado apenas pelo trinado dos pássaros cantando acima de suas cabeças. O mendigo contemplado, como costumava fazer quando não estava aconselhando alguém ou tolhendo a paciência de alguma pessoa, e o rapaz pensando sobre tudo o que tinha acabado de ouvir.
Não, não era fácil aceitar os problemas. Era mais simples tentar fugir deles, pedir que fossem afastados, eliminados, resolvidos por outra pessoa. Mas uma vez que surgissem teriam que ser resolvidos, o que não queria dizer que não fosse contar com uma ajuda para isso. Uma que era muito especial. Percebeu então que mesmo sendo louco como era, o que o mendigo falara tinha sentido.
- Acho que entendi o que quis dizer. – Falou, e depois de olhar para ele e dar-se conta que tudo o que sabia sobre o mendigo limitava-se ao que via dele naquela praça, perguntou, curioso: - Mas e você, Sapiêncio? Tem alguma cruz para levar em sua vida?
- Todos temos, meu jovem.
- E qual é a sua?
Sapiêncio baixou os olhos e fitou o chão, calado. Em seu rosto uma expressão se formou, e pela primeira vez desde que colocara o olhar naquele mendigo maluco João achou ter visto um traço de tristeza em sua face. Algo que nunca tinha vislumbrado antes.
- O despeito das pessoas. O destrato, a arrogância, a grosseria, os olhares tortos e a indiferença. Sofro com isso, e sofro ainda mais porque ao agirem assim essas pessoas estão prejudicando as próprias vidas, porque suas almas ficam paradas no tempo e no espaço, sem evoluírem. Sem crescerem. Caminhando diretamente para a escuridão de seu próprio egoísmo.
Calou-se novamente, e de repente olhou para João sorrindo, e o rapaz viu algo semelhante ao sol saindo de trás de uma nuvem cinzenta, porque repentinamente ali estava Sapiêncio novamente, o mendigo maluco que tirava o juízo de uns, e enchia de alegria o coração de outros, e percebeu naquele momento que a tristeza em nada combinava com ele.
- Mas sabe o que eu faço quando essa cruz fica pesada, J.J? – Perguntou, com os olhos brilhando de satisfação.
- Você procura. Pede, e abre a porta. Não foge da cruz, mas chama alguém para ajuda-lo. Alguém muito forte.
- Tão forte que carregou os pecados do mundo nas costas. – E piscou um olho para João. – Por que não tenta fazer o mesmo?
João pensou por alguns segundos. Olhou então para as crianças, para o casal que trocava juras de amor, e para o amigo sorridente do outro lado da rua. De repente sentiu menos pesada a carga do sofrimento que sentia, e sorriu por dentro, como faz alguém que acaba de encontrar a resposta para um problema, e vê que ela era tão simples que estava ali o tempo todo, só esperando para ser descoberta.
Então encarou novamente o mendigo e disse:
- É... por que não tento? – E sorriu, dando um tapinha no ombro magricelo de Sapiêncio, que sorriu em resposta. – Vou para casa agora. Amanhã vai ter o almoço de Páscoa e mamãe já deve estar colocando a mão na massa para deixar tudo pronto.
- Mande um abraço para seus pais. – Disse Sapiêncio, enquanto João se virava e ia embora. Mas um pouco mais à frente o rapaz parou, virou-se novamente para o mendigo e perguntou:
- Por que não almoça com a gente amanhã?
- Dona Antônia sempre prepara um prato e traz para mim aqui na praça.
- Não. Falo em realmente almoçar conosco. Sentar à mesa e nos fazer companhia.
- Nááá. – Disse o mendigo, depois de cogitar a ideia. – Acho que seu pai não vai gostar muito.
- Bobagem. Ele é grosso daquele jeito, mas é doido por você. – Então sorriu e pensou um pouco, completando o que dissera. – Todos somos. Portanto, apareça, porque se não for, eu mesmo dou conta de dar um belo de um chute nesse seu traseiro magro.
Sapiêncio riu com o rapaz e acenou em concordância, e assim encerraram aquela conversa. João partiu para casa, sentindo o coração mais leve do que estava no momento em que sentou no banco da praça. Não, os problemas não tinham acabado, mas ele sabia que agora o peso deles se tornaria bem mais leve, porque compreendera algo que não tinha entendido antes.
Até aquele momento pedira que os problemas fossem afastados, mas em instante algum tinha pedido ajuda para resolvê-los. Sim, teria que carregar sua cruz, mas poderia contar com um auxílio imenso para isso. Bastava ir atrás desse Auxílio. Procurá-lo, pedi-lo, e aceita-lo, abrindo a porta para que Ele entrasse. Sentindo um pouco do peso se esvair com aquele pensamento.
De seu lado, Sapiêncio olhou para o rapaz enquanto ele ia embora, feliz pelo convite que tinha recebido e também por perceber novamente que tinha razão quanto a tudo o que tinha falado. Porque a indiferença, o desprezo e o egoísmo que via constantemente na atitude das pessoas fora suprido pelo carinho e amizade daquele rapaz, e naquilo ele teve mais uma vez a confirmação de algo que já sabia.
Sua cruz tinha ficado mais leve, porque alguém abrira a porta para um certo Cara que nela batia. E ajudando João a carregar sua cruz, o mendigo tinha sido ajudado por esse mesmo Cara a carregar a dele.
E enquanto escutava o suave trinado dos passarinhos cantando, Sapiêncio pensou mais uma vez naquele Cara, e sorriu ao ouvir dentro de sua própria mente uma Voz que enchia seu peito de paz.
“Foi por você”, ela disse.
“Foi por todos vocês”.
Uma Feliz Páscoa.
Que DEUS os abençoe
Marias
Tão belas palavras são ditas, em anúncios e revistas, outdoors e jornais, em letras tão garrafais, com mensagens de emoção, carinho e reflexão, sobre um dia e seu legado, de tanta grandeza marcado, pela força de quem lutara, de quem tanto conquistara, e quem tanto ao mundo dá, Mulheres, firmes guerreiras, amigas e companheiras, dizem as palavras de efeito, mostrando um mundo perfeito, mas que na crua verdade, é inverso à realidade, que as envolve todo dia, mostrando que esta falsa alegria, é mais um desejo no peito, pois há tanto ainda a ser feito, para que se torne real, o que é ainda utopia.
E entre tantas guerreiras, havia aquelas quatro, que de todas um retrato, com suas vivências formavam, e assim uma imagem mostravam, de mulheres tão calejadas, pela vida maltratadas, cada qual com sua história, de derrotas e vitórias, recebidas pela estrada, na dolorida caminhada, com um sonho dentro do peito, para terem o seu de direito, para terem mais em seus dias, só algumas alegrias, que pudessem consolá-las, preenche-las, realiza-las, naquela vida sofrida, que assim era vivida, por aquelas quatro Marias.
Das Marias a primeira, cedo ia na labuta, brigar em encarnada luta, por algo que fosse melhor, derramando o seu suor, com fervura e com vontade, encarando a realidade, de uma vida que era sofrida, de uma vida tão dolorida, onde pouco ia ganhar, para um pouco poder dar, àqueles que tanto amava, a fim de que não faltasse, um teto a lhes amparar, comida a lhes saciar, e um tanto de estudo, para que um dia talvez, pudessem na sua vez, de um nada tirar tudo.
Maria pouco dormia, pois muito trabalho havia, para um pouco poder ter, e dar aos filhos de comer, e um lugar onde morar, um teto para se abrigar, umas roupas para vestir, e assim cada dia fugir, do fantasma da pobreza, enfrentando a incerteza, do que o futuro traria, de qual fera enfrentaria, em tão dura caminhada, mas Maria pouco ligava, em ter de encarar qualquer dor, pois uma força a movia, que pelos filhos sentia, e essa força era o amor.
Das Marias a segunda, era nova e sonhadora, terna e acolhedora, que queria um amor perfeito, que pudesse lhe encher o peito, lhe trazer felicidade, era essa sua vontade, o seu sonho, o seu desejo, seu furor e seu arquejo, sua simples ambição, mas a vida disse não, quando ao invés de um terno amor, só veio a encontrar a dor, nos braços de quem não lhe amava, de alguém que mal lhe tratava, perseguia e humilhava, machucando e espancando, diminuindo e minando, aquele tão belo ser, que nas mãos de um covarde, tão repletas de maldade, não merecia sofrer.
Daquela dor que sentia, se livrar ela queria, mas por mais que se esforçasse, por mais forte que tentasse, esse escopo não conseguia, porque pela frente havia, a frieza de uma sociedade, que virava a cara à verdade, evitando a realidade, por achar que era normal, um homem fazer tanto mal, a quem o bem só fazia, e assim ia Maria, sendo aos poucos massacrada, até que nada sobrasse, além da notícia estampada, numa página amassada, que dizia em mais um dia, que alguma outra Maria, fora ali assassinada.
A terceira das Marias, igualmente lutadora, firme batalhadora, dedicada e aplicada, dia e noite trabalhava, para ganhar seu espaço, conquistando passo a passo, com uma forte ambição, buscando uma posição, que enxergava lá no alto, mas para Maria o fato, era o abismo que se abria, afastando o que ela queria, com afinco conquistar, porque para aquele lugar, pelo qual tanto ansiava, já havia carta marcada, uma vaga há muito guardada, para um outro qualquer, que ao contrário de Maria, que o lugar tanto queria, não nascera uma mulher.
E assim Maria seguia, perseguida e injustiçada, excluída e relegada, a uma menor posição, em virtude de uma tradição, que excluía qualquer condição, que a permitisse avançar, um posto mais alto almejar, um degrau acima subir, um pouco mais longe seguir, para ver assim alcançado, um sonho há tanto sonhado, mas que só um sonho seria, porque para aquela Maria, o portão já fora fechado.
E a quarta das Marias, cuja fronte era marcada, pela idade já avançada, pela passagem dos anos, por acertos e enganos, que na estrada da vida, na caminhada sofrida, foram se acumulando, alguns seus sorrisos levando, alguns alegrias trazendo, sorrindo, vivendo, sofrendo, lutando, perdendo e ganhando, e assim foi caminhando, por esse imenso traçado, sem deixar jamais de lado, a paz e resiliência, a imensa paciência, na espera pelo melhor, mesmo vivendo o pior, mesmo perdendo um marido, uma mãe, um pai e um filho, e mesmo dilacerada, se erguia daquele nada, para assim seguir em frente, firme e resiliente, sem na vida se queixar, essa era a quarta Maria, que a tantos mostrou como amar.
Cada qual com suas dores, alegrias, dissabores, nessa vida são exemplos, que mesmo em meio aos tormentos, um sorriso podem abrir, levantar após cair, se erguer depois das quedas, recolher aquelas pedras, que no seu caminho havia, reunindo-as cada dia, para que assim doravante, no futuro mais adiante, com elas possam construir, uma escada para subir, para o ponto que almejam, o sonho pelo qual lutam, a felicidade que buscam, o amor que tanto desejam.
Maria era os seus nomes, como aquela que no passado, uma missão tinha aceitado, mesmo sabendo a seu tempo, o tamanho do sofrimento, que teria pela frente, com a alma trespassada, ferida, despedaçada, pela dor de ver um filho, massacrado e humilhado, perseguido e torturado, por aqueles que amava, por aqueles que salvava, da eterna perdição, dando a eles salvação, e vendo aquilo abalada, Maria apenas calava, com a dor em seu coração.
Maria era mulher, assim como as outras quatro, que eram em si um retrato, daquela que dera o exemplo, suportando o sofrimento, guiada pela esperança, da luminosa mudança, que um dia ainda virá, e assim se põem a lutar, sem baixar jamais a guarda, sem temer qualquer espada, sem medo de enfrentar, seja riso ou tristeza, suavidade ou dureza, porque no peito de Maria, bate forte um coração, que é em si uma fortaleza.
Maria era mulher, e toda mulher é Maria, um retrato de alegria, de doçura e suavidade, de resistência e bondade, fragilidade e vigor, de quem leva no peito o amor, para onde quer que vá, nos ensinando a amar, desde que somos semente, plantados dentro do ventre, que nos carrega na vida, que nos dá abrigo e guarida, nas horas de frio e tristeza, nos mostrando que há beleza, onde não podemos ver, que nos mostra que viver, é eterna poesia, é felicidade e magia, não cabendo num só dia, uma simples homenagem, a quem inspira coragem, de enfrentar o que vier, coragem de ser alegria, pois coragem és tu Maria, e Maria és tu, Mulher.
Feliz Natal
As pessoas caminhavam na rua, com sua pressa costumeira, passando umas pelas outras sem cumprimentos, acenos ou sequer um olhar trocado, como se apenas elas existissem no mundo e todos os demais fossem apenas sombras que cruzavam seus caminhos, tão importantes quanto um grão de areia no meio do deserto, o que fazia daquele um perfeito exemplo de mais um dia comum. Gente com pressa, de cara amarrada, gente que enquanto queria tudo, acabava não possuindo nada. Ao menos nada que realmente importasse.
Mas a despeito da aparência aquele não era um dia comum. Não, aquele era o dia mais importante do ano. Data em que as pessoas se confraternizavam, deixavam de lado suas rusgas e diferenças e se reuniam para celebrar um nascimento ocorrido milhares de anos antes, dando início a uma mudança que modificaria toda a história da humanidade.
Ao menos era o que o rapaz sentado no ponto de ônibus achava. Mas aquele pensamento perdia um pouco de força a cada dia que passava, assim como ele perdia também um pouco de fé no que concernia à percepção da humanidade sobre a importância daquele dia, vendo a forma como as pessoas se comportavam, se conduziam, e se tratavam umas às outras.
Com um semblante triste no rosto, diferente da expressão de alegria e esperança que costumeiramente ostentava naquela data, ele observava as pessoas que passavam diante do ponto, com olhares vazios e sempre apressadas para chegar a algum lugar, embora no fundo achasse que nenhuma delas sabia realmente onde estava querendo chegar.
Enquanto aguardava a chegada do ônibus, vestindo seu jeans surrado, seus tênis gastos e sua camisa ligeiramente puída em uma das mangas ele olhava o que acontecia ao seu redor, e no curto espaço de tempo em que estivera ali já presenciara ao menos três motoristas se xingando com uma agressividade que o espantara.
Vira dois homens por pouco não chegarem às vias de fato porque em sua pressa para chegarem a algum lugar tinham acidentalmente se esbarrado, o que em outros tempos traria no máximo um olhar constrangido de um para o outro seguido de um pedido de desculpas trocado e aceito por ambos, que seguiriam suas vidas normalmente depois daquilo.
Mas naqueles dias recentes, em que tudo parecia ser motivo para conflitos, discussões, rusgas e desentendimentos, nenhum dos homens pediu desculpas ao outro, passando a um xingamento mútuo que chamou a atenção dos populares, e que só não chegou a uma efusiva troca de socos porque um guarda passava pelo local e com um cassetete na mão e um olhar ameaçador no rosto mandaram aqueles passantes exaltados circularem, sob pena de passarem o natal no xadrez.
Presenciara um homem de semblante irritado vestido de papai Noel cujo rosto se iluminara brevemente ao ver passar uma moça com uma saia que pouco espaço cobria abaixo da cintura, assobiando para ela e dirigindo-lhe palavras que fariam corar o mais pervertido boêmio, e isso na presença de duas crianças que lhe diziam insistentemente o que queriam ganhar naquele natal.
Olhou para aquelas mesmas crianças e pelo seu anseio quase doentio pela imagem da figura vestida de vermelho e sustentando enormes barbas brancas no calor do meio dia, e perguntou-se se na casa em que viviam lhes fora ensinado alguma vez o verdadeiro significado daquela data, em que o mundo inteiro ganhara sim um presente, mas que ia muito além de qualquer comparação com bens materiais trazidos por um velhinho com um saco nas costas. O presente do nascimento de um Salvador.
O rapaz virou o rosto para o outro lado, apenas para ver pelo menos outras dez pessoas vestidas com a indumentária vermelha expelindo ruidosos e nada sinceros “ho ho hos” enquanto iam de um lado ao outro na frente das lojas para as quais tinham sido contratadas naquele período, cada uma composta de árvores de natal, enfeites, bonecos de neve feitos na realidade de isopor, e renas de plástico puxando trenós coloridos, mas em nenhuma delas viu um bebê deitado em uma manjedoura cercado de pessoas simples e animais do campo.
Em cima dos postes, bengalas luminosas, árvores de natal e contornos de cabeças de papai noel eram pendurados, para brilharem quando a noite chegasse, com o intuito de encantar as pessoas com a beleza da decoração natalina, e assim como nas lojas, não havia ali qualquer menção ao nascimento que mudara de uma forma tão definitiva a história do mundo.
Aquilo tudo o fez pensar, assim como vinha fazendo no último ano, em que vira tantas brigas, conflitos, discussões, separações, cismas por questões políticas, guerras pelo mundo, agressões gratuitas, banalização da sexualidade e da violência e propaganda constante contra a família, a religião e contra tudo em que acreditava, e que poucas pessoas pareciam respeitar naqueles dias.
O pensamento trouxe então de volta o questionamento que vinha se fazendo havia algum tempo, abalando suas convicções e derramando dúvida em uma escolha que há muito tinha feito, e que tempos atrás parecia à prova de qualquer incerteza que pudesse aparecer. Mas agora não parecia mais. A dúvida brotara, impedindo-o de subir no ônibus que parou em frente ao ponto, e que o levaria ao destino que buscava naquela manhã.
Preferiu não entrar. Já não tinha certeza se deveria fazê-lo. Já duvidava da própria convicção da escolha que fizera anos antes, e pela qual vinha batalhando com tanto afinco nos últimos tempos. Era natal, mas não parecia natal. Parecia apenas uma festa espalhafatosa em que, assim como em todos os dias do ano, as pessoas brigavam, disputavam, se desentendiam, roubavam, traíam, matavam, mentiam, e zombavam de um homem que morrera exatamente por elas tanto tempo atrás.
Era natal, mas não parecia natal, assim como não parecia mais que o caminho pelo qual optara era o correto a ser seguido.
O jovem, que queria ser padre, apenas observou calado o ônibus com destino ao seminário partir, deixando-o ali, sentado em um ponto em meio à decoração natalina que remetia apenas a gastos e consumo. Sentado em meio às pessoas distraídas que só deixavam de ignorar umas às outras se fosse para entrarem em brigas e discussões. Sentado em meio às dúvidas que pareciam estar fincando raízes em seu coração repleto de perguntas.
“Para que?”, ele se questionava. “Para que dedicar uma vida a quem deseja apenas perder a alma? Para que tentar salvar uma pessoa cujo único objetivo era ter mais, ganhar mais, possuir mais, sem saber que na verdade nada tinha que valesse a pena possuir? Para que buscar ajudar quem apenas tentava prejudicar os outros, fazer-lhes mal ou crescer às suas custas?”
As perguntas se assomavam em sua mente quando algo chamou sua atenção. Um senhor, apoiando-se em uma bengala aproximou-se lentamente, parecendo bastante cansado, e se recostou no ponto de ônibus, permanecendo de pé porque o banco estava cheio de pessoas e nenhuma delas se deu ao trabalho de levantar-se para lhe oferecer lugar, embora estivessem em ótimas condições físicas.
Tocado pela condição do homem, e ao mesmo tempo irritado com as pessoas que egoisticamente olhavam seus celulares ignorando propositalmente o idoso, ele levantou-se e ofereceu lugar ao velho.
- Obrigado, meu rapaz. – Disse o homem, com uma voz rouca e pouco audível. – O dia está bem quente hoje, e em momentos assim a idade parece aumentar consideravelmente de peso.
- Não precisa agradecer. – Disse o jovem. – Fiz apenas uma gentileza. – E disse isso em voz alta, para que as outras pessoas escutassem, mas nenhuma delas pareceu dar importância a ele, o que apenas aumentou seu desgosto com os demais.
- Gentileza sempre foi algo importante, meu filho. E precisa ser reconhecida e agradecida, especialmente nos dias atuais, em que são tão raras.
- Nesse ponto concordamos. – O jovem olhou com desgosto as outras pessoas ao dizer aquelas palavras. – Gentileza e educação são coisas cada vez mais raras.
O velho seguiu o olhar do rapaz, vendo que ele observava as outras pessoas que não tinham oferecido o lugar, e percebeu em seu rosto e em suas palavras a amargura que estava sentindo.
- Parece irritado com alguma coisa. Se me permite o comentário, é claro. Não quero parecer intrometido. Você está bem, meu jovem?
O rapaz olhou para o velho sem vontade alguma de responder aquele comentário, mas assim que viu sua expressão, seus olhos pacatos e o sorriso em seu rosto, foi imediatamente desarmado, e sentiu ali uma espécie de acolhida, algo que já não sentia havia algum tempo. Vinha guardando para si mesmo os incômodos e as dúvidas que estava sentindo, e com o tempo a vontade de abrir-se com alguém tinha se tornado quase insuportável.
E com aquele velho de olhar sereno ele sentiu-se repentinamente tomado pela vontade de contar o que se passava em seu coração, mesmo sendo um completo estranho, não sabendo dizer se era pela necessidade de deixar sair aquela torrente de sentimentos que há tanto tempo vinha guardando, ou se pura e simplesmente porque algo na expressão serena e acolhedora do homem dizia que ele podia ficar à vontade para falar.
- Não. Não está sendo intrometido. Na verdade, há muito tempo ninguém pergunta se estou bem. – Falou em tom de desabafo.
- Mas que coisa. – O velho pareceu intrigado. – Que tipo de amigo não pergunta se o outro está bem?
- Não tenho muitos amigos aqui. Na verdade, não tenho nenhum.
- Absurdo! Como alguém não tem amigos? E ainda mais sendo uma pessoa tão jovem e gentil como você?
O rapaz olhou para o velho, e depois para as outras pessoas sentadas no banco ao lado do homem, não se sentindo à vontade para falar na frente delas. Mas repentinamente outro ônibus passou, e uma a uma elas entraram nele, deixando apenas os dois interlocutores no local.
- Esse não é o seu ônibus? – Quis saber o velho.
- É... – o jovem demorou algum tempo para responder, como se estivesse reticente em revelar o motivo de não ter entrado no transporte.
- E por que não entrou nele?
- Porque... não tenho certeza se realmente quero chegar ao local onde ele leva.
- Hum... entendo. É um lugar ruim?
- Não... não é. Mas já não sei se quero ir até lá.
- Geralmente evitamos ir para os lugares que não nos trazem algo de bom. Por que então não quer ir a um lugar que faz exatamente o contrário disso? E me desculpe uma vez mais se eu estiver sendo intrometido. – O velho o fitou com o olhar gentil e o sorriso acolhedor, derrubando qualquer barreira que o rapaz pudesse erguer entre eles naquele momento.
- Não está. Às vezes... é bom conversar com alguém.
- Especialmente quando não se tem tantos amigos. – Complementou o velho.
- Exatamente. E quanto ao local. Não é que não goste de lá. Pelo contrário. É que não sei se já sirvo para ficar lá.
- E por que não serviria? Fez algo de errado?
- Não... e sim. – O jovem pareceu constrangido e triste ao mesmo tempo.
- Como assim, não e sim? Ou fez ou não fez. Como alguém pode fazer e não fazer algo ao mesmo tempo? – O velho o encarava com olhar inquisidor, mas que também lhe dizia que estava pronto para ouvir atentamente o que tinha para dizer.
- Eu... na verdade sou seminarista. Estou estudando para ser padre. Desde que me entendo por gente esse sempre foi um desejo meu, e sempre busquei esse sonho. Vim de longe para estudar aqui, e deixei família e amigos para trás. Sou de uma cidadezinha pequena onde todo mundo se conhece e se ajuda, e ainda não me acostumei à forma como as coisas acontecem aqui. Mas... nos últimos tempos as coisas que vi nessa cidade, perdi um pouco da fé que tenho na humanidade, o que me tem feito repensar se realmente estou escolhendo o caminho certo.
- Haaa, entendo. Veio atrás do seu sonho em um lugar desconhecido, o que explica a falta de amigos. Mas tem uma coisa sobre a qual a explicação não me convenceu.
- E qual é?
- Disse que perdeu a fé na humanidade. Mas no que escolheu fazer da vida, a fé que deve ter não é no homem, estou certo?
O rapaz permaneceu calado sem responder, ponderando o que o velho acabara de falar. Então o homem continuou:
- E se não deve pôr a fé que precisa ter no homem, isso significa que não deve pô-la também em si mesmo, certo?
- Faz sentido. – Disse o jovem, enquanto fitava com cada vez mais interesse o mais velho.
- Não há um versículo para isso? Qual é mesmo? Acho que você pode me ajudar, já que além de estudar essa área também está com a cabeça muito mais fresca do que a minha. Deixe-me ver... Confie no Senhor de todo o seu coração, e não se apoie no seu entendimento?
- Confie no SENHOR de todo o seu coração e não se apoie em seu próprio entendimento; reconheça o SENHOR em todos os seus caminhos, e Ele endireitará as suas veredas. Não seja sábio aos seus próprios olhos; tema o SENHOR e evite o mal. Provérbios, 3:5-7. – Disse o mais jovem, sem gaguejar em uma só palavra.
- Aaaaah, aí está! – Disse o velho, com um sorriso que animou o rapaz. – Viu que eu estava certo? A cabeça de vocês, mais novos, funciona bem mais rápido que a nossa. E se me permite dizer, acho que posso estar certo também em outra coisa.
- E que outra coisa é essa?
- Pense comigo. Quando abandona sua fé em DEUS por causa de sua falta de fé nos homens, não está deixando de confiar no SENHOR de todo o coração, e se apoiando no próprio entendimento equivocado de que a humanidade não tem jeito? Não está, mesmo a nível inconsciente, sendo sábio aos próprios olhos? - O velho sorriu uma vez mais, e concluiu. - E não está deixando de reconhecer o SENHOR em todos os seus caminhos? Afinal, ele está em todos os lugares. Quando diz que não tem amigos aqui nesta cidade está equivocado. DEUS é seu Melhor Amigo, e está por todo lado. Talvez ELE esteja até aqui, neste ponto de ônibus, mais perto do que imagina.
O velho piscou um olho para o rapaz, que não entendeu o gesto, e muito menos o arrepio que sentiu ao vê-lo. Mas pareceu não dar importância a ele, porque as palavras do homem tinham começado a tocar seu coração. Aprendera na vida que para DEUS nada era impossível, então seria uma incoerência de sua parte acreditar naquilo, mas perder a fé porque se apoiava na força dos homens, quando deveria se apoiar no único Porto Seguro que existe, que é DEUS.
- Me permite mais uma palavra? – Perguntou o velho, e o rapaz apenas acenou em concordância com a cabeça, pensando em como poderia recusar, quando estava aprendendo tanto. – Quando diz que não serve para estar no local que o formará para o Ministério que tanto busca, é por se achar fraco e sem fé?
- É isso. Exatamente isso.
- Hummm. - O velho apoiou o queixo na bengala que segurava e pensou um pouco antes de continuar. – Vamos acionar sua memória turbinada novamente. Não foi um tal de Paulo que disse, há muito tempo atrás, que quando estava fraco, é que era forte?
- “Por isso, por amor de Cristo, regozijo-me nas fraquezas, nos insultos, nas necessidades, nas perseguições, nas angústias. Pois, quando sou fraco, é que sou forte”. 2 Coríntios 12:10. – Disse imediatamente o rapaz, sentindo um calor crescendo no peito a cada palavra que pronunciava.
- Quando sou fraco, é que sou forte. – Repetiu o velho. – Me diga, rapaz, você que tem mais conhecimento nesses estudos... O que Paulo quis dizer com isso?
- Que quando a fraqueza de sua pequenez humana se revelava, era no amor que sentia por Cristo que ele se fortalecia. Era no exemplo de doação que Jesus deu ao aceitar todas aquelas humilhações por amor a nós que ele extraía a vontade de seguir.
- Hummm. Interessante. Me disse que estava se sentindo fraco. Não seria então esse o momento de buscar a Cristo para sentir-se forte?
O jovem abaixou os olhos e fitou as próprias mãos, pesando cada palavra que o velho dissera, e revendo nos pensamentos os versículos e ensinamentos que lera e que aprendera em toda a sua vida.
- Um último comentário. – Falou o velho, chamando novamente para si a atenção do mais moço. – Devo parar?
- De forma alguma. – Respondeu imediatamente o rapaz.
- Prometo que finalizo aqui. Você disse também que não achava que essas pessoas que fazem tanto mal seriam dignas de ajuda. O que me lembra de outro versículo. Vamos lá, rapaz, bote a cabeça para funcionar novamente. Você lembra da parábola da ovelha, da moeda, e a história do filho pródigo?
- Me recordo de todos.
- Poderia resumir para mim, por favor?
- Jesus falou em parábolas sobre a mulher que perdeu uma moeda, e que a procurou em casa insistentemente até encontra-la, indo regozijar-se com as amigas depois. Falou também sobre o pastor que tinha cem ovelhas, e que ao perder uma delas deixou as noventa e nove para ir atrás daquela que estava perdida, regozijando-se ao encontra-la. E sobre o filho pródigo, é a história do rapaz que pede a parte de sua herança, a desperdiça, e depois de sofrer passa a valorizar o que tinha e volta para casa pedindo ao pai que o acolha como um de seus empregados.
“O pai então, repleto de felicidade pelo retorno do filho que achava perdido, manda fazer uma festa e o acolhe novamente no lar. Ao ser questionado pelo filho mais velho, que reclamava por sempre ter trabalhado fielmente para ele e nunca ter recebido uma celebração como aquela, ao passo que a estava dando àquele outro que fora um pecador, o pai lhe diz que aquele retorno é motivo de felicidade, pois o filho estava morto, mas voltara à vida. Estava perdido, e foi encontrado.”
- Uma maravilha essa sua cabeça rapaz. Espero que seu coração seja tão esplêndido quanto ela. Mas nesse exato momento não está sendo, e sabe por que?
O jovem abaixou a cabeça, pensou um pouco, e acabou entendendo o que o velho estava falando.
- Porque ao julgar os irmãos que pecam e que acho indignos de serem recebidos pelo pai estou agindo como o irmão mais velho, ao invés de celebrar o retorno à vida daqueles que estavam perdidos, e que foram encontrados.
- Perfeitamente. E o que Cristo disse aos apóstolos quando os chamou para segui-lo?
- “Segui-me, e Eu farei de vós pescadores de homens”. Mateus 4:18-22.
- Exatamente. Agora me diga. Você quis responder ao chamado?
- Mais do que tudo na vida.
- E mal começou já está desistindo da pescaria? Lembre-se que Jesus nunca disse que seria fácil, e nem que a pesca ia ser repleta. Talvez durante toda a vida você só consiga pescar um. Mas o que foi que Cristo disse mesmo certa vez?
- “Eu digo que, da mesma forma, haverá mais alegria no céu por um pecador que se arrepende do que por noventa e nove justos que não precisam arrepender-se.” Lucas, 15:7-10.
- Entendeu agora?
O jovem sorriu, e sentiu naquele momento mais vontade de seguir com sua busca do que jamais sentira antes. Tivera a fé abalada porque a crença que possuía estava sendo dirigida aos homens, quando na verdade sempre deveria ser voltada para DEUS, assim como tudo o que tinha de fazer na vida. Apoiara-se no próprio entendimento, e não buscara no SENHOR o caminho que deveria trilhar, perdendo-se assim no trajeto a ser seguido.
Mas aquele simpático Senhor abrira seus olhos, e o principal, abrira seu coração, para que enxergasse novamente o que um dia tinha visto. Para que ouvisse uma vez mais o chamado que anos antes abraçara. O rapaz sorriu, e acenou para o velho, com um gesto que parecia dizer mais do que qualquer palavra tivesse a capacidade de explanar.
Percebeu então que outro ônibus chegara. O transporte que lhe levaria para onde deveria continuar se preparando para tornar-se um pescador de homens. Então encarou o velho, que o fitava de volta com os olhos mansos e a expressão tranquila semelhante a de um Pai que admira um filho que está aprendendo algo.
- Meu ônibus chegou. – Limitou-se a dizer.
- Está pronto para seguir o seu caminho? – Perguntou o velho.
- Sim. Estou pronto. Talvez mais do que já estive antes.
- Então vá.
- Não vai pegar o ônibus?
- Não, não. – Disse o velho sorrindo. – Só estou aqui passando o tempo. É que gosto de sair por aí e bater um bom papo. Na minha idade isso é importante.
- E para onde vai daqui?
- Ahh, vou para muitos lugares. Mas tenho algo especial para fazer hoje. É que é aniversário de alguém que amo muito.
- Então transmita-lhe os parabéns em meu nome. – Disse o mais jovem, sorrindo. – E obrigado pela conversa. Não sabe o quanto me ajudou.
- Fico feliz em saber disso.
- Um feliz Natal para o Senhor. – Falou, o rapaz, levantando-se e indo em direção à porta do ônibus.
- Um feliz Natal. – Respondeu o Velho, acenando com cabeça e sorrindo. - Um feliz Natal, meu filho.
O jovem sentou-se no banco, sentindo o coração repleto de um misto de paz e contentamento, algo que só sentira antes nos momentos de comunhão em orações feitas com fervor e sinceridade. Lembrou então que não perguntara o nome do velho, e repreendendo-se pela falta de educação olhou pela janela, para o local onde ele estava sentado.
Mas já não havia ninguém ali. Apenas um lugar vazio onde o Homem estivera sentado segundos antes.
“Um banco vazio... um coração cheio”, foram as palavras que de repente surgiram em sua mente, e não soube porque pensou nelas, e nem procurou buscar um sentido para elas, apenas saboreou-as, como se compreende-se exatamente o que queriam dizer. Um coração cheio, era o que possuía agora. Cheio de fé, vontade, e coragem para seguir o caminho que escolhera.
Era Natal, e no dia do Maior Aniversariante de todos, fora ele quem recebera um presente daquele simpático Senhor, que com algumas poucas palavras lhe mostrara mais do que já vira em toda sua vida.
E em sua mente, sem saber bem porque, o rapaz ouviu, na Voz Daquele Senhor que falara com ele havia pouco, as seguintes palavras:
“ELE revela o profundo e o escondido; conhece o que está em trevas, e com ELE mora a luz.” Daniel 2:22.
Um Feliz Natal a todos.
Um dia em Família
A manhã surgiu repentina e silenciosa, anunciada pelos primeiros raios de sol que brotavam do horizonte inexplorado, e pelo trinado dos pássaros que se erguiam para seus voos diários à primeira luz da madrugada. Mas para ele chegou com o som mecânico do despertador do celular, dando-lhe o senso de urgência necessário para que soubesse que era hora de levantar ao mesmo tempo em que fazia aflorar a vontade de jogar o aparelho na parede e voltar a dormir a fim de aproveitar mais alguns momentos de descanso.
Desistiu de fazê-lo antes que o pensamento ganhasse força em sua mente. Celulares novos eram caros, assim como tudo o mais no mundo contemporâneo, e para ter o que considerava ao menos o básico ele precisava levantar-se e se arrumar para um novo dia de trabalho. Segurou então o aparelho e desativou o toque irritante do despertador, passando a checar se havia alguma mensagem nova nos grupos de conversas, hábito que já parecia arraigado não apenas em sua vida, mas na de todos que conhecia.
Ergueu-se sentindo o peso do sono no corpo cansado, deu uma breve coçada nas costas enquanto bocejava, e terminou o serviço fazendo o que quase todo homem fazia em momentos como aquele, coçando o que sua esposa costumava chamar de “amigo de longa data”. Alertado pela lembrança ele olhou para o lado, ciente do quanto ela desaprovava aquele hábito que dizia ser um dos gestos mais feios que os homens podiam ter, junto, é claro, da boa e velha mania de deixar a toalha no chão, a cueca suja em cima da pia do banheiro e a tampa do vaso abaixada, coisas que já tinham gerado brigas dignas da guerra de Tróia entre os dois.
Olhou para o lado da cama que pela lei tácita dos casais pertencia à esposa, lugar que ela própria tinha escolhido, como quase tudo o mais naquela casa, cabendo a ele apenas a permissão por optar por um ou outro detalhe na área de lazer onde se refugiava nos finais de semana para tomar sua cerveja, fazer seu churrasco e dar alguns mergulhos na piscina, tudo, claro, com a atenta supervisão dela.
“Sexo frágil uma ova”, disse para si mesmo, enquanto ainda coçava as partes por cima da calça do pijama.
Com os passos curtos dos recém acordados que ainda não se acostumaram com o fim do sono ele caminhou até o banheiro, onde piscando os olhos para diminuir a cortina embaçada sobre a vista sonolenta colocou para fora o “amigo de longa data” diante da privada, e despejou ali o líquido que a bexiga acumulara durante a noite. Assim que terminou e viu o resultado arrependeu-se imediatamente, ciente da bagunça que fizera na tampa do vaso e da discussão que aquilo certamente iria gerar.
Mas antes que a própria consciência tivesse oportunidade de dar-lhe a bronca que emulava a voz da esposa, perguntando porque depois de tantos anos ele ainda não aprendera a fazer o que um cachorro aprenderia em apenas algumas semanas, ele resmungou e seguiu para o chuveiro, dizendo a si mesmo que pensaria naquilo depois que se arrumasse para o trabalho, e que assim que estivesse pronto limparia a bagunça que fizera.
Mas entre a ducha quente, o caminho para o quarto e a rotina diária de trocar de roupa, dar o nó da gravata, pentear os cabelos e arrumar-se ele acabou esquecendo do que dissera a si mesmo, e deixou o desleixo cometido no mesmo local, como prova incontestável de sua culpa.
Desceu as escadas sentindo o cheiro do café e dos ovos que já se espalhava pelo ambiente, e sua barriga roncou com a mesma intensidade com que o despertador tinha tocado minutos antes, acabando de afastar o resto de sono que ainda se agarrava a ele. Na briga entre o cansaço e a fome, essa sempre saía vencedora, algo que o fez lembrar de um ditado que a avó costumava dizer. “Barriga vazia não tem sono”.
Chegou na cozinha e olhou ao redor, procurando as mesmas caras de sempre, mas viu apenas a empregada, que pacientemente fazia o desjejum. Impaciente olhou para o relógio, vendo que a hora já se adiantava e que os dois filhos deveriam ao menos estarem prontos para a escola, irritando-se ao imaginar que se tivesse que espera-los ganharia alguns minutos a mais no trânsito caótico dos inícios de manhã.
- Maria, onde está a turba? – Perguntou, referindo-se aos filhos.
- Ah, bom dia patrão. Quase me deu um susto. – Respondeu a mulher que já trabalhava ali há tanto tempo que já podia-se dizer que fazia parte da família. – Ainda estão dormindo.
- Dormindo?! – Perguntou irritado, já preparando a bronca que iria dar ao tirar os preguiçosos da cama. – Essa hora?!
- Sim senhor. Dormindo. – Disse Maria, sem sequer preocupar-se em se virar para ele.
- E a mãe deles, onde está? – Perguntou, sentindo-se ofendido com a displicência da empregada, que sabia como ele era cuidadoso com horários.
- Dona Letícia foi correr. Deve estar voltando logo mais.
- Correr? Mas já não deveria estar pronta para ir trabalhar?
Maria deixou de lado a falta de preocupação e virou-se para ele, em parte para pôr fim àquela conversa sem sentido que estava atrapalhando seu trabalho, e em parte para entender o que estava acontecendo com o patrão para fazer aquele tipo de pergunta despropositada.
- Dr. Fábio, o senhor por acaso acordou do lado errado da cama hoje? – Perguntou ela, depois de olha-lo de cima abaixo com uma expressão de surpresa. – O que está fazendo de terno e gravata em pleno sábado?
- Sábado?! Hoje é... sábado? – Olhou para ela sem parecer entender nada enquanto fazia cálculos rápidos na cabeça a fim de descobrir se realmente pensara estar no dia certo.
- Tão sábado quanto qualquer outro sábado que já existiu. – Respondeu a empregada, com uma mão na cintura e um olhar displicente para ele. – Aquele mesminho, que vem depois da sexta e antes do domingo. Por isso que as crianças ainda estão dormindo e a patroa foi correr mais tarde.
Ainda sem acreditar que tinha errado o dia da semana ele sacou o celular do bolso e olhou na tela de entrada o dia e a hora, percebendo que a empregada realmente estava certa, e que cometera um equívoco em algo tão simples. O pensamento não o acalmou da irritação que sentira momentos antes, que apenas pareceu aumentar ao perceber que se enganara daquele jeito, e principalmente porque tivera todo aquele trabalho para arrumar-se quando podia ter estendido o sono por mais algum tempo.
Mas o aborrecimento cessou imediatamente quando o eco de um grito irritado reverberou pela casa, vindo do quarto que acabara de deixar para trás, e de pronto ele reconheceu não apenas a voz, mas o timbre que sempre era usado pela sua dona quando não estava nem um pouco feliz com alguma coisa.
- MAS SERÁ POSSÍVEL QUE ISSO ACONTECEU DE NOVO? QUANTAS VEZES TENHO QUE REPETIR UMA COISA PARA QUE A PESSOA CONSIGA ENTENDER DE UMA VEZ?!
Ao ouvir aquilo Maria virou-se para ele, colocou uma das mãos na cintura larga e rechonchuda, e o encarou com uma expressão que misturava cansaço e atrevimento.
- Patrão, o senhor por acaso fez xixi em cima da tampa do vaso de novo?
- Eu... o que... xixi? Bem... eu, não sei o que quer dizer com isso. – Fez-se de desentendido, mas enquanto gaguejava a falsa desculpa não percebeu que a esposa desceu com a velocidade de um foguete, chegando em alguns segundos à cozinha, e assim que terminou de dizer as últimas palavras sentiu um dedo cutucando seu ombro, e não precisou de nenhuma outra pista para saber quem estava às suas costas, tamanha era sua familiaridade com aquele gesto.
- Quantos cachorros já tivemos aqui em casa? – Perguntou a esposa, com uma voz calma, mas com a raiva chispando nos olhos.
- Cachorros? Como assim? Como vou saber? Para que quer saber? – Fábio não sabia o que era pior, se os olhos em brasa da esposa ou se era o sentido que havia por trás da pergunta, que naquele momento ele não sabia identificar.
- Cinco cachorros. – Ela respondeu em seu lugar, e a voz, antes estranhamente calma, começava a carregar a irritação que ele via nos olhos dela. – Cinco cachorros! E todos eles aprenderam a fazer xixi no tapetinho depois de alguns dias de adestramento. Então eu pergunto, como pode um animal que corre atrás do próprio rabo aprender mais depressa que um advogado de renome cujo intelecto é reconhecido e respeitado entre seus pares?
- Eu... é... bem...
- Quinze anos! – A voz dela estava ficando rascante. – Quinze anos de casamento, e até hoje vossa senhoria não conseguiu aprender a fazer xixi dentro do vaso sanitário, em um buraco grande o bastante para caber a sua cabeça! Eu realmente não compreendo essa resistência em fazer algo tão simples, e... e.... por que raios está usando terno em pleno sábado?
Ele percebeu que a raiva dela amainara rapidamente, dando lugar à confusão que estava expressa em sua face enquanto o olhava de cima abaixo, sem entender o porque de estar usando aquela roupa em um dia em que não havia trabalho, e viu ali uma janela para escapar da enrascada na qual se metera.
- Eu... eu... bem, na verdade eu...
- Depois você me explica porque está vestido assim. O que quero saber agora é por que insiste em apontar essa mangueira para fora do vaso!
- Shhhh! – Fez ele, colocando um dedo na boca e indicando com os olhos a empregada que atrás deles já voltara a se preocupar com seus afazeres, parecendo que não ouvia nada quando na verdade escutava tudo.
- Shhh? Shhh o que? Está com vergonha da Maria? Não sei porque. Ela trabalha aqui há tanto tempo que já é da família. Eu digo do que você tem que se envergonhar. Tem que se envergonhar é de não entender como funciona o procedimento de fazer xixi dentro do vaso. É pedir demais que acerte a mira com esse negócio que tem no meio das pernas?
- Certo. Certo. Desculpe. Deixe que eu limpo tudo. Aliás, eu já ia limpar mesmo, não entendo porque esse estardalhaço todo. – Retorquiu, tentando minimizar o assunto para escapar da bronca, coisa que sempre fazia, e que nunca dava certo.
- Ia limpar saindo de fininho de terno e gravata enquanto o caos estava instalado no banheiro? Sei! No mínimo ia deixar a bomba para mim ou para Maria enquanto... enquanto... ah, sei lá, enquanto ia sabe-se lá para onde vestido assim em pleno sábado.
- Tudo bem. Tudo bem. Vou limpar. – Falou, enquanto caminhava pela cozinha à procura de algo. – Está vendo? Estou indo pegar o balde, o esfregão e o pano. Viu? Vou pegar tudo e... e... – Parou confuso olhando para os lados, como se não soubesse para onde ir e coçou a cabeça. – Maria, onde ficam o esfregão, o balde e o pano?
- Na área de serviço, no primeiro armário. – Respondeu Maria, sem desconcentrar-se do que estava fazendo enquanto Letícia revirava os olhos ao ver a confusão do marido.
- Pronto. – Falou ele, indo até a área e pegando o que precisava para consertar a bagunça que causara. – Já peguei tudo, agora estou indo limpar. Satisfeita? – E passou rapidamente por ela, antes que Letícia lhe parasse para continuar com o sermão.
- Vou ficar satisfeita no dia em que parar de errar o buraco do vaso. – Retorquiu ela por sobre o ombro enquanto o marido subia rapidamente as escadas, desajeitado por carregar tudo aquilo usando terno e gravata.
Quando estava lá em cima ele parou, olhou para baixo e bufou, enquanto na cozinha ela lançou o olhar para cima e balançou negativamente a cabeça, e sem escutarem um ao outro, ambos disseram ao mesmo tempo:
- É sempre a mesma coisa.
E assim cada um seguiu para fazer o que tinha planejado fazer.
O dia avançara entre o momento em que Maria terminara de preparar o café, Fábio fizera o favor de limpar a sujeira que fizera no vaso, e Letícia preparara o cardápio do almoço e tomara um demorado banho após sua corrida, em um banheiro cuja limpeza estava longe de adequar-se ao seu gosto, mas que ao menos servira de lição para que o marido consertasse o que tinha feito.
Fábio não conseguira mais dormir, e irritado depois de virar-se dezenas de vezes na cama, acabou conformando-se em abrir mão das poucas horas de descanso que sempre se permitia ter nas manhãs de sábado. Antes de tomar um bom banho esperou ainda deitado que Letícia terminasse o seu, se arrumasse, e fosse cuidar dos próprios planos, observando todo o processo com uma brecha de olho, fingindo a todo instante que estava dormindo para não ter mais que ouvir reclamações sobre o xixi fora do vaso.
Depois de pronto ele procurou algo para fazer pelo apartamento, e chegou a cogitar a ideia de chamar Letícia e os filhos para irem até a praia ou ao menos até a piscina aproveitar o dia de sol, mas como os rebentos ainda dormiam e a esposa ainda estava chateada com ele resolveu sossegar em algum lugar, encontrando na velha poltrona e em um bom livro o refúgio de que precisava.
Mas depois de meia hora de uma leitura a princípio sossegada, foi interrompido pelo filho mais velho, de catorze anos, que descabelado e com o rosto ainda amassado de sono cambaleou até onde ele estava e jogou-se no sofá, ligando a tv no volume alto enquanto comia em uma sonoridade quase idêntica um sanduíche que Maria fizera para o café da manhã.
- Filho, pode baixar o volume um pouco? O pai está lendo. – Disse Fábio, controlando-se para não dar a bronca que achava justo dar.
O garoto não respondeu, e ele não soube dizer se era pelo sono que aparentemente ainda o abraçava ou se por estar hipnotizado pela programação que era transmitida na televisão.
- Filho, abaixe o volume, por favor. Eu estava aqui lendo, e esse barulho está me desconcentrado.
Novamente o garoto pareceu ignorá-lo, continuando a comer o sanduíche de forma barulhenta, o que lembrou a Fábio um boi ruminando capim, e antes que pudesse se culpar por aquela comparação levantou-se rapidamente e caminhou até a tv, puxando sem qualquer hesitação o fio que a ligava à tomada.
- Ei! – Protestou o rapaz, enquanto olhava indignado para Fábio, que calmamente sentou-se na poltrona e voltou a ler. – Eu tava vendo o programa pai!
Fábio não disse nada, e continuou a ler como se não houvesse mais ninguém ali além dele.
- Pai! Que saco, por que você desligou? Eu tava assistindo! – Insistiu o rapaz, sem receber qualquer atenção de volta. – Ei. Ôh pai. Não tá me ouvindo? Tá se fazendo de surdo? Por que não responde?
- Para ver se você gosta de falar e ser ignorado. Pedi três vezes para abaixar o volume porque já estava aqui lendo, mas tudo o que recebi como resposta foi esse seu mastigado barulhento.
- Foi mal, cara. Eu não ouvi. – Disse o filho, com displicência. – Posso ligar de novo?
- Cara é o que o cavalo tem. Me respeite e me chame de pai. E sei porque não ouviu. Com um volume nessa altura realmente fica difícil escutar alguma coisa. Aliás, não entendo como vocês aguentam essa barulheira toda. Que eu saiba você não tem nenhum problema de audição, então, para que isso tudo?
- Tá bom pai, foi mal. Vou deixar mais baixo. Mas posso ligar agora?
- Se abaixar o volume, então pode. E veja se mastiga mais baixo também.
- Eu hein? – Murmurou o garoto, enquanto observava o pai voltar à sua leitura. Então levantou-se, colocou a tomada de volta e ligou a televisão, tendo dessa vez o cuidado de deixar o volume mais baixo.
Depois de alguns minutos, em que o jovem trocou de canal ao menos cinquenta vezes sem permanecer em nenhum por mais de alguns segundos, terminando ainda de comer o sanduíche enquanto mastigava um pouco mais baixo do que antes, Letícia entrou na sala e parou, observando pai e filho, que mesmo tão próximos, naquele momento pareciam tão distantes.
- Nossa! Quanta interação dessas duas criaturas. Nunca vi duas pessoas tão próximas uma da outra como estou vendo agora.
O filho não deu nenhuma resposta, mostrando que sequer tinha percebido a entrada da mãe, e Fábio limitou-se a lançar à esposa um olhar aborrecido que parecia pedir para que não o importunasse naquele momento de sossego.
- Estava pensando em darmos uma volta pela praia. Nós quatro. – Disse ela, parecendo ignorar o pedido implícito no olhar do marido. Sentou-se então ao lado dele, e encarando-o com insistência continuou. – O que acha?
- Marina ainda está dormindo, Fabinho ainda está de pijama, e já são quase onze horas. Com o trânsito de sábado vamos levar pelo menos meia hora para chegar lá, e aí já vai ser quase meio dia. – Resmungou ele, sem tirar os olhos do livro.
- Marina já acordou, tomou café, trocou de roupa e está no quarto vendo tv. Fabinho pode se arrumar em poucos minutos, e uma ida à praia não é a mesma coisa que um evento de gala, basta colocar uma bermuda, uma camiseta e uma chinela que está tudo certo.
- Mesmo assim, já são quase onze horas. – Disse Fábio, torcendo para que ela parasse de insistir.
- E daí se chegarmos lá de meio dia? Hoje é sábado, está fazendo um belo dia de sol, e podemos voltar mais tarde.
- E o almoço?
- Almoçamos na praia.
- Mas Maria está fazendo o almoço.
- Peço para ela guardar para amanhã.
- E se estiver muito cheio lá?
- Não estamos em alta estação, e você sabe que nessa época do ano nunca fica cheio o bastante para que o lugar fique insuportável.
“Minha nossa”, pensou ele, impaciente. “Essa mulher tem argumento para tudo. Acho que se ela fosse a advogada por aqui nós estaríamos ganhando bem mais”.
- E então? – Cobrou ela, sem lhe dar mais tempo para outros pensamentos? – O que me diz?
- Não vai rolar não, mãe. – A voz de Fabinho se interpôs entre ambos, e o garoto, que momentos antes parecia um zumbi de pijamas agora se mostrava bastante atento ao que os dois conversavam.
- Como é? – Perguntou Letícia, surpresa com o retorno do filho à realidade. – O que não vai rolar?
- Ir à praia. – Respondeu, voltando a mudar de canal sem ao menos se dar ao trabalho de esperar para ver o que estava passando.
- E por que não?
- Porque tenho um churras pra ir na casa de um amigo, e começa logo mais.
- Tem o que? – Agora era Fábio quem confuso fazia a pergunta.
- Churras cara... quero dizer, pai.
- Nesse churrasco vocês vão comer a carne com a mesma fome com que estão comendo as sílabas? – Ironizou ele. – Essa geração realmente está entrando em processo de involução. Daqui a pouco vão reduzir tanto as palavras que vão desaprender a falar.
- E por acaso você pediu permissão para ir a esse “churras”? – Quis saber Letícia, ignorando o comentário do marido.
- Pedi ao papai. – Falou, despreocupado.
Letícia olhou para Fábio, que parecia aturdido com a resposta e ao mesmo tempo preocupado com o olhar de cobrança da esposa, que avisava que uma bronca daquelas estava a caminho.
- Ei moleque. Que história é essa? Você não me pediu nada. – Apressou-se a dizer.
- Pedi sim. – O jovem soltou pela primeira vez o controle e em um movimento que mal foi percebido pelos pais, virou-se para os dois, ligeiramente aborrecido com a negativa de Fábio.
- Não pediu não. Tenho certeza disso.
- Afinal, pediu ou não pediu? – Perguntou Letícia, começando a ficar irritada.
- Pediu sim. – Falou Marina, entrando na sala com o celular na mão, sem dirigir o olhar a nenhum deles. – Ontem, no carro, voltando da escola.
- Boa. – Limitou-se a dizer Fabinho, voltando a pegar o controle e virando-se novamente para a televisão.
- Pode explicar melhor? – Pediu Fábio, olhando para filha que caminhava pela sala sem parecer notar sua presença.
- Ontem, depois da escola, no carro. – Disse ela, sem tirar os olhos do celular, onde digitava sem parar. – Ele falou do churrasco, perguntou se podia ir e você disse que ele deveria falar com a mamãe. Então Fabinho falou que a mamãe não iria deixar, e que ela sempre complicava tudo e coisa e tal, e você perdeu a paciência e acabou autorizando. Foi isso.
Fábio percebeu, mesmo enquanto encarava a filha, o peso do olhar de Letícia recaindo sobre ele, e sem perceber encolheu-se discretamente na poltrona enquanto esperava a reprimenda que certamente já estava em vias de ser liberada em cima dele.
- Viu? – Falou a esposa, com um traço de rispidez na voz. – Viu como você é?
- Como eu sou? Como assim, como eu sou? – Perguntou, como se aquilo não fosse com ele.
- Como você é. Não escuta ninguém, não faz nada que eu peço, não presta atenção nas conversas que temos. Quantas vezes eu disse que temos que decidir juntos quando se trata dos nossos filhos?
- E não é isso o que estamos fazendo?
- Oh, claro, depois que já tinha se passado um dia do momento em que deu autorização a ele para ir a uma festa que eu não fazia nem ideia de que iria acontecer!
- Mas... mas... – Fábio não sabia o que responder, até que teve um lampejo e falou a primeira coisa que veio à sua mente. – Mas eu disse a ele que lhe perguntasse.
- E depois engoliu as desculpas que ele deu e passou por cima de mim, autorizando mesmo assim. Além disso, mesmo que não tivesse autorizado, essa historinha de “pergunta à sua mãe” já é um vício antigo seu.
- E o que eu deveria fazer, ora bolas?
- O que eu sempre peço para fazer. Traga a discussão para que possamos conversar e decidir. Mandar que eles me peçam algo é fugir à sua responsabilidade, e decidir sem que eu participe é passar por cima da minha autoridade.
- Minha nossa, essa mulher não está satisfeita com nada. – Murmurou para si mesmo.
- O que disse?
- Que eu não quis que fosse incomodada. – Emendou. – Sim! Foi isso! Não lhe falei sobre o assunto para que a coisa não a incomodasse.
- Sabendo que hora ou outra eu descobriria que nosso filho foi para um churrasco que eu não sei nem onde é, de quem é, e o que é que iria ter lá? Não me venha com essa desculpa.
- Não é desculpa. Eu só me preocupei com você.
- Primeiro, que isso não é verdade. Admita de uma vez. E segundo, que mesmo que fosse, deveria se preocupar mais com seu filho. Ou esqueceu do que aconteceu na última festinha em que ele foi?
O garoto olhou de soslaio, desconfiado ao ouvir a menção sobre a festa em que bebera com os amigos, mesmo sem ter idade para tanto, e já começou a imaginar que no fim de toda aquela discussão o maior prejudicado seria ele, que veria o churrasco ir por água abaixo.
- Relaxa mãe. Aquilo foi só uma vez, e eu aprendi a lição. Não faço mais.
- Quer mesmo que eu acredite nessa história?
- Pô mãe, não confia em mim?
- Pô, garoto, confiança se conquista. E você deu um passo atrás na que eu sentia. Vai ter que fazer mais do que dar algumas desculpas para tê-la de volta.
- Mas mãe, é só um churrasco. – Protestou o rapaz.
- De quem? Onde? Quem vai? Tem algum adulto lá fiscalizando tudo?
- Ah, vai todo mundo.
- Eu não vou, seu pai não vai e sua irmã também não. Então não é todo mundo que vai. Onde vai ser isso?
- Na casa de um amigo.
- Que amigo? Ele tem pai e mãe? Quem são? Vão estar lá? Tem os telefones deles? Se tiver me passe que ligo, e a depender de quem sejam eu deixo você ir.
- Que história mãe. Se ligar para eles eu vou pagar mico.
- Pode pagar a floresta inteira. Só vai depois que eu ligar. – Disse ela, resoluta. – E o senhor, nem pense em se levantar dessa poltrona para sair pela tangente.
As últimas palavras foram dirigidas a Fábio, que fizera menção de se levantar para sair de fininho aproveitando aquele debate acalorado entre mãe e filho, e o olhar que fez a levou a imaginar que ela era o único adulto naquela sala, em meio a três adolescentes.
- Só estava indo pegar um copo com água. – Atalhou ele, sabendo que a desculpa não seria aceita.
- Vai ter de tempo de sobra para isso depois que resolvermos a situação aqui.
- E o que quer que eu faça? – Perguntou ele, já impaciente com aquele imbróglio sem fim.
- Quero que haja como um pai, ora bolas! Diga algo, converse com seus filhos, escute eles, fale comigo, não fique alheio a tudo e...
- Tá bom! Tá bom! – Interrompeu ele, sabendo que se não o fizesse a lista com as críticas que ela tinha se estenderiam por um bom tempo. – Fabinho, você não vai para o churrasco, a não ser que diga de quem é, quem estará lá e quais são os adultos que vão supervisionar. E ainda assim pensaremos se vai poder ir.
- Mas pai... – Reclamou o garoto.
- Mas nada. Faça isso e vamos ver no que vai dar. E você... – Virou-se para a filha, que não parara de digitar um momento sequer. – Vá... vá... bem, vá fazer outra coisa que não seja digitar nesse troço aí. E agora? Satisfeita?
A pergunta foi dirigida para Letícia, que calara-se por alguns instantes para assistir aquele ímpeto de autoridade que o marido poucas vezes demonstrava.
- Nem um pouco. – Disse ela, secamente.
“Para variar”, pensou Fábio, tomando o cuidado de deixar daquela vez o pensamento dentro da cabeça, sem transformá-lo em palavras para evitar uma nova onda de reclamações.
- Pois da minha parte eu estou. – Retorquiu, levantando-se para fugir dos protestos que viriam. – Agora vou tomar minha água.
- Espere um pouco. – Disse ela quando Fábio já tinha dado alguns passos. Ele parou irritado, revirou os olhos sem que ela visse, e virou-se, perguntando com toda a paciência que conseguiu reunir. – O que é?
- A praia. Nós vamos à praia, não vamos?
E ouvindo aquilo ele a encarou sem reação, conseguindo no máximo dizer para si mesmo que realmente as mulheres conseguiam pensar em várias coisas ao mesmo tempo.
- O dia está lindo, não está? – Falou Letícia, depois de um bom tempo passando protetor solar.
- Hum rum. – Foi a reposta que veio do lado em que Fábio estava sentado, com os pés enfiados na areia e a atenção enfiada no livro que começara a ler na poltrona de sua casa, e agora continuava na desconfortável cadeira de praia.
Tinham escolhido um lugar relativamente tranquilo, um pouco distante da barulheira dos bares e das crianças que brincavam na beira da praia, jogando areia umas nas outras e berrando com gritos estridentes, algo que consumia a paciência dele em um nível alarmante. Depois de escolherem o local ele montara a sombrinha sob o olhar atento e as instruções da esposa, que na verdade não fazia a menor ideia de como se montava aquilo, mas mesmo assim não deixava de dar sua opinião.
E agora estavam ali, embaixo de um sol escaldante, mas diante de um mar radiante, recebendo nos rostos as carícias da brisa marinha que suave chegava até eles. Mas naquele momento, em que o filho fora dar uma volta na praia para ver as garotas, e a filha encontrara com duas amigas com quem estava fazendo infinitas selfies, Fábio queria apenas tomar alguns goles da cerveja que levara e ler o livro que absorvia sua atenção, ao passo que Letícia queria conversar com o marido, algo que inevitavelmente fazia, mesmo com as respostas monossilábicas dele.
- Não é maravilhoso? Tirar um dia assim, para fazer algo diferente?
- An ram. – Respondeu ele.
- Melhor do que passarmos o sábado inteiro trancados dentro de casa, fazendo a mesma coisa que fazemos todos os dias, não é?
- É.
- E é bom para as crianças, que podem interagir um pouco com outras pessoas ao invés de ficaram grudados no celular e na tv.
- Verdade.
- Tomar um sol, recarregar as baterias, ver gente, sentir essa brisa maravilhosa, dar um bom mergulho, comer algo diferente, mesmo que seja comida de rua, enfim, sair um pouco dessa rotina de casa, trabalho, casa, trabalho, casa, trabalho.
- Exatamente. – Disse ele, lambendo um dedo e virando uma página do livro, sem prestar a menor atenção no que ela dizia.
- Acho que deveríamos fazer isso mais vezes. Digo, a piscina do prédio é boa, espaçosa, e não é barulhento lá. Mas a praia é outra coisa. Essa atmosfera, essa brisa, esse mar, esse céu azul, essa areia fininha para enfiar os pés. Poderíamos reservar alguns dias para isso, nem que fosse só eu e você. Não é?
- Também acho. – Falou, sem fazer a menor ideia do que ela dissera.
Letícia olhou para ele e o encarou, finalmente percebendo que o marido entrara no modo automático de respostas em que respondia como uma máquina, sem fazer ideia do que estava falando, e assim resolveu pregar-lhe uma peça.
- Sabe o que mais gosto na praia? De olhar esses marmanjos sarados, com seus corpos suados andando de um lado para outro.
- Pois é. – Disse ele.
- A vontade que dá é de chegar em um deles e passar o bronzeador, sentindo cada um dos gominhos daquelas barrigas definidas, coisa que você deixou de ter há muito tempo. O que acha disso?
- Maravilhoso. – Falou, virando mais uma página.
- Me dá aquela quentura só de pensar. Acho que vou mergulhar na praia para ver se abaixo esse fogo. Se bem que pode ser que encontre um deles no mar e aí... já viu, não é?
- É.
Letícia perdeu a paciência e tomou o livro da mão dele, encarando-o enquanto Fábio fazia uma cara que mesclava surpresa e indignação.
- Ei! Eu estava lendo! Por que fez isso?
- Porque não estava prestando atenção em nada do que eu dizia. – Respondeu ela, com os olhos chispando.
- Claro que eu estava!
- Então o que eu disse?
- Que o dia estava lindo, o céu estava azul, e... e... alguma coisa com a brisa do mar, e que queria... bem... um picolé?
- Não, seu insensível. Eu acabei de dizer que queria agarrar um desses marmanjos e passar protetor solar no corpo definido de cada um deles!
- Como é? Perdeu o juízo?
- Não, mas você parece ter perdido a atenção. Falei isso para lhe testar, mas não estava ouvindo nada e não deu a mínima.
- É que... é que... o livro é bom e... acabei me distraindo. – Tentou contornar, sem muito sucesso.
- Livro bom coisa nenhuma. Você que já não liga para o que eu falo, para o que eu faço ou deixo de fazer.
- Está exagerando.
- Estou mesmo? Estou mesmo? Qual foi a última vez que parou para conversar comigo? Para perguntar como eu estou? Quando me chamou para sair, só nós dois, para curtir alguns momentos como fazíamos antes? Até mesmo... bem... até mesmo naquilo, parece até que está fazendo por obrigação, e não porque realmente está gostando!
- Ei! – O comentário o ofendeu, atingindo-o diretamente no orgulho. – Está dizendo que não dou no couro?
- Viu?! – Retorquiu ela, indignada. Até para dar importância ao que falo você só se incomoda quando a coisa envolve a imagem que tem de si mesmo!
Fábio olhou para ela incrédulo, pensando que tudo o que queria era ter dormido até um pouco mais tarde naquele sábado, para depois ler com algum sossego e até mesmo ir à praia ou à piscina, mas sem ter que enfrentar toda aquela inquisição em que estava sendo jogado.
Detestava as velhas conhecidas “d.rs”, e tudo o que queria evitar era ter uma delas em um dia como aquele, quando poderia estar em paz e descansando. Mas o aborrecimento que já estava sentindo com aquelas cobranças, e a posição defensiva na qual estava adentrando cada vez mais serviram de combustível para que o desabafo que estava preso em sua garganta saísse de uma vez, e sem pensar mais despejou tudo em uma torrente de palavras que pegou Letícia de surpresa.
- Por que você reclama tanto? Já percebeu que sua vida é se queixar de tudo o que eu faço? Fábio, não faça isso, Fábio, conserte aquilo, Fábio, me escute mais, Fábio, converse mais com os meninos, Fábio, o cachorro aprende mais depressa que você. É queixa atrás de queixa, mas não escuto um elogio sequer. Sim, lambuzei o banheiro hoje, mas não limpei depois? E quando me pediu para conversar com nosso filho, não acabei falando? Não queria vir à praia, e aqui estamos? Já se perguntou o que eu queria fazer?
“Se eu realmente queria estar fazendo o que estamos fazendo agora? Passou em algum momento por sua cabeça que eu gostaria de estar em casa descansando depois de uma semana pesada de trabalho que me deixou cansado o bastante para acordar hoje sem sequer saber que dia era? Por isso eu estava usando o terno mais cedo, por pensar que era um dia comum de trabalho. Mas você quis saber? Não! Preferiu me criticar por mijar fora da privada e por dar ao nosso filho uma permissão que eu sequer entendi direito do que se tratava por estar exausto demais para compreender o que ele queria.
- E você acha que eu não trabalho demais também? Que não me cansa passar o dia trabalhando e chegar em casa à noite para ainda ter que me preocupar em como estão os meus filhos, se estão bem, se há algo acontecendo com eles, se o mundo está os consumindo de alguma forma, e isso tudo sozinha, porque você acaba não participando da forma como eu gostaria?
“Você acha que não me consome ter que chegar em casa e ainda lhe falar como deve agir, quando deveria saber disso sozinho? Pensa mesmo que eu me realizo em lhe dar alguma bronca ou lhe cobrar quando esperava que fizesse algo sem precisar ter a atenção chamada? Acha que eu gosto dessa posição e de ser vista por você como uma megera? Porque sinto muito bem quando me olha com esse tipo de julgamento. Realmente pensa que gosto disso?
- Eu nunca disse que você não trabalhava, e nem que é uma megera ou algo do tipo. É só que... que...
- Que o que?
- Que às vezes é bom sentir que fez algo bem feito, caramba! No meu trabalho eu não preciso disso, porque sou respeitado. Mas quando chego em casa é como se mudasse de personalidade, e desde o momento que passo pela porta fico na defensiva achando que mais hora menos hora você vai chegar apontando algum erro meu ou me detonando por algo que deixei de fazer!
- E às vezes é bom não precisar estar a todo tempo lembrando alguém tão competente e capaz como você de como deve agir como pai, marido... enfim, como a pessoa que amamos. Seria ótimo não ter que ficar na ofensiva direto, para te fazer saber que precisamos de você. Que eu preciso de você!
Letícia terminou de falar e cruzou os braços, passando a olhar para o outro lado enquanto era observada por Fábio, que a fitava surpreso. Nos últimos tempos passara a se considerar um estorvo dentro de casa, tendo utilidade apenas no trabalho, e sempre que passava pela porta do apartamento já começava a pensar que fizera algo errado, aumentando sua sensação de inutilidade, e ouvir que precisavam dele, não como o advogado, como o profissional bem sucedido e respeitado, mas como o ser humano, o pai, o marido, o amigo, modificou inteiramente sua perspectiva e o modo como enxergava a si mesmo e o lugar que ocupava na vida de cada um deles.
Passou alguns minutos em silêncio, ouvindo apenas o burburinho das pessoas na praia e o som das ondas que quebravam na arrebentação, pensando a cada instante em tudo o que a esposa lhe dissera, e aos poucos percebeu que tinha sua parcela de razão, mas que ela também estava mais do que certa em tudo o que tinha falado. Engoliu então o orgulho e abandonou qualquer desejo de ficar na defensiva e mudar o foco da conversa, decidindo assumir o erro para que tudo o que tinham dito não se transformasse em algo semelhante a palavras escritas na areia, que logo são apagadas pela água do mar.
- Eu acho que... que tem razão. – Disse ele, erguendo lentamente a mão, para segurar a dela enquanto a fitava com o olhar sincero de quem realmente dizia a verdade. – Acho que posso mudar. Ser mais presente. Mais atuante. Enfim, ser mais como o homem com quem você se casou.
Letícia sentiu um rubor subindo pelas faces, ao mesmo tempo em que uma leve vertigem a tomava sem que ela soubesse se era causada pela forma como o marido segurava sua mão ou se pela sinceridade que vira em tudo o que ele acabara de dizer. Então também pensou no jeito como vinha tratando as coisas, e concluiu que Fábio também tinha razão em algumas das coisas que tinha falado.
- Acho que... também está certo. – Respondeu ela, apertando levemente a mão dele e dando-lhe um sorriso discreto, mas que ainda assim sincero. – Acho que eu poderia ser menos brusca nas cobranças e valorizar um pouco mais aquilo que você faz. Mas peço que me escute um pouco mais, e me ajude também. E lhe prometo que vou fazer o possível para ser mais gentil... mesmo quando for para chamar sua atenção.
- Mesmo quando eu fizer xixi fora do vaso?
- Pensei que já tivéssemos passado dessa fase, e que você já tivesse aprendido a lição. – Disse ela, o olhando com uma desconfiança fingida.
- Bem, é como dizem por aí... “cachorro velho não aprende truque novo”. Maaaaas... esse aqui pode fazer algum esforço para mudar.
Os dois riram, e Fábio foi mais para perto dela, dando-lhe um beijo que começou repleto de ternura, mas que aos poucos foi se tornando mais quente, chegando a um estado que há muito eles não experimentavam, e quando já estavam ficando mais do que animados com aquilo, tiveram a atenção chamada pela voz da filha, carregada de indignação.
- Pessoaaaal. O que é isso? Que nojo! Não podem fazer esse negócio em outro lugar?
- Esse negócio... – Disse Fábio. – Foi o que ajudou a colocar você e seu irmão no mundo, então deveria ser grata por isso.
- Ai pai, que nojo! Não precisa entrar nesses detalhes. E parem com isso, é o maior mico ver dois... dois...
- Dois o que, espertinha? – Perguntou Letícia, em tom de desafio.
- Dois coroas se beijando na frente de todo mundo, em plena praia. Alôôô. Se toquem!
- Está a um passo de ficar de castigo e de ter seus direitos sobre o celular e as redes sociais devidamente revogados, mocinha. – Disse Fábio, sendo observado com impaciência pela filha, que naquele instante achou melhor não retorquir, já que o pai não tinha por costume fazer ameaças como aquela.
- Gostei de ver. – Disse Letícia, levantando a mão para que o marido batesse em sua palma, gesto que foi de pronto retribuído.
- E aproveitando que deu uma pausa nas milhões de fotos que estava tirando, pode ficar por aqui enquanto eu e sua mãe vamos dar um mergulho. Preciso tirar uma ou duas coisas da cabeça dela, e fazer com que ela lembre de algumas outras mais antigas. – E deu uma piscada matreira para a esposa, pegando a mão dela e a puxando em direção ao mar.
Depois daquilo, passaram o resto da tarde se divertindo em família, convencendo até mesmo o filho que aquele programa fora melhor do que o “churras” que ele tinha perdido. Em casa pediram uma pizza para o jantar, viram alguns filmes juntos, e quando os filhos foram dormir, Fábio e Letícia fizeram amor como há muito não tinham feito, e para alegria dela, daquela vez não parecera que tinha sido por obrigação.
E assim a paz reinou... ao menos por algumas horas, acabando assim que mais uma vez ele errou a mira ao apontar o “amigo de longa data” para o vaso.
E o resto vocês já sabem.
Vozes pela Casa
Os passos ecoaram pela sala, quebrando o silêncio que abraçava o lugar como uma mãe que aninha a cria nos braços. Um baque se fez ouvir, o som de uma gaveta sendo fechada, ressoando e reverberando pela quietude dos cômodos. As pisadas ecoaram novamente, indo e vindo em meio à calada que circundava o ambiente, logo seguidas do ruído de um arrastar metálico em uma superfície lisa, e depois do tilintar quase cristalino de chaves que tocavam umas nas outras.
O ranger sofrível de dobradiças em movimento ressoou, e logo após uma batida surda foi ouvida quando uma porta foi fechada. Um novo tilintar reverberou depois do ruído surdo de um encaixe de metal sobre metal. Uma chave foi girada, uma tranca foi fechada, e depois novos passos ecoaram do lado de fora, distanciando-se lentamente, para cada vez mais longe, até não se tornarem mais nada do que uma memória em meio ao silêncio que voltou a reinar.
A sala agora vazia estava arrumada, limpa e bem cuidada. Decorada com simplicidade, e em alguns pontos com a displicência com que as pessoas que vivem sozinhas decoram seus cômodos. A um canto, uma enorme estante se destacava, onde livros novos e antigos dividiam espaço com objetos dispostos ao gosto e preferências de quem habitava aquele lugar.
Um sofá espaçoso instalado no meio da sala, com mantas antigas cobrindo seus braços. Uma mesa de centro com tampo de vidro onde objetos se espalhavam de uma forma ligeiramente organizada. Quadros e fotos pendurados nas paredes contavam um pouco da história do dono do lugar, seguindo até o quarto principal, em que uma cama de casal era ladeada por dois criados mudos, onde luminárias e outros itens ocupavam seu espaço.
No banheiro, o cheiro de loção pós-barba se espalhava, e uma toalha molhada repousava sobre a pia, deixada por alguém que displicentemente a esquecera ali. Na cozinha, o ruído contínuo e quase inaudível do motor da geladeira dava um aspecto de quietude ainda maior ao lugar solitário, lançado novamente ao silêncio costumeiro que o habitava depois que o dono saía.
- Ele já foi? - A voz sussurrou em meio à calmaria que se instalara sobre a casa, quebrando a quietude que circundava o lugar.
- Shhh! Quieto! – Foi a resposta que surgiu em seguida, numa voz nervosa e aborrecida, carregada de um tom de reprovação.
- Shhhh?! Shhhh o que?! Shhhh para você! Ele já foi ou não?! Se não tem uma resposta melhor para dar do que só shhh então fique calada!
- Fique calado você, seu tagarela! Será possível que não consegue ficar quieto por muito tempo? Vive falando, falando e falando, matraqueando sem parar com essa voz irritante. Não é à toa que ele quase não lhe usa.
- Usa sim, sua inútil prepotente. Usa para se informar e para relaxar quando quer ouvir uma boa música. Ou não vê que quando quer descansar ele lhe desliga e vem atrás de mim? Pudera! Com todas as baboseiras que você mostra sem parar, deseducando e destruindo neurônios. Isso deve cansar demais a cabeça de qualquer um.
- Você está é com inveja porque só consegue falar, enquanto eu sou mais completa. Falo e mostro. E quanto à minha programação, ela é versátil. Exibe de tudo, e quem vê tem a liberdade de escolher o que assiste. Já você... pffff... se limita a esses programas chatos em que um locutor ou fala de política, esporte, ou simplesmente fica tocando uma música atrás da outra. Você está com ciúmes porque não passa de um tagarela ultrapassado, enquanto eu sou moderna e inovadora. Sou um bem de última geração.
- Última geração?! HA HA HA! – A voz soou zombeteira, saída do notebook fechado sobre a mesa de trabalho que ficava ao lado da estante, contrapondo-se à discussão que vinha sendo travada pelas outras duas, que saíam do rádio e da tv do outro lado da sala. – Moderna? Uma geringonça que já tem mais de cem anos de invenção. Está mais para velha gagá. Moderno sou eu, que tenho uma infinidade de recursos para oferecer, que vocês, parafernálias decrépitas nem de longe possuem.
- Vocês falam de utilidades e modernidade, mas não existe nada mais moderno e útil do que o conhecimento, e esse eu carrego sempre comigo. – A voz soou do alto da estante, e o rádio, a tv e o notebook olharam cheios de ranço para o livro que acabara de falar, como se fossem adversários de longa data.
- Pronto! Falou o arrogante, do alto de seu pedestal. – Resmungou a tv, que há muito tempo não tinha uma relação boa com os livros. – Sempre se achando superior aos outros.
- Não me acho nem superior e nem inferior, apenas mais útil. Sou bem menor em tamanho, mas carrego em meu interior uma infinidade de conhecimentos. Além disso, não faço a algazarra que vocês fazem, não preciso de energia ou bateria, e posso ser levado para todos os lugares. Mesmo quando tentam replicar minhas histórias com adaptações de filmes e séries, não conseguem fazer um trabalho tão completo quanto o que eu faço, e o mais importante, trabalho a mente e a concentração das pessoas que me leem, enquanto vocês apenas distraem e deixam mais preguiçosos aqueles que ficam presos ao que mostram.
- Como eu disse... ar-ro-gan-te. – Repetiu a tv, com desdém.
- Vocês aí ficam se gabando do que podem fazer, de que têm mais a oferecer, mas querem saber a verdade? – Bradou uma voz que vinha da mesa da sala de jantar, onde um jornal estava aberto sobre a superfície do móvel. – A verdade é que desde que aquele troço pequeno chegou, todos vocês estão ultrapassados, já que ele une tudo o que fazem em um só espaço.
Todos se calaram ao lembrarem do celular que era carregado pelo dono para todos os lados, e que de fato tinha tudo aquilo que os demais ofereciam. Da mesa da sala o jornal continuou:
- Aquele cacareco tem dentro dele qualquer livro que queiram ler, pode acessar internet, rádio, televisão, e mais uma pancada de coisas que nem mesmo o próprio dono entende. E além disso, cabe no bolso de uma calça, e pode ser levado para todos os lugares, até mesmo para o banheiro, o que sinceramente, eu considero uma verdadeira falta de higiene.
- Diz isso porque o dono tinha o costume de ler você sentado na privada, e agora não te leva mais para lá. – Provocou o rádio.
- Não mesmo. Na verdade eu acho até um alívio. Agora ele só me pega na mesa, e não preciso mais sentir o cheiro que vem daquele boca suja onde o dono senta.
- EI! – Gritou a privada, do silêncio do banheiro. – Mais respeito aí. Não existe lugar mais limpo e cheiroso na casa do que eu, que vivo cheio de desinfetantes com aroma deliciosos. Seu despeitado de m..., arrogante de b..., pedaço de papel que não serve pra p... nenhuma!
- Como eu disse... – Repetiu o jornal em resposta aos xingamentos. – É um verdadeiro boca suja.
- Ora, cale a boca seu jornaleco de m... – Bradou a privada.
- Calo nada! Trago verdades. Abaixo a censura! Liberdade de imprensa! Nunca irão me calar!!!
- Deixa ele falar... – Disse a tv, com desdém. – Logo, logo ele vai acabar no lixo, ou vai embalar alguma coisa. Talvez até servir de tapetinho para o cachorro do dono despejar aquela coisa marrom e nojenta que sai de dentro dele. Além disso, daqui a pouco nem vai ser comprado mais, já que qualquer um que queira saber das notícias pode me ligar e se informar de tudo o que está acontecendo.
- Ou me ouvir. – Disse o rádio.
- Ou me acessar. – Emendou o computador.
- Todos despeitados. – Retorquiu o jornal. – Desde o boca suja lá no banheiro até o resto. Não aguentam ouvir a verdade e ficam revoltados, atacando quem tem coragem para dizê-la.
- Despeito nada, seu filho de uma p... – Berrou a privada, do silêncio do banheiro. – Eu acho que você está é com saudade de mim, e fica aí, se consumindo e conversando bobagem. Afinal, quem desdenha quer compraaaaar.
O rádio, a tv e o computador começaram a rir, e o livro limitou-se a ficar quieto. Aprendera que só devia falar quando tivesse algo de bom para dizer, e naquele momento não achou que valesse a pena entrar naquela discussão infrutífera.
- Que tal fazermos uma votação? – Propôs a tv. – Algo democrático. Para saber qual de nós é o mais importante.
- Quando eu digo que só fala bobagem ela não acredita. – Retorquiu o rádio. – Ôh, cabeça oca, é claro que cada um aqui vai votar em si mesmo, e aí ninguém vai ganhar. Larga de ser idiota.
- Idiota é você, que até hoje não se conforma de ter sido substituído por mim. Aceita que dói menos, meu bem. Além disso, o livro e a tv são bem sensatos, e mesmo aquele fofoqueiro que é o jornal sabe que a verdade tem que ser dita... a não ser que seja daqueles que fazem parte da imprensa marrom. E tem a geladeira, claro. Ela não é egocêntrica. Não é geladeira? Ei... GELADEIRA!
- Ela não vai falar. Aquela ali vive com a boca cheia. Por isso é daquele tamanho. – Ironizou a privada.
- Ei, mais respeito. – Berrou o jornal. – Isso aí é gordofobia.
- Gordofobia é a mãe! – Bradou a privada. – Eu tenho fobia é de gente tagarela e fofoqueira como você.
- Tagarela é esse insuportável aqui do meu lado. – Interrompeu a tv, provocando o rádio.
- Exibida, egocêntrica, disseminadora de idiotices... – Replicou o rádio.
- Eita que a discussão ficou boa! – O grito partiu da área de serviço, onde a máquina de lavar roupa se animou com o bate-boca. – É isso aí. Roupa suja se lava em casa!
- Que lavem a roupa suja! – Gritou o ventilador. – Desde que não comecem a jogar a m... em mim eu não estou nem aí!
- Ôh gentinha que se acha mais do que é... – Disse o computador, entrando na briga, e assim a discussão se instalou, e a confusão de vozes se espalhou pela casa, chegando a um nível em que no tumulto que se fez já não era possível dizer quem falava o que. Os únicos calados eram o livro, que olhava a baderna como se todos ali fossem bárbaros, e a geladeira, que estava ocupada demais com a boca cheia.
Gritos, xingamentos, trocas de ofensas e outros disparates sendo lançados de lado a lado em uma algazarra que não parecia ter fim lembravam a exata retratação de uma clássica briga de vizinhos no meio da rua, até que um estrondo se fez ouvir, e todos se calaram de repente, como se um trovão tivesse ribombado em todos os cômodos.
- SILÊNCIOOOOOOOOOO!!!!!!!
A voz grossa e profunda ecoou por todo o ambiente, e imediatamente todos os móveis se calaram, emudecendo em um silêncio sepulcral que pareceu seguir o rastro deixado pelo ecos finais do grito que tanto os assustara. Até mesmo o jornal, que não era dado a calar-se quando lhe mandavam, ficou quieto depois da ordem que subitamente ecoou pelo lugar.
- Sinceramente... – Continuou a voz trovejante. – Eu não aguento mais essa algazarra de vocês. Toda vez que ele sai é a mesma coisa, a mesma ladainha, as mesmas brigas e provocações inúteis que só mostram o quão idiotas todos aí são. Um dizendo que é melhor que o outro, que sabe mais, que pode mais, que é mais novo, que é mais limpo, ou mais bonito ou o que for... Ora bolas, em que isso os torna melhores do que os outros? Algum sabichão aí pode dizer?
O silêncio continuou incólume, e nenhum deles respondeu à pergunta que vinha da boca da própria casa, que servia de abrigo e lar para cada um daqueles móveis, e, claro, para o próprio dono.
- Livro! – Falou novamente a casa. – Você que é símbolo de sabedoria, me dê a reposta para a pergunta que fiz.
- Só sei que nada sei. – Limitou-se a responder o livro.
- Saiu pela tangente. É realmente mais inteligente que todos aí. Mas e você, rádio, que gosta tanto de falar. Tem alguma resposta para me dar?
O rádio silenciou, e até mesmo o chiado abafado que surgia quando alguma estação ficava fora do ar diminuiu a tal ponto que não pôde ser ouvido.
- Televisão? – Bradou a casa. – Você, que gosta tanto de se exibir, pode dizer o que importa saber quem é o melhor aqui?
A pequena luz vermelha que ficava na parte inferior da televisão foi sumindo aos poucos, até não poder mais ser vista, e o silêncio continuou a imperar.
- Pelo que vi o notebook fechou-se sozinho, então acho que dele também não vou receber resposta alguma. – Falou a casa, impaciente. – Vamos então a quem se julga tão bom em falar a verdade. Jornal... o que me diz?
Para espanto de todos o jornal, que vivia falando, falando e falando, talvez até mais do que o próprio rádio, não teve nada a dizer, o que deixou todos atônitos, menos a casa, que conhecia como ninguém cada um daqueles que a habitavam.
- Da privada eu dispenso comentários, e pelo visto a geladeira continua de boca cheia, o que no fim das contas é algo bom para o dono, e a cama, para variar, está dormindo. Mas como não recebi a resposta que queria, então vou dá-la eu mesma. Talvez assim eu consiga o silêncio merecido. Honestamente, com todos vocês tagarelando às vezes penso que estou enlouquecendo, ouvindo tantas vozes na minha cabeça.
Nenhuma voz foi ouvida além da que pertencia à própria casa, perdendo-se no silêncio conforme seus ecos foram diminuindo. Ela então continuou.
- Como sabem, cheguei aqui antes de todos vocês, até mesmo a privada, que só foi instalada depois que minhas paredes já tinham subido e minha cabeleira de telha já tinha sido erguida. Quando cheguei, tudo era silêncio, e o mero ato de caminhar aqui dentro espalhava os ecos por todo o lugar. Foi assim que conheci o dono, que veio ver o produto final do seu tão sonhado projeto.
“Vi a cada dia que passou a alegria estampada em seu rosto, que crescia conforme ele ia pouco a pouco me preenchendo com as coisas de que gostava, que tinham um pouco das características dele, e que deixavam a marca de sua personalidade em seu tão almejado lar. Um quadro, uma estante, um sofá, uma poltrona. A cama, a geladeira, o fogão. A mesa, as plantas, os livros. O rádio, a tv, o computador, tudo foi escolhido pessoalmente pelo dono, e sabem o que isso significa?
Nenhum deles respondeu, e o silêncio continuou imperando no lugar.
- Se soubesse que para ter a tranquilidade que tanto quero bastaria perguntar algo a vocês, já teria feito isso há mais tempo. – Ironizou a casa. – O significado, meus insuportáveis tagarelas, é que cada um tem sua parcela de importância, e se um de vocês quebrar ou se perder, o dono vai sentir falta, não importa qual seja. Então antes de ficarem aí medindo forças, se concentrem em fazer o que cada um deve fazer, sem achar-se superior ao outro, porque no fim das contas, com recursos a mais, ou não, vocês são todos iguais.
Nenhum deles falou, nenhuma palavra foi dita, e pelo restante do dia o silêncio foi tudo o que se ouviu naquela casa, sendo interrompido apenas pela chegada do dono, que depois de colocar a chave e o celular na mesinha ao lado da porta, caminhou até o banheiro, onde usou o vaso, tomou um demorado banho, trocou-se, abriu a geladeira, preparou o jantar no fogão, sentou-se à mesa e leu o jornal enquanto comia, checou os e-mails no computador, ligou a tv para ver sua série preferida, separou uma hora para ler um dos livros da estante, e pouco antes de dormir colocou uma playlist no rádio para relaxar, sendo a todo instante observado por todos os objetos e móveis, e cada um, a seu modo, começou a entender o significado do que a casa dissera naquela tarde.
A noite então avançou em sua quietude profunda, e o dono, sonolento e cansado depois de um longo dia de trabalho, aninhou-se na cama, repousando no tão almejado e merecido sono, enquanto a paz reinava no restante da casa, sem brigas, sem discussões, sem intrigas ou comparações, porque cada um finalmente entendera que possuía sua própria importância, e que isso era mais do que suficiente para que vivessem em harmonia.
Pelo menos até que o jornal e a privada começassem a se provocar novamente.
O Tempo que Vivemos
“O tempo passa nas asas do vento. Não se sabe para onde foi e nem o quão rápido passou. Sabe-se apenas que em algum momento ele esteve lá”.
Aquelas eram as palavras que seu avô tinha lhe dito um dia, e em sua juventude despreocupada não compreendeu o significado que havia por trás delas. Certas coisas só podem ser compreendidas quando se passa por elas, ou quando elas passam por você, algo que o transcorrer dos anos finalmente tinha lhe ensinado.
E assim como aquelas palavras, como o vento, e como os encontros que tiveram em dias tão distantes que agora pareciam ecos perdidos no infinito, o seu avô também tinha passado, deixando para trás apenas as lembranças que ainda permaneciam como arautos da dor do vazio, mas também da doçura da saudade que havia deixado como legado da herança de sua passagem.
Ali, sentado naquele dia ensolarado, com a brisa suave tocando seu rosto enrugado e balançando os parcos fios embranquecidos de seus cabelos ele pensava naquelas palavras, naquelas memórias, e em como um dia seria como elas, uma marca de alguém que veio e foi embora, como um grão de areia carregado pela aragem que chega do oceano, ou como o último raio de sol que se esvai no horizonte púrpura.
Pensativo ele perguntou-se para onde tinha ido. O tempo. Seus dias, sua juventude, o frescor que um dia estivera ali, a força que outrora fora redobrada, mas agora já não chegava à metade do que antes tinha sido. Onde estavam agora? Onde se escondiam? E talvez a pergunta que mais o intrigava dentre todas aquelas. Quando tinham partido?
“O tempo passa nas asas do vento”, as palavras de seu avô surgiram novamente. “Deixando para trás apenas lembranças. O legado de dias que tinham sido, mas já não eram.” Aquilo o entristeceu. Pensar que um dia não seria mais, não estaria mais, não viveria mais. Que um dia não passaria de uma cadeira vazia a um canto da sala, e isso se alguém se preocupasse em manter ali aquela cadeira.
Desalentado ele olhou para as mãos que repousavam sobre os joelhos. Estavam marcadas, ressecadas, e trêmulas. Tinham perdido a força e o vigor que tiveram um dia, servindo de porto seguro para os que delas dependiam. Pensou com tristeza que já não possuíam a mesma tenacidade de antes, e a conclusão lhe arrancou um suspiro de resignação forçada.
Uma lufada de vento chegou-lhe à face com um pouco mais de força, aliviando o calor do sol que aumentava conforme o astro de fogo avançava em sua caminhada rumo ao alto, e aquilo lhe ajudou a fugir um pouco dos pensamentos que o deprimiam. Correu então os olhos pelo lugar que o circundava. O parque com a grama aparada que se espalhava, interrompida apenas pelos espelhos d’água que brilhavam refletindo a luz solar.
As árvores que farfalhavam com a brisa, sussurrando preguiçosamente suas canções que tanta paz trazia aos corações de quem a elas escutava. Olhou para os casais que passeavam, para as crianças que brincavam, e para o adulto jogando bola com um menino a apenas alguns metros dele, imagens que tinha ignorado até então.
“Um dia passarão também”, pensou. “Até mesmo as árvores e os lagos. Até mesmo as pedras e o ar. Um dia, como tudo o que passa, isso tudo passará.”
Seu coração ficou apertado com a ideia, e ele se entristeceu um pouco mais. Mas antes que tivesse tempo para um novo suspiro desalentado, teve a atenção chamada por algo que repentinamente tocara seus pés. Moveu-se lentamente, interessado em ver o que era, e vislumbrou uma bola que ainda girava parada sobre a grama esverdeada.
- Joga a bola vô! – Ouviu uma voz que vinha de perto, carregada do timbre da juventude que despreocupada não olhava para os dias à frente, e nem se enchia de saudade pelos que tinham ficado para trás. Viu então o dono dela. O menino de nove anos que brincava com o adulto ali perto, ambos por ele ignorados enquanto deixava a mente ser levada pelos pensamentos que o tinham entristecido.
Olhou para o neto, e depois para o filho. Duas versões de si mesmo em épocas diferentes do tempo. Divisou o filho, com seus cabelos já grisalhos e pequenas linhas se formando na pele ainda jovem. O corpo já não tinha a mesma agilidade de antes, mas ainda possuía os resquícios da força de uma juventude cuja presença ainda era demarcada pelo sorriso reluzente que sempre estava presente naquele rosto.
Olhou por um longo tempo para ele, lembrando-se com uma rapidez vertiginosa de todas as vezes em que tinham estado juntos. Dos risos, das lágrimas, das brincadeiras, das repreensões, das vezes em que mesmo no silêncio partilhado na companhia um do outro tinham aprendido e ensinado tanto. Rememorou o primeiro sorriso, o primeiro choro, o primeiro jogo que viram juntos e a conversa que tiveram quando ainda criança ele chegara para lhe contar sobre o primeiro beijo.
Lembrou de tudo aquilo e muito mais, e cada memória não vinha acompanhada de dor ou da angústia de não ter mais o tempo que ficara para trás, mas sim da alegria de ter participado de tudo aquilo. “Como posso me entristecer quando fiz parte de algo tão belo, e quando presenciei tantas vezes algo tão bonito como o sorriso de um filho?” perguntou-se no silêncio de sua mente.
Fitou então o neto, que o olhava impaciente, com olhos grandes e brilhantes à espera da devolução de sua bola. Era tão parecido com ele quando tivera aquela idade, e ao mesmo tempo tão diferente, mas lindo em todas as semelhanças e diferenças que enxergava naquele rosto despreocupado. Não partilharia com ele de todas as experiências que partilhara com o filho, mas só de ter o privilégio de dividir com o menino o tempo que ainda tinha pela frente já afastava qualquer tristeza que tentasse invadir seu coração.
“Não é o tempo que vivemos, mas o que vivemos com o tempo que temos que realmente importa”, pensou, e lembrou-se novamente do dia em que ouvira do próprio avô as palavras que tanto o haviam entristecido momentos antes, mas que em sua essência não carregavam tristeza. Não se fossem vistas com os olhos de quem conseguia enxergar além. Além até mesmo do próprio tempo.
- Vô. Acorda! A bola. Vem jogar com a gente! – Disse o menino, sem tirar do rosto do mais velho os olhos impacientes e ao mesmo tempo repletos de alegria.
- Pai. Você está bem? – Perguntou o filho, ligeiramente apreensivo com o silêncio do velho.
Mas em sua mente as palavras de ambos se misturavam aos pensamentos que voavam com intensidade, e em meio às lembranças partilhadas no muito e no pouco com aquelas duas versões dele mesmo, finalmente entendeu que ainda não tinha compreendido de verdade a plenitude do significado das palavras que o próprio avô lhe dissera um dia.
“O tempo passa nas asas do vento”, que embora breve viaja pelo mundo, enxergando e presenciando belezas que nem o mais notável dos escritores conseguiria descrever.
“O tempo passa nas asas do vento”, mas deixa para trás as lembranças felizes do que se viveu, que não devem ser rememoradas com tristeza ou com uma sensação de vazio, mas com uma saudade agradável que levava a compreender a grandeza e a alegria de tudo o que fora vivenciado.
“O tempo passa nas asas do vento”, e como é bom ser carregado junto nesse voo tão breve, mas ao mesmo tempo tão esplêndido, levando consigo a sensação do quão única, singular e fenomenal é aquela experiência.
E quanto ao legado de dias que tinham sido, mas já não eram, ele compreendeu que ao menos possuía aquela herança, que era algo que muitos sequer podiam dizer que tinham vivido. Os dias já não eram, mas certa vez tinham sido, e o quão maravilhoso era aquilo? Saber que tinha feito parte de tudo, e poder lembrar de algo tão bom e tão único que ficava marcado com letras enormes e brilhantes na mente e no coração?
Olhou novamente para o rosto ligeiramente apreensivo do filho, e naquela preocupação viu o amor que alguém sentia por um pai, a ponto de preocupar-se com ele. De estar com ele em um domingo de sol em que poderia estar em qualquer outro lugar, com qualquer outra pessoa.
Viu a face do neto, e lembrou-se do pedido do garoto para que fosse com eles partilhar da brincadeira, enxergando naqueles gestos o amor de uma criança por um avô que já não podia acompanha-lo nas destrezas da juventude, mas que ainda assim era amado a ponto de ser convidado a compartilhar daqueles momentos.
“É interessante como perto do fim da jornada deixamos de olhar para frente e passamos a olhar mais para o caminho que passou”, pensou.
O tempo passa nas asas do vento, mas há tanto ainda para ser vivido. Mesmo perto da porta que leva ao mistério primordial deveríamos vislumbrar apenas o que há à frente, e quanto ao que ficou para trás, devemos ver apenas o que de bom passou, porque é apenas isso que levaremos quando finalmente chegarmos à passagem que há adiante. As lembranças boas, e a consciência do bem que foi feito e vivido... como a experiência de uma paternidade dupla, vivendo como pai, e como avô.
Sorriu para o neto, e aos olhos do filho pareceu, por um átimo de segundo, alguém que deixara para trás o peso dos anos. Pegou a bola, levantou-se e entregou-a ao neto, segurando uma das mãos do menino, e mais adiante abraçando o filho, seguro de que um dia seria mais do que uma cadeira vazia a um canto da sala. Seria um grande lugar ocupado, em vários corações.
“Não é o tempo que vivemos, mas o que vivemos, e com quem vivemos com o tempo que temos o que realmente importa”.
Um feliz dia dos pais.
São João
O céu limpo pairava sobre o mundo, recoberto por um oceano de estrelas que se expandia em direção ao infinito, brilhando numa senda iluminada por bilhões de pontos de luz que silenciosos se estendiam como pequenos diamantes postos sobre o lençol negro do firmamento noturno.
Abaixo dele a noite calava, envolta em uma bruma suave e fria que abraçava as árvores que sobre ela se erguiam como silenciosos guardiões, projetando suas sombras acinzentadas sobre o chão orvalhado e macio, onde a grama brilhava refletindo nas gotículas que a tomavam o brilho pálido das estrelas que se erguiam sobre aquele quadro de quietude.
Mas dos confins daquele silêncio que parecia abraçar e acalentar toda a vida que havia ao redor, um ruído surgia à distância, e lânguida e preguiçosamente se espalhava conforme ouvidos mais atentos se aproximavam de sua fonte de origem.
Um passo, e o som começava a ganhar forma. Dois, e a cadência lentamente se anunciava. Três, e nele já se reconheciam a voz melodiosa e o ruído manhoso dos instrumentos que formavam a construção musical que ganhava o ar, aquecendo e animando os corações daqueles que com pés apressados rompiam a barreira da noite para adentrar no enorme terreiro repleto de luz e calor que quebrava o frio e o silêncio que havia lá fora, impedidos de entrar nos limites do pavilhão de onde emanava a efusiva canção que colocava fogo nos pensamentos e nos corações de quem ali se fazia presente.
Para além do pavilhão, que demarcava a entrada da pequena vila que se fazia reinado, onde cada morador tinha um castelo, sendo monarcas de seus próprios reinos de animação e êxtase, fogueiras se espalhavam nas calçadas, ávidas por rivalizarem com a luz das estrelas que brilhavam no alto, aquecendo, iluminando e espalhando pelo ar o cheiro de milho assando, de carne dourando no fogo e do quentão sendo aquecido para espalhar pelas veias dos presentes o calor dos festejos e da animação que a noite prometia.
Junto ao alarido da música as vozes das crianças se misturavam, se mesclavam em cantos, em brados, em sorrisos e em pequenos gritos de alegria que por vezes superavam o estampido dos fogos coloridos que estouravam com as gargalhadas dos pequenos, que de um lado a outro corriam com suas chuvas de faíscas balançando e desenhando no ar o rastro de fogo e deixando para trás os espectros de fumaça das formas que permaneciam suspensas pelo intervalo de alguns segundos.
Nas calçadas, velhos sorriam, marcando com vincos ainda mais profundos suas faces enrugadas, cantando, gritando, conversando e narrando anedotas, causos, contos e lembranças de noites iguais àquela, que tinham ficado gravados em suas memórias tais quais as rugas em seus rostos. Olhos turvos pela idade para a visão que se estendia diante deles, mas com as imagens do passado nítidas em suas cabeças, como se estivessem se passando naquele exato instante.
Aqui e ali homens bradavam e cantavam com copos de cachaça na mão, enquanto suas mulheres se queixavam da interminável bebedeira, ao mesmo tempo em que arrumavam ocasião e assunto para falar da moça assanhada que beijava às escondidas um jovem e simultaneamente lançava olhares faceiros para outro que de longe a observava.
Na porta da Igreja, enfeitada com gambiarras luminosas que se espalhavam pela fachada, o padre observava a tudo, se divertindo com a alegria das crianças, reprovando com um olhar mais sério as bebedeiras e as paqueras que se alongavam pela rua e rezando pela alma de todos, pedindo a São João que naquela noite em sua homenagem intercedesse pelos corações dos que ali se faziam presentes, e também dos que já não mais estavam lá, mas que um dia tinham se divertido daquela mesma forma, com aquela mesma euforia esfuziante que aquecera de forma semelhante todos aqueles corações.
Nas mesas estendidas pelos alpendres das velhas casas os pratos se multiplicavam com as gostosuras da estação. Milho, pé de moleque, canjica, pamonha, quentão, e mais uma infinidade que era devorada ora pelos olhos, ora pela boca cheia de avidez dos mais espertos que por ali passavam, deixando que outros dançassem, bebessem ou fofocassem, enquanto eles forravam o bucho para em seguida aproveitar tudo o mais que a festa tinha a oferecer.
E assim a noite se estendia, sem hora para chegar ao seu fim, sorrisos nos rostos, fogos no céu, calor nos corpos e o brilho das fogueiras se misturando à decoração, às cores, às bandeirolas, à música que se espalhava no ar, ao cheiro da comida e à vontade de namorar.
E no salão de chão batido, lotado no pavilhão, pés batiam, vozes cantavam, pois era noite de São João.
Na voz do cantador,
uma história era contada,
a história do belo amor,
de um jovem por sua amada.
Duas partes de um todo,
que distantes tinham ficado,
mas cuja a força de seu amor,
a ambos tinha juntado
E o beijo que na espera
Por eles fora guardado
Na noite em que se viram
Com ardor fora trocado
E no choro de uma sanfona
O casal apaixonado
Trocou seu primeiro beijo
No encontro tão esperado
E o que um dia fora distante,
Tão perto tinha ficado
No laço do grande amor
De um casal enamorado
A música no ar ecoava levando aquela poesia, carregada de saudade, de apego e de magia, e os jovens que ali dançavam, no arrasta pé acelerado, mal sabiam que aquele casal, também dançava ali ao lado, recordando a primeira noite, em que tinham se beijado, se visto, se encontrado, se tocado e se amado.
Lembrando que aquela noite, que os fizera um só coração, fora uma noite como aquela, uma noite de São João.
Mãe
O sol mal tivera tempo de dar a primeira espiadela por cima da linha do horizonte, e mesmo com o mundo ainda envolvido pela penumbra cinzenta que mescla o término da noite e o princípio da manhã, seus olhos já estavam abertos, pesados e sonolentos enquanto eram convencidos por sua mente igualmente cansada de que não, ela já não estava dormindo, e que já era chegada a hora de levantar-se para encarar a rotina cansativa de um novo dia.
Era segunda- feira, e não precisava olhar para o relógio que piscava em números escarlates no criado mudo para saber que já eram cinco da manhã, e que em alguns minutos o despertador que ajustara horas antes tocaria estridente, para fazer o que seu próprio organismo já tratara de pôr em prática, despertando-a para aquele novo dia.
Correu os olhos ainda turvos pelo quarto onde à meia luz não conseguia distinguir inteiramente o que estava ao seu redor, embora soubesse de cor onde cada coisa estava, e perguntou-se como as horas entre o momento em que os fechara na noite anterior, e aquele em que os abrira, tinham se passado como se fossem alguns poucos segundos.
Certo que seu período de sono não fora dos mais extensos, algo que já tinha se tornado uma rotina em sua vida, mas mesmo cinco horas eram um tempo que servia para algum descanso, ou ao menos era o que esperava, já que cada fibra de seu corpo parecia dizer o contrário.
“Na verdade, minha cara, cinco horas, no contexto em que se transformou sua vida, podem passar no intervalo de um piscar de olhos”, ouviu-se dizendo nos recônditos de sua mente cansada, que tratava de dar-lhe o estímulo final para que ignorasse o cansaço e aceitasse que tinha de levantar e preparar-se para a rotina de sempre.
Com um suspiro ela apoiou-se em um braço, de lado na cama, enquanto que com a outra mão esfregava os olhos insistentemente, como se quisesse dizer ao sono que se conformasse, porque aquelas poucas horas eram todo o tempo que poderia dedicar a ele, e naquele exato instante, como se fosse um reforço para o que ela fazia, o relógio finalmente tocou estridente, berrando no silêncio do quarto o aviso para que despertasse para um novo dia.
“Já vou, já vou. Mas que droga!”, disse entredentes enquanto virava o corpo dolorido para onde estava o criado mudo e desajeitadamente apalpava o despertador em busca do botão que colocaria fim a toda aquela algazarra irritante. Depois de três tentativas frustradas que quase resultaram na derrubada desastrada do aparelho ela conseguiu encontrar o que queria, e silenciou o sinalizador inoportuno.
Assim que o fez se viu envolvida pelo silêncio, e por pouco não cedeu ao desejo de desabar na cama e dormir por mais cinco horas, o que considerava que seria o mínimo de descanso aceitável para alguém que fazia o tanto que ela fazia, mas a mente, tão insistente quanto o relógio, continuou apitando de forma contínua, e contra aquilo não havia qualquer botão que pudesse apertar para interromper.
Levantou-se sem energia sequer para se espreguiçar, e cambaleando com a vista ainda turva caminhou em direção ao banheiro, onde assim que acendeu a luz ficou desnorteada pela claridade que de uma só vez expulsou a escuridão, ofuscando seus olhos que ainda pareciam presos ao mundo do sono. Pouco a pouco os abriu, irritada enquanto o fazia, irritação que apenas aumentou quando conseguiu livrar-se da cortina baça que ainda encobria sua vista e passou a enxergar com mais nitidez para ver no espelho uma mulher que lhe parecia uma perfeita estranha.
Levou alguns segundos para desvencilhar-se da confusão do sono e convencer-se que a imagem refletida era realmente a dela, e não ficou mais feliz depois disso. A pele que em um dia que não parecia muito distante tivera o viço e a firmeza da juventude agora estava levemente murcha e marcada com as linhas de expressão que pareciam acumular-se mais e mais com o passar do tempo.
Os olhos castanhos pareciam ainda mais escuros por causa das olheiras profundas que os cercavam, e por um instante ela lembrou-se de uma época remota de sua adolescência em que se fantasiara de morta viva para uma festa de halloween, precisando de maquiagem para ter a aparência que o cansaço e a falta de sono tinham acabado de infligir-lhe.
Nos cabelos emaranhados pelas voltas que provavelmente dera na cama em uma noite mal dormida que parecia ter durado apenas alguns segundos ela enxergou os fios brancos que se espalhavam aqui e ali, destacando-se tanto quanto as olheiras em seu rosto. “Trabalho demais, tempo de menos para ir ao salão”, falou para si mesma enquanto abria a torneira e enchia as mãos com a água fria que saía para em seguida esfregar com ela o rosto, torcendo para que ao fazê-lo conseguisse eliminar as marcas profundas como um dia conseguira fazer com a maquiagem de zumbi.
Ao terminar não se deu ao trabalho de ver qual fora o resultado, e de pronto meteu-se embaixo do chuveiro para tomar um banho rápido que certamente lhe acordaria de uma vez por todas. Sabia pela própria experiência conquistada pela repetição diária daquela mesma rotina que teria menos de uma hora para arrumar-se de uma forma minimamente decente para o trabalho, fazer o café da manhã e concluir o que talvez fosse a tarefa mais difícil de todos os dias, retirar os três filhos da cama e fazer com que estivessem prontos a tempo de saírem na hora para que nem eles chegassem atrasados à escola, e nem ela ao escritório.
Em pouco tempo saiu do banho, deixando ali o restante do sono persistente que a convidava languidamente a voltar para a cama e dormir por um século inteiro a fim de realmente descansar o bastante de sua rotina cansativa. No quarto, lançou um rápido olhar para a cama desarrumada, tentando lembrar-se se aquele era o dia de trabalho da diarista, porque se não fosse a bagunça de lençóis e cobertores ficaria ali do mesmo jeito que estava, esperando que chegasse à noite e tivesse tempo de arrumá-la.
Olhando para a cama parou por um segundo para divisar o lugar vazio que um dia estivera ocupado por alguém. Alguém que agora tinha casado novamente com uma mulher dez anos mais nova do que ela, e que vivia reclamando da falta de tempo quando tudo o que fazia além do trabalho era jantar quase diariamente em restaurantes caros com a garota que conhecera na crise da meia idade, mal se dando ao trabalho de ser um pai para os três filhos que naquele momento ainda dormiam e que a muito custo, ela sabia bem, seriam arrancados da cama para mais uma rotina de resmungos e reclamações antes de irem para a escola.
Trocou de roupa lembrando das inúmeras vezes em que pedira ajuda ao ex para deixar ou pegar os filhos na escola, ouvindo na maioria delas uma resposta já decorada em um tom insolente e ensaiado em que nitidamente fingia um cansaço na voz ao dizer “estou muito ocupado”, ou “não tenho tempo”, ou até mesmo “o que ficou acordado era que eu os veria apenas nos finais de semana”.
“Finais de semana... pffff”, resmungou entredentes enquanto descia as escadas para começar a preparar o café da manhã, recordando que as visitas se davam apenas a cada quinze dias, e que mesmo assim os filhos eram pegos no sábado de manhã e deixados lá novamente no domingo à noite, o que lhe dava tempo para nada com mais coisa nenhuma, e tudo o que conseguia fazer nesse período era tirar algumas horas de um sono que sequer de longe servia para recuperar o desgaste da semana.
Enquanto colocava a água para esquentar no fogão e começava a fritar os ovos na frigideira ela divertiu-se com o pensamento de que bem que alguns maridos poderiam ter o mesmo destino do louva-a-deus, o inseto em que após o ato sexual a fêmea devorava a cabeça do macho para conseguir mais nutrientes e assim gerar mais ovos, mas logo demoveu-se da ideia, que além de absurda de nada lhe adiantaria, já que seu ex era tão ruim que ao invés de energia provavelmente acabaria lhe dando uma bela indigestão.
Depois de fazer ao menos três tarefas ao mesmo tempo por vez, fritando ovos, assando pão, passando o café, tudo ao gosto dos três dorminhocos que ainda roncavam no andar de cima, com tudo pronto ela subiu, preparando-se para o que seria a tarefa mais difícil daquele início de manhã, que era tirar os rebentos da cama e fazer com que se arrumassem a tempo.
Calejada depois de anos desempenhando aquela tarefa ela soube que não bastava sacudi-los e mandar que levantassem, porque provavelmente na volta estariam na mesma posição, embaixo dos lençóis, resmungando ainda de olhos fechados e fazendo o pedido que parecia estar gravado no DNA de todas as crianças e adolescentes... “só mais cinco minutinhos “.
Um a um ela puxou lençóis até que caíssem da cama, tirou fardas do armário e abriu cortinas e acendeu luzes para convencer de uma vez por todas os três entusiastas do mundo de Orfeu a deixarem o sono para trás. No processo ouviu os lamentos dos dois filhos e da filha, cada um deles dizendo que estavam cansados demais e que precisavam dormir mais um pouco. “Como se tivessem a mais vaga noção do que é cansaço”, disse para si mesma enquanto lembrava de sua própria rotina.
Depois de meia hora gritando de quarto em quarto, cobrando mais rapidez e chegando mesmo a empurrar um dos filhos diretamente para debaixo do chuveiro sob intensos e lamuriosos protestos, ela finalmente conseguiu reunir os três à mesa no café, tendo que lidar com as características distintas de cada um deles.
O mais velho, no alto da “aborrecência” de seus doze anos não gostava de comer, e mastigava a comida lentamente, como uma vaca que ruminava no pasto, encarando o vazio com olhos baços como se ainda estivesse dormindo, e vendo que metade do prato que fizera para ele ficaria intocado, respirou fundo para conseguir a paciência necessária para lidar com tamanho fastio.
O outro, dois anos mais novo, parecia ter em seu interior um vazio sem fim, que nem toda a comida do mundo seria capaz de preencher, e durante a refeição viu as idas e vindas do garoto em direção à geladeira para reforçar o prato. “Pelo menos ele pode comer o que o irmão deixar, assim não estragamos comida”, pensou ouvindo o som incômodo do mastigar de cada um deles.
No fim da escadinha estava a filha caçula, uma cópia em miniatura dela mesma, que parecia absorta demais enquanto brincava com a comida, levando a colher com o iogurte à boca da boneca que tinha no colo e lambuzando-se no processo, feliz em brincar de mamãe com o pequeno simulacro de criança que ganhara de presente no último aniversário.
“Se ela soubesse o trabalho que dá, acho que ficaria mais interessada na comida do que na boneca”, pensou, ouvindo lá no fundo uma voz que a repreendia por se queixar da benesse sem tamanho que era ser mãe. Finda aquela última etapa ela deixou os pratos na pia porque não teria tempo de lavá-los, e às pressas levou os filhos ao carro, e de lá ao processo desgastante de leva-los à escola, tendo que no caminho promover um tratado de paz por algumas vezes diante do conflito entre os dois irmãos mais velhos, o que fazia da forma mais diplomática possível, gritando com ambos e ameaçando com toda a sorte de castigos que vinham à sua mente. A ONU provavelmente não teria trabalho em acabar com algumas guerras, caso fizesse uso daquele método.
Cumprida a extenuante tarefa que enfrentava quase todas as manhãs ela correu para o trabalho, porque além de mãe era também empresária, dona de seu próprio negócio, que tinha de administrar para ajudar a promover o sustento daqueles três seres humanos que pareciam não valorizar muito do que ela fazia. Mas ao menos tinha o consolo de saber que o trabalho que teria ali não chegaria à metade do que tinha no processo que era cuidar, ajudar, proteger, ensinar e educar os filhos, principalmente quando fazia tudo aquilo praticamente sozinha, sem o auxílio do bicho pai, que parecia preocupar-se mais com a própria vida, esquecendo que ajudara a colocar três filhos no mundo.
O dia passou, e como os demais foi extenuante, cansativo e estressante, e no fim da tarde teve de encarar o tráfego longo e lento para pegar os filhos na escola e preparar-se para o que seria o terceiro turno, composto de preparar o jantar, lavar a louça com pouca ou nenhuma ajuda, separar duas ou três brigas no processo, cobrar que o mais velho largasse o celular para estudar um pouco, já que estava com notas baixas na escola e depois de tudo, ainda ter que fazer o trabalho que não conseguira concluir no escritório e tivera de levar para casa.
E era apenas segunda-feira.
Assim a semana passou, como um replay do que fora aquele dia, em que o cenário parecia o mesmo, o roteiro era praticamente idêntico, e as falas eram repetidas praticamente da mesma forma em todos os contextos, até que chegou o fim de semana e com ele a vã esperança de conseguir descansar um pouco, algo que sabia que provavelmente não conseguiria, já que aquele era, como dizia o seu ex, “o final de semana dela”.
O sábado passou, cansativo como de costume, com a filha querendo sua atenção constantemente para ver desenhos de criança que já tinha assistido tantas vezes que já sabia decoradas todas as falas e episódios. “Acho que poderia facilmente esganar uma certa galinha e uma certa porquinha”, pensou, cansada daqueles personagens e imaginando o que os defensores dos direitos animais diriam se ela externasse aquele pensamento.
Mas ao menos sabia que podia ficar relativamente tranquila enquanto os outros filhos estariam brincando na quadra com os demais amiguinhos, e não dentro de casa gritando, sujando as coisas, e trocando insultos e tapas um com o outro.
O dia terminou com uma pizza e mais louça para lavar, e depois de deixar tudo limpo foi dormir com a sensação de que não descansara nada, e que dificilmente conseguiria relaxar na manhã seguinte, mesmo sendo domingo. Pelo menos tinha o consolo de que não teria que acordar cedo, e poderia dormir mais um pouco.
O domingo chegou, e frustrada ela viu que nem mesmo seu relógio biológico lhe dava folga, acordando-a depois das mesmas cinco horas. Irritada, virou-se na cama pela meia hora seguinte, tentando convencer seu organismo que não havia colégio ou trabalho naquele dia, pelo menos não o trabalho que era feito fora de casa, mas não conseguiu êxito naquilo, e depois de esperar o sol subir mais um pouco resolveu que não adiantaria de nada ficar ali, e levantou-se para preparar o café, satisfeita em saber que ao menos não teria que se arrumar ou se maquiar, e muito menos ter a extenuante tarefa de acordar os filhos, que diferentemente dela dormiriam até mais tarde naquele dia.
Passou pelo quarto dos filhos sem preocupar-se em olhar pelas portas, já que sabia que todos estariam na inocência pura do sono despreocupado dos infantes, mas assim que chegou à beira da escada teve a atenção chamada não pela visão, mas pelo olfato. Tinha coisa queimando lá embaixo, e em uma casa com duas crianças e mais um pequeno trabalhoso recém entrado na adolescência, todos com hormônios explodindo e com uma mente que acelerava a mil em busca de coisas para fazer, algo como aquilo não era o melhor dos sinais.
Atabalhoada e com o corpo cansado e recém desperto ela desceu as escadas, escapando de escorregar por duas vezes no trajeto, até que alcançou o piso e depois do que pareceu menos de um segundo chegou à cozinha, onde a imagem que viu a surpreendeu... e para além disso a irritou profundamente.
Guardadas as devidas proporções, se um mini furacão passasse por um local ela achava que a imagem do estrago deixado seria exatamente aquela, e depois de acostumar sua vista pasma ao cenário calamitoso que ali encontrou, concluiu que não tinha sido um, mas na verdade três furacões que lá tinham passado.
Aturdida com aquele excesso de informação logo no início de uma manhã de domingo olhou ao redor, querendo fechar os olhos, esfrega-los e abri-los novamente na tentativa de descobrir que a bagunça à sua frente era apenas uma ilusão de ótica ou um truque pregado por sua mente cansada.
A mesa que ficava no meio da cozinha estava tomada por uma miscelânea de coisas que não lhe permitiam sequer distinguir com precisão cada uma delas, arriscando dizer apenas que no meio daquilo havia uma gama de cascas de ovo quebradas, algumas com a gema ainda vazando de dentro. Migalhas de pão se espalhavam como se os próprios João e Maria tivessem passado por ali em direção à casa da bruxa, e cascas de banana, mamão, melão e caroços de melancia se juntavam em um verdadeiro desfile de carnaval de hortifrúti que terminava com um rastro da polpa de cada uma delas, escorrendo e pingando pela beirada da mesa até alcançar uma poça multicor no chão que em algum instante daquela manhã estivera limpo.
E para completar a festa havia pó de café por todo lugar, até mesmo grudado na porta da geladeira em marcas de pequenas mãozinhas de menina que ela logo descobriu a quem pertenciam. Ainda confusa com tudo aquilo foi alertada uma vez mais pelo cheiro de queimado, e correndo a vista pelo lugar descobriu uma frigideira no fogão ligado onde o que deveria ser uma panqueca tinha se transformado no que mais parecia um pedaço de carvão.
Rapidamente correu em direção ao fogão e desligou a boca, fazendo uma careta enquanto abanava o ar para afastar a fumaça e o cheiro de queimado. Então seu senso disciplinar de mãe entrou em modo de alerta, avisando-a que o autor, ou melhor, os autores daquela tempestade culinária tinham que ser descobertos e punidos, mas depois de uma nova e rápida olhadela pelo lugar não encontrou ninguém, e de imediato deu início às buscas dos autores daquele crime contra a limpeza doméstica e o direito de descanso de uma pobre mãe.
Não precisou procurar muito, pois os risinhos e as vozes mais esganiçadas entregaram onde os responsáveis pela bagunça estavam, e sentindo a veia da têmpora pulsar a cada novo passo que dava se aproximando dos pestinhas ela já estava com a reprimenda pronta na ponta da língua, calculando a intensidade justa dos gritos que ia dar e vislumbrando na própria mente o tipo de castigo que teriam, até que ao entrar na sala onde estavam abandonou com uma rapidez incalculável todos aqueles pensamentos assim que viu o que os três estavam fazendo.
Sentados no sofá da sala eles faziam uma nova bagunça, mas desta vez com lápis e papel, e parada de onde estava ela viu o que já fora escrito no maior dos cartazes, com letras garrafais não muito caprichadas, mas bastante coloridas, onde podia-se ler, de longe, a frase principal, “Feliz dia das mães. Nós te amamos mamãe!”
O cansaço da semana fora tamanho que apagara de sua mente que naquele domingo era o dia das mães, e a lembrança fez com que pouco a pouco as peças se encaixem em sua mente como um enorme quebra-cabeças. Os pestinhas, ou melhor, naquele caso, os anjinhos tinham causado todo aquele tumulto na cozinha tentando fazer uma pequena homenagem com um café da manhã surpresa, mas o desleixo natural das crianças e a falta de preparo tinham causado a enorme bagunça que tanto a irritara, e a mesma falta de tato dos filhos tinha feito com que fossem cuidar da etapa seguinte, que era a de preparar os cartazes, sem terem concluído a anterior, deixando o fogão ligado com as panquecas que tinham se tornado pequenos pedaços de carvão.
As crianças perceberam sua presença, e sem jeito a olharam por alguns instantes, como se estivessem decidindo o que fazer agora que o fator surpresa fora por água abaixo, mas logo se levantaram, e correndo foram até ela com cartazes e um pacote embrulhado com quase nenhuma habilidade. A abraçaram, a beijaram, lhe encheram de felicitações e declarações que não faziam costumeiramente e em seguida a puxaram para a cozinha, provavelmente para servir o projeto de café da manhã que tinham feito.
Enquanto isso, ainda aturdida ela tentava assimilar tudo, já deixando de lado a raiva, as reprimendas e o castigo que no meio tempo entra a cozinha e a sala tinha calculado com tanta exatidão. Seguia, ou melhor, era puxada pelos filhos sem dizer uma palavra sequer, mas sentindo ume leveza que a fizera esquecer também o cansaço e as queixas do dia a dia. No peito, o calor do amor que conhecera no exato momento em que soubera que estava grávida do primeiro deles crescia mais e mais a cada segundo que passava, e assim ela se deixou ser envolvida por completo por aquele sentimento.
Naquela manhã não tomaram o café improvisado, porque todos concordaram que tudo o que tinham preparado estava uma porcaria, mas qualquer princípio de decepção que pudessem ter foi logo apagado com o beijo e o abraço que ela lhes deu, acompanhados de um muito obrigado dado a cada um deles.
Com o que pôde aproveitar do que sobrara ela mesma fez um café da manhã, seguido de uma coordenada limpeza de toda aquela bagunça que foi feita com a ajuda dos três, e sem qualquer reclamação da parte deles, o que ela logo atribuiu àquela data especial.
Naquele domingo eles almoçaram fora, foram ao cinema, comeram uma pizza à noite e ficaram juntos até que cada um finalmente dormisse, em um horário já adiantado que ela certamente sentiria no dia seguinte. Mas não importava, porque mesmo que fisicamente cansada, emocionalmente ela estava reabastecida, pronta para encarar mais uma semana de rotina pesada, onde novamente se depararia com a falta de ajuda do ex, com a falta de reconhecimento de todo o seu esforço por parte dos filhos, e com o excesso de trabalho que tudo aquilo lhe dava.
Sim, no dia seguinte acordaria cedo, prepararia tudo enquanto os três filhos continuariam dormindo, para depois acordarem sob protestos, sem lhe dar a ajuda que ela precisava e merecia. Sim, teria que dar broncas, separar brigas, limpar a sujeira que faziam, fiscalizar os estudos, as amizades, as companhias, os horários, e tudo isso tendo de lidar com a própria vida e com o trabalho.
Sim, seria mãe, dona de casa, empregada e uma bem sucedida dona do próprio negócio, sem tempo para mais nada que não fossem os filhos e o trabalho, deixando de lado seus anseios de ser humano, seus sonhos e até mesmo a necessidade do ombro e do carinho de um novo amor, que não tinha nem tempo e nem a oportunidade de conhecer.
Sim, teria de encarar tudo isso, e só pensar naquelas coisas já seria o bastante para uma pessoa comum se estressar, se irritar e até mesmo maldizer todo aquele trabalho. Mas ela não era uma pessoa comum. Ela era mãe, e sendo assim era movida por algo que só essa classe privilegiada de seres humanos possui, que é esse amor imensurável e incondicional, que não espera contraprestação ou agradecimento, e que não se importa se tamanho laço e a importância dele são reconhecidos apenas uma vez por ano, e não todos os dias, como deveria ser se fosse aplicada alguma justiça ao caso.
Deitada em sua cama, depois de dar um beijo em cada um dos filhos e coloca-los para dormir com um “boa noite” e “eu te amo”, ela sentiu o cansaço se esvaindo, e agradeceu por todo aquele trabalho, pelo qual recebia o melhor pagamento do mundo... o amor que ela sentia pelos filhos, e o amor que sabia que, mesmo sem o reconhecimento que lhe seria justo, cada um deles sentia por ela.
Um feliz dia das mães, ou, para ser mais justo... felizes dias das mães.
Porque todos os dias a elas pertencem.
O Som do Silêncio
Era um dia típico de verão, onde nada parecia contrastar com o que se esperava da atmosfera da tão apregoada e tão aguardada estação. Desde o sol fulgurante que brilhava com intensidade no alto, até o céu azul onde sequer uma nuvem pairava, passando pelo mar cristalino de águas frescas e pela areia branca que parecia cintilar sob a luz que a acalorava.
Na areia crianças brincavam, jovens e velhos passeavam, e outros jogavam ou simplesmente paravam para contemplar a beleza que os rodeava enquanto a fresca brisa marinha acariciava suas peles aquecidas pela luz do sol. No mar que brilhava cristalino o cenário não era diverso, e as pessoas ali se refrescavam do calor forte, mas ao mesmo tempo acolhedor.
Para onde se olhasse via-se a mesma coisa, sol, mar, sorrisos e alegria em um quadro que facilmente qualquer um gostaria de ter na parede. Mas mesmo a mais extensa regra possui sua exceção, e naquele caso não era diferente, porque ali, em meio a toda aquela diversidade de sorrisos e contentamento um coração se mantinha pesado e enevoado enquanto os olhos de seu dono fitavam com desânimo a paisagem que se descortinava, vendo-a ao mesmo tempo em que não a enxergava, sem sentir qualquer admiração ou prazer no que fazia.
Sentado na areia clara com os braços envolvendo os joelhos, Thomas encarava o mar brilhante sem perceber naquele gesto a beleza que se estendia à sua frente. Via com os olhos do corpo mas o que de fato estava fazendo era enxergar com os olhos da mente, e aquela fazia com que visse apenas a tristeza que pesava em seu jovem coração aflito.
Alheias ao seu estado emocional e ao semblante que escurecia seu rosto como uma nuvem carregada que passa diante do sol em um dia de céu azul, as pessoas viviam suas próprias vidas, aproveitando cada momento sem sequer perceber a tristeza que acometia aquele rapaz. Mas havia uma que reparara no que estava acontecendo. Uma, que não era qualquer pessoa, ao menos para aquele jovem.
Parado a uma certa distância, um homem mais avançado em anos do que aquele rapaz o observava com atenção, enxergando com seus olhos apurados pela idade os traços e a postura de alguém que conhecia tão bem, que vira nascer e crescer, como o faz um pai que está presente na vida de seu filho desde o primeiro abrir de olhos.
Dali, de onde estava, nada oculto para o rapaz, mas ao mesmo tempo invisível para ele, que só enxergava o problema que o acometia, o homem divisava o jovem, concluindo que para alguém daquela idade estar daquele jeito em um dia tão bonito, só podia haver uma explicação. Problema.
Ciente daquilo ele aproximou-se com a cautela com que se deve aproximar de um jovem que passa por algo que tolhe sua calma, imitando um intruso que tenta chegar perto de um animal selvagem e arredio sem querer assustá-lo. Caminhou com os pés descalços pela areia quente e abrasadora, mas ao mesmo tempo convidativa e acolhedora, sentindo com prazer enquanto os finos grãos abraçavam seus dedos e a brisa do mar acariciava sua face, trazendo-lhe o sentimento nostálgico que o oceano costumeiramente traz com a tão familiar canção da arrebentação das ondas.
Davi agachou-se, sentindo enquanto o fazia o peso do alto de seus cinquenta anos, e não disse palavra ao sentar-se ao lado do filho. Mas mesmo ali não foi percebido pelo rapaz, que absorto em seus próprios pensamentos fitava com o olhar perdido algum ponto distante no mar esmeraldino.
Quem os visse ali juntos não poderia negar a semelhança, quebrada apenas pelas finas linhas de expressão acumuladas na pele já não tão viçosa do pai, onde os sulcos pareciam aprofundar-se a cada ano que passava, e a cor antes escura dos cabelos agora dava lugar à claridade opaca que o tempo ali colorira.
- Sua mãe está feito uma louca procurando por você. – Disse ele, enquanto apertava levemente o ombro do filho com uma mão acolhedora.
Thomas nada disse, e nem pareceu espantar-se com a aproximação repentina do pai. Apenas o fitou com uma expressão estampada pela resiliência e balançou a cabeça em aceitação, como se dissesse que compreendia, e que logo iria para casa. E do jeito que estava permaneceu, fitando o mar à frente com o mesmo olhar desolado.
- Algum problema? – Perguntou Davi, depois do silêncio que se instalou entre os dois, quebrado apenas pelo som das ondas lentamente trazidas pela maré.
O rapaz olhou para o chão, pegou um pouco da areia fina e branca que estava sob eles, apertou-a levemente e logo em seguida deixou que se esvaísse de sua mão, observando enquanto era levada pelo vento. E depois de um tempo balançou negativamente a cabeça, sem dizer qualquer palavra.
- Sabe o que sua avó me dizia? – Falou Davi, quando percebeu que o filho não diria nada, e da mesma forma que o rapaz fizera, pegou um punhado de areia branca, mas não deixou que caísse, e a segurou com força, mostrando a Thomas o que fazia. – Que os aborrecimentos são como a areia que estou segurando aqui. Enquanto eu não decidir soltá-la, ela permanecerá na minha mão, me impedindo de buscar ou de segurar outras coisas, e para onde eu for vou leva-la junto. Mas se eu decidir deixa-la ir...
E nesse momento abriu lentamente a mão, olhando atento enquanto os grãos pouco a pouco se esvaíam e eram levados pela brisa do mar, sumindo em meio à imensidão que os rodeava.
- Se deixa-la ir, minha mão ficará livre para segurar outras coisas... como a mão de outra pessoa. – E estendeu a sua para segurar a do filho, dando-lhe um aperto forte e seguro, como que para mostrar-lhe que poderia contar com ele no que quer que fosse. – Mas cabe apenas a quem segura o punhado decidir soltá-lo, então, quando quiser livrar-se do seu, pode contar com seu velho para ouvir. Mas enquanto isso vou avisar sua mãe que você está aqui, para ela não ficar preocupada.
Davi fez um ligeiro esforço para começar a erguer-se, mas mal tinha apoiado a mão no chão com um pouco mais de força, sentiu o toque do filho em seu braço, e ao fitar o rapaz viu em seus olhos um pedido para que não fosse. O pai entendeu o gesto e acomodou-se novamente, cruzando também os braços por sobre os joelhos e fitando o mar que se estendia, à espera do momento em que o garoto se sentiria à vontade para começar a falar.
- Pai... – Disse Thomas, depois de alguns minutos calado. – Você... já teve algum problema que achou que não fosse ter solução? Do tipo, daquele que não vai embora nunca?
- Todos temos problemas... – Começou a dizer, depois de pensar um pouco. – Mas nenhum deles fica para sempre. A não ser que você queira que fique, como o punhado de areia em sua mão.
- Não faz sentido. – Retorquiu o rapaz, enquanto desenhava com o dedo no chão macio.
- Que parte?
- Essa coisa de que os problemas só ficam se você quiser. E aquelas pessoas que sofrem um acidente e ficam com alguma limitação permanente? O problema delas não vai embora... pelo menos enquanto não encontrarem uma cura.
- Isso depende de como elas vão enxergar a situação. Conheço pessoas nas mesmas condições que viram o quadro com outros olhos, e decidiram seguir a vida de outra forma, não vendo a situação que passavam como um problema, mas adequando-se e seguindo em frente. Claro que se você perguntar a elas o que gostariam tenho quase certeza que diriam que desejariam voltar a ser como eram antes. Mas mesmo assim elas seguem, decidindo soltar o que carregam na mão. Não deve ser nada fácil. Por isso chamo pessoas assim de água.
- Água? Por que?
- Porque a água é dura, mas ao mesmo tempo é flexível. Quando encontra um obstáculo pode rugir como um leão e derrubá-lo facilmente, porque é forte como poucos elementos, ou pode simplesmente contorna-lo com a delicadeza de uma pluma, porque é suave. Pessoas assim são como a água. Duras e corajosas... mas ao mesmo tempo suaves e resilientes. Mas por que está me perguntando isso? Está com algum problema?
O rapaz voltou a se calar e desviou o olhar que até então estivera preso ao do pai enquanto ele explicava aquelas coisas, e Davi lembrou que cada um tinha seu próprio tempo para revelar o que sentia, e que só devia fazê-lo quando se sentisse à vontade o suficiente.
- Ei. – Disse ele, segurando novamente no ombro do filho. – Sabe que pode contar comigo para ajuda-lo no que estiver ao meu alcance. Mas se não quiser falar nada, seu velho pai aqui vai apoiá-lo da mesma forma. Só quero que saiba que um peso fica muito mais leve ao ser compartilhado.
O garoto ficou calado por mais alguns momentos, nitidamente decidindo se falaria o que tanto o incomodava. Era um jovem fechado, como boa parte dos adolescentes no alto dos seus quinze anos é, e não se sentia à vontade o bastante para expor o que sentia para o pai, mesmo sabendo que tinha nele um apoio firme, com o qual podia contar e confiar.
- Promete que não vai contar para ninguém? – Perguntou, depois de pensar por alguns segundos, ainda indeciso se deveria ou não falar.
- Prometo e me comprometo. Assunto de “bros” fica entre os “bros”. – Disse ele, fazendo questão de soar como um garotão caricato enquanto erguia uma mão para que o filho batesse nela.
- Corta essa, pai. – Retorquiu Thomas. – Ninguém mais fala assim.
- Eu e meus “bros” falamos, meu chapa, pode crer. – E sorriu, mudando em seguida a expressão ao ver o rosto sério do filho. – Tudo bem, tudo bem. Sem brincadeira. Pode contar com seu velho aqui. O que quer que me diga vai se tornar segredo de estado, e ninguém vai saber.
- Nem a mamãe?
- E você acha que conto tudo para sua mãe? Um homem precisa ter seus segredos.
- Sei. – Falou Thomas, com a voz cheia de ironia. – Até parece...
- Pode até não acreditar que tenho meus segredos. – Disse, piscando um olho para ele. – Mas pode confiar que esse eu vou guardar com cuidado, afinal, ele não é meu, mas seu. Então fique tranquilo que o manterei oculto. Combinado? – E desta vez ergueu a mão normalmente, para apertar a do filho.
- Combinado. – Falou Thomas, aceitando o gesto e apertando a mão do pai.
- Agora me diga. Qual o problema que está impedindo você de aproveitar um dia como esse?
Novo silêncio, e nova compreensão que fez com que Davi esperasse com paciência pelo tempo que o filho levaria para contar-lhe algo. Não era fácil ganhar a confiança de alguém naquela idade, onde para os jovens que se consideravam eternos incompreendidos, boa parte das pessoas parecia enquadrar-se na definição de alguém ultrapassado que não compreenderia o que se passava dentro de suas mentes e de seus corações.
- É que... bem... – Começou Thomas, ainda reticente. - Sabe a Beatriz? A Bia?
- Aquela garota que você vem namorando há um tempo? – Enquanto ia falando as palavras Davi foi subitamente tomado por uma apreensão crescente, e sentiu um vazio na barriga e um aperto no peito quando a desconfiança de que aquele olhar preocupado no rosto do filho e a menção à namorada poderiam vir acompanhados da palavra “gravidez”, e por isso tomou o cuidado necessário ao perguntar qual era o problema com ela, temendo que a resposta fosse a que já desconfiava.
- Ela... bem... você sabe que eu gosto dela, não é? Muito.
- Sim, eu sei. – Falou, quando na verdade o que queria dizer era “conte logo de uma vez o que está acontecendo garoto!” – Mas qual o problema com ela?
- Ela terminou comigo ontem. – Falou, com a voz decrescendo a cada palavra que dizia, como se aquilo fosse motivo de vergonha.
O pai teve que se conter para não soltar o ar pela boca acusando o quão aliviado estava em saber que aquela era a razão do problema, e em seguida teve de conter também uma risada por lembrar o quão os adolescentes poderiam ser dramáticos, fazendo de um simples término de namoro algo semelhante a uma hecatombe nuclear.
Mas logo a vontade de rir passou, pois viu que mesmo sendo um exagero da idade, não podendo exatamente ser definido como um problema, especialmente depois dos exemplos que tinham usado naquela conversa, ainda assim aquela situação estava fazendo o filho sofrer, e nenhum pai se sentia bem quando a pessoa que mais amava no mundo estava sofrendo, fosse ou não uma bobagem a razão daquele sofrimento.
- Entendi. – Limitou-se a dizer. – Vocês brigaram? Tiveram algum desentendimento? Às vezes, quando discutimos as coisas tomam um rumo como esse, mas logo depois que a poeira baixa e se tem uma conversa mais calma, tudo se resolve.
- Não teve briga, discussão nem nada. Ela simplesmente disse que precisava conversar e depois falou que não estava dando certo, e que não gostava mais de mim, e mais um monte de coisas. Então completou terminando o namoro e saiu numa boa, sem parecer ter qualquer arrependimento. Ela basicamente me deu um pé e se mandou. – Thomas ia ficando mais irritado conforme as palavras saíam emboladas de sua boca. - Não tem essa de se resolver, pai. Acabou! Talvez já esteja até com outro, enquanto eu tô aqui, por baixo!
“Deu um pé, se mandou, saiu numa boa, e eu aqui por baixo”, Davi repetiu em pensamento cada uma das palavras do filho, quebrando a cabeça para imaginar algo para dizer que não soasse piegas ou ultrapassado. Às vezes achava que alguém deveria começar a dar aulas do idioma falado pelos adolescentes. “Adolescentês para leigos”, pensou, ciente do quão ridículo era o título, mas achando que provavelmente venderia feito água para pais como ele, que por vezes achavam estar falando com alguém de um país distante, em uma língua completamente estranha.
Lembrou então de algo que a esposa falara para ele uma vez, depois de uma das crises de histeria adolescente que a filha caçula tivera, explicando como resolvera o problema da menina. “Se quer que alguém entenda o que está falando, então fale com sentimento. Fale o que está sentindo, porque no fim das contas, jovens ou velhos, todos somos humanos, e essa linguagem é universal”.
Pensou então que a esposa se sairia muito melhor nessa situação do que ele, e chegou a cogitar chama-la para dar um jeito naquilo, mas logo abandonou a ideia ao perceber que fazendo aquilo estaria de uma forma ou de outra abandonando o próprio filho. “Pode contar comigo”, dissera ao garoto, e que tipo de homem seria se fugisse ao deparar-se com o primeiro obstáculo depois de ter feito uma promessa como aquela?
- Quer um conselho? – Disse finalmente. – Acho que deveria sair com seus amigos. Aproveitar, jogar um pouco, dar uma volta, curtir a praia, aquela pracinha à noite onde todo mundo se reúne. Em horas como essas se distrair faz um bem enorme. – Logo que acabou orgulhou-se do que tinha falado, como se nas palavras estivesse contida uma sabedoria milenar, não precisando de muito tempo para perceber que aquilo passava longe de ser a verdade.
- Não ia adiantar em nada. – Falou Thomas, emburrado.
- Por que não? – Perguntou, Parecendo espantado com a resposta.
- Porque para todo canto que eu olho lembro dela. Ou esqueceu que até ontem namorávamos? Se for na pracinha vou lembrar dela porque íamos pra lá toda noite. Se for jogar vou lembrar também, porque ela ia assistir com as amigas os nossos jogos. Até aqui, sentado nessa droga de areia eu não consigo esquecer dela, porque era justamente pra cá que vínhamos pra sossegar um pouco. Não vai rolar, pai. Não vai rolar de jeito nenhum.
E virou a cabeça para o lado, como se estivesse envergonhado de ter exposto tanto do que guardava para o pai, embora Davi desconfiasse que o filho também quisesse esconder uma lágrima teimosa que vinha para acompanhar a voz embargada que o garoto não conseguira disfarçar quando dissera as últimas palavras.
“Não vai rolar”, pensou ele. “Definitivamente a mãe se sairia bem melhor nesse tipo de conversa.” Perturbado e frustrado pelo fracasso da ideia e pela iminência de não conseguir ajudar o filho, tentou pensar em inúmeros conselhos, ou mesmo discursos motivacionais, todos com base em clichês, fossem dos mais grosseiros, como “a fila anda, e logo a sua vai correr”, até os mais suaves e conhecidos, a exemplo do puro e simples, “vai passar”.
Mas em sua cabeça todos soaram como provavelmente soariam caso ele resolvesse usá-los, artificiais, secos e inverídicos. “O que dizer, então?”, pensou, e como se houvesse outra pessoa ali, dentro de sua mente, uma conhecida voz ressoou, com o mesmo tom de irritação que soava quando ele fazia alguma bobagem. “Fale com o coração, homem! Com o coração”!
Naquele momento chegou a olhar para o lado para ver se havia alguém ali, tão nítida foi a forma como a voz de sua esposa soou em sua mente, mas nada viu além das inúmeras pessoas que aproveitavam aquele belo e agradável dia de verão. “Está barulhento demais aqui dentro”, disse a si mesmo, referindo-se ao interior de sua cabeça, enquanto ainda tentava pensar em algo que valesse a pena ser dito, ou como diria a esposa, “algo que prestasse”.
“Mas como pensar em algo com essa algazarra dentro da minha cabeça?”, pegou-se discutindo consigo mesmo. “Se ao menos houvesse um pouco de silêncio...” Parou então repentinamente, sabendo que pensara em algo, mas sem encontrar ainda o que era. Algo que poderia ser dito e fazer algum sentido para ajudar o filho com a dor que estava sentindo.
“Silêncio... silêncio... tudo o que preciso é de um pouco de... Silêncio!” Por pouco não estalou os dedos e disse um sonoro “isso!” ao encontrar exatamente o que procurava. Se era para falar com o coração, teria que ser uma coisa que valesse a pena ser dita, e se havia um estoque quase interminável desse tipo de coisa, era o das lições que tinha acumulado ao longo da vida, todas proferidas pelo pai, que já não estava mais ali para enriquecer o livro das coisas que lhe tinham sido ensinadas.
E uma delas, dita havia muito tempo quando ele ainda era um jovem cheio de inseguranças, incertezas e excessos, fora sobre algo que algumas pessoas amam, outras não gostam tanto, e mais uma enorme quantidade pede diariamente para poder se concentrar em algo. O silêncio.
- Já ouviu o som do silêncio? – Perguntou de repente, atraindo de volta a atenção de Thomas, que voltara a prender-se na decepção amorosa que tivera.
- Hein?! – Bradou o garoto, virando-se e olhando para o pai com olhos vermelhos e com uma expressão de quem não fazia a mínima ideia sobre o que ele estava falando. Davi se divertiu com o que viu, e perguntou-se por um instante se fizera a mesma cara quando ouvira aquela pergunta pela primeira vez.
- O som do silêncio. Já parou para ouvi-lo?
- Você bebeu pai? Não lembra que a mãe pediu para não beber hoje, porque ia ter que dirigir para ir com ela pra fazer compras à tarde?
- Eu não bebi moleque. Só fiz uma pergunta. Agora vamos, responda.
- E como eu vou saber se já ouvi o som do silêncio? E o silêncio por acaso tem som?
- Claro que tem. O silêncio não tem apenas um, mas diversos sons. Talvez até mesmo uma infinidade deles.
- Tá viajando, pai? Só pode. Já viu a definição de silêncio?
- Me ensine, sabichão.
- Silêncio é a ausência de som, pai. Então como pode haver som no silêncio? Não tem lógica!
- Assim como as coisas mais misteriosas e maravilhosas desse mundo. E quanto à lógica, bem, desista de segui-la sem questionamentos, porque a própria ilógica é uma espécie de lógica invertida, então, no fim das contas, as coisas só fazem sentido quando compreendemos que elas não fazem sentido algum.
Davi sorriu ao ver que Thomas não entendera nada do que ele dissera. “Melhor assim”, pensou. “É não entendendo que ele vai acabar compreendendo alguma coisa”. De seu lado, o garoto o encarava com um misto de confusão e indignação pelo nó na cabeça que acabara de levar.
- E quanto à sua resposta, que você ainda não deu, vou tomar como negativa, já que se tivesse ouvido o som de que falei teria compreendido as coisas que eu disse.
- Tá bom, tá bom. – Thomas deu-se por vencido, querendo dar um fim naquele assunto que não fazia sentido algum. – Nunca ouvi esse tal barulho que você tá falando.
- Então garanto que tem perdido uma ótima oportunidade de ouvir um som maravilhoso.
- É? E como eu faço pra escutar isso?
- A primeira coisa que tem que fazer é falar com ele.
- Ele quem?
- O silêncio, ora!
Thomas revirou os olhos e bufou irritado, gesto que era quase uma unanimidade em jovens daquela idade quando algo tirava deles a já pouca paciência que possuíam.
- Vou tentar explicar de uma forma que você consiga entender. – Disse Davi, tentando puxar pela memória as exatas palavras do pai, e quando não conseguiu fazê-lo, acabou decidindo usar as suas próprias. – Quando algo me incomoda, me tira a paciência, a percepção e me impede de ver as coisas direito, eu paro, tento relaxar e fico em silêncio.
- Sei, vai meditar. Já ouvi falar sobre isso. Quer então que eu medite?
- Paciência garoto, deixe seu pai terminar. Em parte você está certo, não deixa de ser uma forma de meditação, mas é também uma conversa.
- Com o silêncio... – Interrompeu Thomas.
- Isso. Agora é sua vez de ficar em silêncio e ouvir com atenção, portanto, fique calado e atento. Continuando... quando estou com um problema e não consigo achar uma solução, eu paro, penso, e pergunto o que devo fazer. Esse é o primeiro passo.
- E depois?
- Depois eu escuto. Eu abro os ouvidos e a mente para que o silêncio fale. E se eu ficar bem quieto, bem atento... seu eu ficar bem calmo e prestar bastante atenção, eu acabo escutando o que ele tem a dizer. Em todas as suas vozes.
- Vozes? Ouvir vozes? Essa conversa tá estranha, pai.
- Logo, logo você vai ver que estranho é não ouvi-las. Essas vozes, filho, são as que falam quando silenciamos. Quando calamos nossa boca e nossos pensamentos e paramos para escutar. Elas fazem parte do som do silêncio.
- E que vozes são essas? – Thomas estava começando a ficar curioso, e por alguns momentos acabou esquecendo a decepção amorosa que vinha turbando sua paz.
- São muitas. A voz da mente, a voz do coração, a voz da razão e também a da emoção. Além de inúmeras outras. Todas elas fazem parte do som do silêncio, como um grande coral que faz parte de uma orquestra.
- Continuo sem entender.
- Não se preocupe. Vou lhe dar alguns exemplos, e logo, logo você vai entender. Algum tempo atrás, quando você e sua irmã ainda eram crianças, eu passei por um período bem difícil com sua mãe. Brigávamos direto, por qualquer bobagem, e havia dias em que não suportávamos olhar um para a cara do outro. Um dia, eu cheguei irritado na casa do meu pai, querendo chutar tudo o que havia pela frente. Foi quando seu avô me puxou para um canto e começou a conversar comigo. Em dado momento ele começou a falar de toda essa história de “som do silêncio”, e também acabei sem entender nada... ao menos no começo.
- E o que foi que ele disse?
- Ele disse que eu deveria fechar os olhos, respirar e ouvir. Esquecer a gritaria, a raiva, as discussões e o desejo de pôr um fim na relação, pelo menos por alguns segundos. Eu disse que era impossível, mas seu avô era um homem paciente, e insistiu comigo. Passei uma semana inteira longe da sua mãe, na casa dele, e todos os dias conversávamos um pouco. O velho não era muito de abraços e beijos, mas adorava um bom papo. E foi nesses dias em que estávamos juntos que resolvi fazer o que ele me dizia. Pensei comigo, “ora bolas, mal não vai fazer”.
“Comecei então a passar um tempo sozinho, só pensando, com calma, quietude, e fui limpando minha mente, pensando em tudo para ao mesmo tempo não pensar em nada. Então comecei a ouvir o som do silêncio, e ele veio na forma da voz da razão. Fui revendo então o meu comportamento, esquecendo um pouco das críticas que tinha contra sua mãe para focar mais em mim, e acabei vendo que em vários momentos eu era um verdadeiro idiota com ela. Um tremendo de um babaca. Saía para beber com meus amigos, passava horas a fio fora, e sempre que ela se queixava eu me irritava e dizia que merecia um tempo só para mim, porque já trabalhava demais. Não que seja errado que cada pessoa tenha um tempo assim, mas deve haver sabedoria no seu aproveitamento, e tudo o que eu queria era encher a cara sem hora para acabar.
Passei o restante daqueles dias fazendo isso. Ponderando sobre minhas atitudes, e quando acabei me dando conta das coisas erradas que fazia, a raiva que estava no meu coração foi sumindo, até desaparecer... como areia ao vento. Foi quando voltei para nossa casa e conversei com ela. A primeira conversa realmente séria que tivemos em nosso casamento. Então começamos a aparar as arestas, resolvemos tudo, e o resto é história.”
Thomas ficou em silêncio por alguns momentos, observado constantemente pelo pai, que conhecia bastante o filho para saber que ele estava começando a ficar interessado pelo assunto.
- Entendeu? – Perguntou, quando achou que o rapaz estava há muito tempo calado.
- Entendi. Tem mais algum exemplo?
- Se tenho? É só o que tenho. Mas não vou citar todos, porque senão só sairíamos daqui amanhã. Mas vou citar o que para mim, particularmente, é o mais importante, e envolve o seu avô, que foi exatamente quem me deu essa lição. Isso mostra apenas que sempre há algo a ser aprendido, mesmo por aqueles que já sabem tanto.
- Não tenho muitas lembranças do vovô. Era muito novo quando ele morreu.
- Seu avô era um cara muito inteligente. Meio sisudo, na dele, mas adorava uma boa conversa, e mesmo não sendo daquelas pessoas mais carinhosas, sempre estava lá quando precisávamos. E foi justamente com relação a uma dessas características que ele acabou ouvindo o som do silêncio.
Thomas empertigou-se levemente, mostrando que se interessara pelo assunto. Tudo o que se referia ao avô, de quem tanto falavam e de quem também tinha tão poucas lembranças o interessava. Davi então continuou:
- Lembra que eu falei que o silêncio tem várias vozes?
- Lembro.
- Bem, como eu já disse, uma delas é a da razão, que foi a que eu ouvi na história que contei agora há pouco. Mas há também a voz da emoção, e essa pode ser um pouco mais difícil de ser ouvida, principalmente por aquelas pessoas que na vida aprenderam a construir barreiras ao redor de si mesmas. São aquelas fortalezas ambulantes.
- Como assim?
- Fortalezas ambulantes, filho. São aquelas pessoas que sofreram muito por terem sentido algo, se decepcionando com aquilo, ou que foram criadas por alguém que já tinha sofrido a mesma coisa e queria ensiná-las a aguentar o tranco caso isso acontecesse. Acabam construindo pela vida uma muralha ao redor de si mesmas, impedindo que alguém se aproxime além do limite permitido. Para essas pessoas, escutar a voz da emoção é mais complicado. E seu avô era uma delas.
- E o que aconteceu?
- Você aconteceu. – Disse Davi, sorrindo para o filho.
- Como assim?
- Quando você nasceu algo em seu avô mudou. Não sei se pela idade, ou por naturalmente se derreter um pouco mais com os netos, como quase todos os avós fazem, mas ele começou a mudar, até que um dia o velho me pegou tão de surpresa, aqui, nessa mesma praia, que fiquei completamente sem reação.
Davi se calou por alguns segundos, divisando o horizonte com o olhar, como se estivesse se recordando de algo, e Thomas percebeu, por uma leve alteração na expressão de seu pai, que ele ficara emocionado com alguma lembrança que agora voltava para visita-lo. Davi deu um leve pigarro e engoliu com algum esforço o que o filho pensou ser um resquício daquela emoção que o assaltara tão de repente, e continuou a falar:
- Um vez, quando estávamos aqui, papeando, como ele tanto gostava, em um dia de sol como esse... um dia tão bonito quanto esse, ele mudou de assunto de repente, e me pediu desculpas.
- Pelo que?
- Essa foi a surpresa. Ele me pediu desculpas por ter sido um pai tão fechado. Por nunca ter demonstrado com gestos o quanto me amava, e no fim, um tanto sem jeito... na verdade, um bocado sem jeito, ele me perguntou se podia me abraçar, e quando fez isso... bem... ele desatou a chorar.
Agora era a vez de Davi virar a cabeça para o outro lado, escondendo do filho uma lágrima teimosa que queria conhecer o mundo, e imitando o gesto do pai, Thomas levou a mão ao ombro dele, e deu um leve aperto, para mostrar que também estava ali para apoia-lo.
- Meses depois... – Continuou Davi, depois de disfarçadamente enxugar um dos olhos. – Eu perguntei o que o levara a fazer aquilo. Digo... o que lhe dera coragem para fazer algo que para ele parecia ser tão difícil. E sabe o que ele disse?
- Que ouviu o som do silêncio, na forma de uma voz... – Respondeu Thomas, olhando sério para o pai.
- Sim. A voz da emoção. Está ficando cada vez mais esperto, garoto. Seu avô ia adorar bater um papo com você.
E assanhou levemente os cabelos do filho, que deu um sorriso curto, mas que ainda assim era um sorriso. O primeiro daquele dia.
- O que estou querendo dizer, caso não tenha percebido ainda, é que quando paramos, respiramos, e nos deixamos envolver pelo silêncio da calma, acabamos abrindo nossa mente para ouvir o que o excesso de sons, preocupações e informações nos impede de escutar, e é nesse momento, quando estamos receptivos, como uma antena de rádio, que nos chegam as respostas, mesmo que só depois de algum tempo.
- O som do silêncio. – Repetiu Thomas. – Que é tudo aquilo que não escutamos com os ouvidos, mas sim com o coração.
- Exatamente. E nele estão as respostas para o que buscamos. Basta com calma escutar. Basta ouvir atentamente, que a verdade ele vai revelar. Esse é o som do silêncio. E é isso que eu quero que você escute. Sei que está sofrendo nesse momento, porque gosta dessa garota. E por mais que eu tenha vontade de fazer isso, não serei eu quem vai lhe dizer que tudo vai ficar bem. Mas sim o som que você precisa ouvir, e quando escutá-lo, vai saber que estou falando a verdade. Mas antes precisa estar disposto a fazer isso.
Thomas não disse nada, mas apenas balançou a cabeça em concordância, o que foi o bastante para Davi. Não esperava que o filho entendesse em plenitude o que acabara de explicar, como também não entendera no começo, quando o pai lhe dissera o mesmo. “Certas ideias são como sementes. Plantamos, e depois disso, mesmo cuidando delas todos os dias, só nos resta esperar que germinem em seu próprio tempo”.
- Agora vamos. – Disse, enquanto se levantava desajeitado, espalhando areia para todo lado. – É hora do almoço, e você sabe como sua mãe fica quando nos atrasamos. Ela já estava uma fera quando me pediu para procurar por você, e agora deve estar fumaçando.
Davi deu a mão a Thomas, que a segurou com força enquanto era levantado. Um pai puxando o filho, um pai levantando o filho, um gesto silencioso, mas cheio de amor. Ambos perceberam naquele momento o significado daquele gesto, e se sentiram bem, porque sabiam que podiam contar um com o outro. Talvez naquele instante Thomas tenha percebido, ainda como um breve sussurro no limiar de sua mente, o som do silêncio pela primeira vez.
- Posso perguntar uma coisa? – Disse o rapaz, enquanto caminhava com o pai para casa.
- Claro que pode.
- É um nome bonito, esse... o som do silêncio. Até poético. Cheio de profundidade. Foi o vovô quem inventou?
- Não sei. Mas eu conheço um nome bem mais bonito para ele. E esse foi sua avó quem me disse.
- E qual é?
Davi parou e olhou para o filho, com um sorriso no rosto, e disse:
- A Voz de DEUS, meu filho. A Voz de DEUS.
O Natal de Sapiêncio
O silêncio dentro do recinto contrastava de forma colossal com o barulho que ecoava do lado de fora, ressoando pela praça onde fervilhava o movimento de crianças gritando e correndo felizes, jovens e velhos tagarelando sobre seus próprios assuntos e o chilrear de pássaros que conversavam e cantarolavam em seu próprio idioma.
Lá dentro o único som que passeava pelo ar era o da respiração leve e compassada do casal que escorado ao balcão mantinha os olhos atentos no diagrama enigmático que estava diante deles, cada um colocando a mente para funcionar dentro de seus próprios limites e possibilidades para descobrir as respostas para as perguntas transcritas no papel.
- Vulcão italiano em atividade situado na Sicília, com quatro letras. – Disse a voz mais grossa e levemente rouca do homem que concentrado franzia o cenho marcado pelas décadas em que inúmeras vezes repetira aquele movimento.
- Etna. – Respondeu a mulher ao seu lado, com a voz doce e encantadora que assemelhava-se ao canto dos passarinhos lá fora. Por maior que fosse o mau humor quase constante do homem, sempre que ouvia aquela voz sentia um misto de paz e satisfação envolvendo seu peito.
- Não sabia que esse vulcão ficava na Itália. – Disse ele, enquanto marcava com a caneta os quadrinhos das cruzadas da revista que era seu passatempo favorito.
- Pois agora fique sabendo. – Disse a mulher, dando um leve beijo na bochecha avermelhada do marido, onde uma barba por fazer já começava a crescer. Depois do beijo ele a fitou, imaginando que se havia algo mais doce do que aquela voz era exatamente o gesto que acabara de receber. Ela então voltou-se para o diagrama e continuou. – Termo usado para designar um samurai sem senhor, com cinco letras.
- Ronin. – Disse ele, mal dando tempo das últimas palavras dela serem ditas.
- Acabei de aprender algo novo. – Brincou, dando uma piscadela e o cutucando levemente com o cotovelo.
- Essa é a graça desse passatempo. Se toda forma de aprender fosse assim tão divertida...
- Mas a própria aprendizagem é a melhor diversão que existe. E é uma diversão sem fim, se admitirmos o que Sócrates dizia. “Só sei que nada sei.” – Retorquiu ela.
- Não me venha com essas filosofias que não consigo entender. Já me basta aquele doido lá fora com aquelas sandices que fica falando por aí e tirando o juízo de quem está por perto. – Resmungou.
- Ora, deixe desse seu mau humor e vamos continuar. – Devolveu a mulher, em tom de pilhéria. – Vamos lá. Humm... Famoso cantor norte-americano cujos apelidos eram “a voz” e “olhos azuis”. Ei, essa eu sei! Frank Sinatra!
- Na mosca. – Falou, depois de conferir as letras de cada casa e anotá-las. – Não fazia nem ideia desse apelido... olhos azuis.
- E que olhos azuis. – Disse ela, suspirando enquanto olhava para o alto.
O marido a encarou com uma expressão de nítido desaforo, que logo desapareceu quando ganhou outro beijo e um sorriso dela.
- Mas claro que prefiro seus olhos castanhos, meu velho. – Emendou a mulher, depois de apertar as bochechas por barbear do esposo acabrunhado.
- Acho bom. Acho bom. – Retorquiu ele, fingindo o mau humor. Então seus olhos, que eram de um castanho embotado que em nada se aproximava da beleza dos de Sinatra, fixaram-se na entrada do boteco e ali permaneceram por alguns segundos, até que voltou a falar. – Mendigo maluco, magricela e inconveniente, com oito letras. – Disse, externando um tom de desagrado na voz.
- Essa não sei. – Disse Dona Toninha, enquanto checava o papel para procurar o quadrinho onde estava escrita a pergunta.
- Muito fácil. – Falou Seu João, ainda com os olhos na entrada do boteco. – Sapiêncio!
- Salve, salve, Seu João! Salve, salve, Dona Toninha! – A voz estridente ressoou pelo boteco, chegando aos ouvidos de ambos e gerando reações completamente diferentes. – Como estão vossas senhorias neste dia maravilhoso? E viram como está maravilhoso o dia lá fora?
- Aqui dentro também estava... – Disse Seu João, nitidamente insatisfeito. – Até agora.
- Mas qual? – Começou a falar o mendigo, enquanto Dona Toninha sufocava risadinhas ao lado do marido. – Por que estava? O que aconteceu? O que houve para que sua excelência, com todo o bom humor que lhe é costumeiro tenha ficado tão acabrunhado?
Dona Toninha não soube dizer se foi por causa do jeito maluco e espalhafatoso com que Sapiêncio disse aquelas palavras, que geralmente fazia as pessoas rirem independente do que fosse falado, ou se fora a mentirosa e exagerada menção ao bom humor costumeiro do marido que causaram a crise de risos que teve, e que deixou ainda mais sem jeito o já emburrado seu João.
- Eu digo o que foi! – Esbravejou Seu João. – Foi um doido que apareceu aqui para me torrar a paciência!
- Onde? Quando? Para onde ele foi? - Perguntou o mendigo, virando-se para os lados com seu jeito desengonçado e fuçando todo o lugar com os olhos esbugalhados que pareciam querer saltar das órbitas. – Gosto de pessoas loucas Seu João, são pouco convencionais, e por isso mesmo divertidas.
- Se gosta de doido então vá para o hospício. Quem sabe não acabe tomando jeito? Afinal, como dizem por aí, remédio pra doido é outro na porta!
- Eu já estive lá, Seu João. Mas fui convidado a sair. Disseram que eu incomodava muito as pessoas, e que se ficasse mais tempo todo mundo, até quem não era maluco, iria acabar ficando doido.
Seu João não soube se Sapiêncio estava fazendo pilhéria ou se estava de fato dizendo a verdade, não achando nenhum absurdo que a segunda opção fosse a mais viável, já que o homem parecia ter um talento natural para perturbar o senso de quem quer que fosse e consumir a paciência de quem tivesse a pouca sorte de ter um dedinho de prosa com ele. Mas na dúvida entre as duas opções, preferiu escolher a terceira, que era encerrar de uma vez aquela conversa sem nexo.
- O que é que você quer aqui seu estrupício? – Rosnou seu João, enquanto de cenho franzido checava o relógio de pulso. - Ainda não está na hora do almoço. Quando estiver perto eu mando lhe chamar na praça.
- Não vim almoçar ainda, meu caro senhor. Mas confesso que não recusaria um quitute de amostra de Dona Toninha, se já houver algum pronto.
- A única amostra que vai ter aqui é a da marca do meu tamanco no seu traseiro, ainda mais definida do que ficou da última vez. – Resmungou Seu João. – Na hora do almoço você come!
- Mas Seu João... – Retorquiu o mendigo. – Ainda está chateado porque eu falei pros velhinhos da praça que o senhor tinha uma boneca chamada Antonieta?
Aquela foi a gota d’água, e se Dona Toninha tinha segurado a gargalhada desenfreada até então, ali não já conseguiu mais contê-la, e deixou a torrente de risadas sair, o que só serviu para mudar a tonalidade da pele de Seu João, que do vermelho que naturalmente ostentava quando estava incomodado com algo foi para um roxo cor de beterraba que não indicava outra coisa que não fosse que estivesse para explodir de raiva.
- Sapiêncio, seu mentecapto! Diga logo o que quer e saia antes que eu lhe reboque pra fora na base dos pontapés! – Bradou Seu João, enquanto Dona Toninha corria para o banheiro temendo não conseguir mais segurar o filete de xixi que queria sair por causa das gargalhadas descontroladas que estava dando.
De seu lado, Sapiêncio parou e pensou, lembrando bem do quão difícil fora sentar no galho da árvore onde fazia suas macaquices e filosofava sobre a vida com o traseiro ainda dolorido por causa do chute certeiro que levara de Seu João por causa da boneca Antonieta, e mesmo que dissessem que era doido, sabia-se também que não era burro, e preferiu não arriscar levar um novo petardo do dono de boteco que estava da cor de uma beterraba do outro lado do balcão.
- Tudo bem, tudo bem, Seu João. Não se irrite tanto. Vou dizer o que vim fazer, mas só peço que se acalme um pouco.
- Fale logo o que quer, homem!
- Tudo bem. É o seguinte. Como já disse antes, não vim para almoçar, embora insista que aceite um quitute, caso um quitute tenha. Mas a razão da minha visita inesperada é para saber se está precisando de ajuda na ceia coletiva de natal que vai fazer hoje, porque se estiver, esse humilde cidadão se prontifica a ajudar.
Seu João se desarmou um pouco com a oferta de ajuda, e como era mais dado a ficar de humores alterados, quando alguém fazia algo como aquilo, especialmente quando era o mendigo que costumeiramente o tirava do sério, acabava ficando desajeitado e sem reposta certa para dar, o que o fez calar-se por alguns segundos e mexer na revista com as palavras cruzadas algumas vezes, sem que houvesse necessidade alguma de fazê-lo.
- Não... Não! Não precisa ajudar. – Falou finalmente, agora já sem a tonalidade de beterraba e nem o timbre de agressividade na voz, embora não se pudesse dizer que falando calmamente ele necessariamente parecesse estar inteiramente calmo. – Já está tudo pronto. Toninha cuidou de tudo.
- Ah, mas que maravilha. Dona Toninha é um anjo de fazer tudo isso para o pessoal da vizinhança. É uma gentileza dela. – Disse o mendigo, olhando para o alto com seus olhos esbugalhados enquanto colava ao peito as mãos juntas, como se estivesse pedindo ou agradecendo por algo. – E o senhor também, seu João. Fazer uma ceia todo natal para ajudar os necessitados é uma ação muito nobre, especialmente quando não se ganha nada em troca.
Que Sapiêncio tinha o dom de tirar os outros do sério era algo de conhecimento geral, isso não se podia negar, especialmente quando um desses outros era Seu João, que vez por outra penava com as doidices do mendigo. Mas o maluco da praça também sabia deixar o velho dono do boteco sem jeito, especialmente quando surgia com um elogio como aquele, deixando o homem geralmente embrutecido completamente desnorteado com as loas sinceras que o outro lhe tecia.
- Sapiêncio! – Disse ele, finalmente. – Não tem nada de melhor para fazer na praça? Como você mesmo disse, seu biruta, o dia está lindo, então trate de chispar daqui para aproveitar essa beleza toda lá fora. Vamos! Vamos! É pra hoje. – Falou, enquanto fazia um gesto com a mão mandando o mendigo sair dali.
Fosse outra pessoa, teria ficado extremamente ofendida com a atitude aparentemente mal educada, pensando que o velho dono do boteco era um homem rude grosseiro e mau agradecido. Mas Sapiêncio conhecia Seu João, e apesar dos gritos e das botinadas no traseiro que já tinha levado dele sabia que maior do que tudo aquilo, inclusive o mau humor, era o coração bondoso e altruísta daquele senhor que vivia resmungando, e sabia também do quão sem jeito o velho João ficava quando alguém lhe dirigia algo com o que não estava acostumado, como um elogio igual ao que lhe fizera.
- Farei isso agora, excelência. O dia está lindo, e como diria a tia da prima da mãe da irmã da minha bisavó, desperdiçar um dia como esse é uma verdadeira afronta para com DEUS, que o pintou tão bonito para nós. Agora me vou, mas antes que fique com saudades, seu João, peço que não se consuma, porque mais tarde estarei aqui para fazer companhia ao meu mais que querido amigo, que claro, é o senhor.
E assim saiu fazendo meneios com as mãos e a cabeça, com os movimentos exagerados de um bufão enquanto era observado pelos olhos embotados de Seu João, que não se consumia, mas na verdade já começava a sentir o alívio de se ver momentaneamente livre das maluquices daquela figura desengonçada e magricela que o perturbava diariamente, sentindo-se grato não apenas pelo elogio que recebera, mas também porque o mendigo fora bastante econômico nas doidices durante aquela visita.
Já na rua Sapiêncio fez o que costumeiramente fazia, saiu caminhando com seu andar desajeitado, cumprimentando todos que por ele passavam, fossem os que já conhecesse da convivência diária, fossem pessoas que ele nunca tinha visto na vida, e enquanto o fazia, dirigindo-se para a praça que era seu lugar preferido em toda a redondeza, observava a tudo e a todos que estavam ao seu redor.
Mas diversamente do que geralmente acontecia, não foram as pássaros cantando, os velhos conversando, os casais passeando ou namorando, a graciosa decoração e natal e nem as crianças com toda a sua algazarra natural em meio às brincadeiras que acabaram chamando a atenção dele. Na verdade foi algo que para alguém que não fosse um bom observador passaria despercebido, mas para aqueles que gostavam de ir além do mero vislumbre para olhar com mais intensidade para as pessoas que passavam pelo seu caminho, destoava inteiramente da alegria e do colorido que geralmente permeavam aquela praça.
A um canto, sentado em uma das muretas que serviam de decoração e de descanso, ele viu um garotinho cabisbaixo e desolado, olhando tristemente para o vazio com uma expressão de tristeza enquanto o resto do mundo parecia envolto em alegria. Sapiêncio reconheceu aquele menino. Era um dos garotinhos que gostava de frequentar a praça e que sempre estava correndo e jogando bola com seus amiguinhos.
Olhou então para o campinho de areia que ficava em uma das extremidades do lugar e viu os mesmos meninos que sempre andavam com aquele garoto fazendo exatamente o que sempre faziam ali, sorrindo e se divertindo. Mas o rapazinho sentado e cabisbaixo destoava completamente daquela imagem costumeira que o mendigo se habituara a ver, o que atraiu por completo sua atenção.
“Se no lugar de um sorriso, no rosto de uma criança, há a tristeza e o desalento de um coração sem esperança, é porque ali de fato existe, algo errado que persiste, e que precisa de uma mudança”. As palavras vieram à mente de Sapiêncio, onde sonhos e realidades dividiam o mesmo espaço continuamente, surgindo como a lembrança de algo que alguém lhe dissera em algum dia perdido de seu passado... ou que ele achava que tinha escutado. Na loucura de sua cabeça ele não saberia dizer.
Mas não importava a fonte, o que importava era que aquelas palavras estavam corretas, e se no rosto de uma criança o sorriso era substituído pela tristeza era porque indubitavelmente havia algo de errado acontecendo. Algo que precisava ser mudado, mesmo que o agente da mudança fosse o louco mendigo que confundindo a cabeça dos outros acabava fazendo com que algumas pessoas encontrassem a razão.
Sapiêncio caminhou lentamente, tentando manter alguma discrição ao fazê-lo, o que no seu caso era algo difícil, já que seu andar cheio de salamaleques era chamativo demais para que passasse despercebido por quem quer que fosse. Mas o garoto sequer o notou. Parecia estar absorto em algum tipo de pensamento que dominava sua atenção, e que também tolhia sua alegria.
Passou pelo menino como quem não queria nada, fitando-o de rabo de olho com aqueles faróis esbugalhados que para alguns era motivo de graça, e em outros chegavam a causar até apreensão, tamanha era a estranheza de seus olhos. Fitou o garoto, que parecia alheio a tudo e a todos, com o mesmo semblante triste, como se sua mente e seus pensamentos estivessem muito longe dali.
O mendigo passou, olhou, analisou, voltou pelo mesmo caminho, agora já com menos discrição, vendo que sequer era percebido, e ao passar pela terceira vez sem ser notado resolveu parar, e com os braços cruzados, coçando o queixo magro e proeminente ficou pensando em como chamar a atenção daquele jovem sem invadir o pequeno espaço de introspeção que ele construíra.
Depois de muito pensar em pouco tempo, decidiu que tentaria atrair a atenção do menino fazendo uma das coisas que sabia fazer melhor, ser desengonçado. Caminhou então novamente com a toda a falta de graça que lhe era característica em seus trejeitos exagerados e não encontrou dificuldade em encenar um tombo um tanto que bufônico, caindo alguns metros à frente do garoto e girando com a agilidade de um malabarista para logo em seguida ficar de pé, olhando desconfiado para os lados e fazendo de conta que aquilo não acontecera com ele, e que ninguém vira a queda constrangedora.
Normalmente o truque dava certo, principalmente com crianças, que começavam a rir de imediato, mas tudo o que conseguiu foi que o garoto olhasse para ele brevemente e logo em seguida desviasse os olhos tristes novamente para o chão, não esboçando qualquer outra reação além daquela.
“Plateia difícil”, pensou Sapiêncio, concluindo que o menino deveria estar de fato com algum problema para não dar sequer um sorriso ao ver uma figura estranha como aquela levar um tombo daquela espécie e sair-se da situação com a cara de pau com a qual o mendigo saíra. Parou então, virou de costas para o jovem, como se fosse a única pessoa naquela praça, e começou a matutar em sua mente engenhosa uma nova abordagem que fosse convincente o bastante e discreta o suficiente para não deixar o outro desconfiado.
Mas depois de pensar bastante sem conseguir chegar a lugar algum, Sapiêncio lembrou-se de um dos inúmeros ditos que guardava em sua mente bagunçada, e que ensinava que quando as coisas se complicavam, muitas vezes era na simplicidade que se encontrava a melhor saída, concluindo que não adiantaria fazer mil macaquices para chamar a atenção de alguém que parecia ter todo o foco lançado no problema que estava enfrentando.
Resolveu então arriscar e simplesmente sentar ao lado do garoto para puxar conversa. Talvez fosse até disso que o menino estivesse precisando. De alguém com quem se abrir.
- Boas tardes, jovenzinho. – Disse ele, depois de sentar-se na mureta e cruzar as pernas de sariema, que de tão finas pareciam que iriam quebrar ao primeiro esforço. – Dia lindo, não acha? A cara de um dia de natal.
O garoto olhou para Sapiêncio, e depois voltou a fitar o chão, balançando levemente a cabeça para mostrar que concordava com o que ele tinha falado. Fosse alguém desconhecido talvez tivesse ficado desconfiado com a estranha figura que chegara de repente puxando conversa, mas o menino já conhecia a fama do mendigo, que sempre estivera por ali fazendo suas papagaiadas enquanto ele estava jogando bola com os amigos.
- Sim, sim. – Continuou Sapiêncio, como se não tivesse percebido a resposta lacônica. – Um lindo dia. E para jogar bola também. Sempre gostei de bater uma bolinha sabe? Mas confesso que não sou muito bom nisso. Eu e a redondinha não somos lá muito entrosados, o que pode parecer estranho, por causa do meu porte atlético. – E estufou o peito magro para enfatizar a fantasiosa forma física que acabara de destacar. Novamente o garoto não esboçou qualquer reação, e continuou ali, calado.
- Você parece ter jeito para a coisa. Gosta de bater uma bolinha? – Insistiu Sapiêncio.
O garoto novamente apenas limitou-se a balançar a cabeça afirmativamente. Não parecia querer falar, mas também não indicava que as investidas estivessem incomodando de alguma forma, o que fez Sapiêncio achar que poderia conseguir desenvolver a conversa. Só precisava achar o caminho certo para isso.
- Mas ora! Se gosta de bater uma bolinha, por que então não está jogando com seus amiguinhos ali na frente? – E apontou com o queixo proeminente o lugar onde ficava o campinho onde a meninada estava jogando. – Aqueles não são seus amiguinhos? Acho que já o vi jogando com eles, não é...? – E nesse instante pareceu lembrar-se de algo importante. - Mas que coisa! Ainda não sei seu nome. Que falta de educação a minha! Se minha mãe visse isso teria me dado uns bons puxões de orelha. Sapiêncio é minha graça, pelo menos aqui na praça. – E ergueu a mão com dedos magricelas para cumprimentar o menino.
- Eu sei quem é você. – Disse timidamente o garoto, dando um aperto de mão frágil em Sapiêncio. – Meu nome é Matheus. – E tão logo se apresentou, voltou para seu isolamento.
- Muito prazer, pequeno Matheus. Já o conhecia de vista, mas não de nome, o que parecia ser uma injustiça, já que você me conhecia de nome e de vista. Mas agora nos conhecemos de ambos os lados, indo e voltando, o que é um bom começo, mesmo que já estejamos no meio de uma conversa, que espero que demore a chegar ao fim. Mas que coisa, aqui estou eu tagarelando de novo. Peço desculpas amiguinho, é que minha boca parece ter vontade própria. Às vezes acho que ela deveria ter um CPF e um endereço próprios, e confesso que não seria incômodo algum se vez ou outra dormíssemos em casas separadas, especialmente na hora de dormir, porque dizem que até dormindo eu costumo falar, e como não posso me mandar calar a boca, tenho que esperar que alguém o faça. Por acaso você quer que eu cale a boca?
Matheus deu um breve sorriso, que Sapiêncio considerou ser mais fruto da boa educação do garoto do que propriamente por ter achado alguma graça em alguma daquelas palavras que disparara na torrente que acabara de soltar.
- Não precisa. – Disse o menino, ainda monossilábico.
“Me parece que alguém realmente está precisando conversar, nem que seja apenas para ouvir algumas palavras”, pensou Sapiêncio, vendo uma vez mais que não estava incomodando o garoto, o que era uma raridade quando se tratava dos adultos que ele vez por outra abordava com aquela insistência.
- Que bom, mas prometo que mesmo assim vou controlar minha língua... ou fazer o possível para isso, porque a danadinha é bem insistente às vezes. Mas voltando ao assunto... Me diga Matheus, se gosta tanto de uma bolinha, por que não está ali jogando com seus amiguinhos? A partida para estar bem animada.
- Não tô com muita vontade. – Foi tudo o que disse.
- Não está com vontade de jogar? Hummm... está sentindo algo? Dor de cabeça? Dor no pé? Dor de barriga? Ou todas essas juntas?
- Não estou doente. Só não tô com vontade.
- Humm... entendi. Um garotinho que gosta de jogar futebol e não quer jogar futebol, mas que não está doente. Um mistério a ser desvendado. – Disse Sapiêncio, adotando sua costumeira posição de pensador, com os dedos magrelos passeando pelo queixo erguido enquanto sustentava um olhar que tentava emular o de algum detetive renomado, em uma atuação digna de um ator bonachão. – Brigou com algum amiguinho?
- Não. Não briguei com nenhum deles.
- Então a trama se complica. – Continuou o mendigo, insistindo na pose que beirava o ridículo e dando à voz um timbre de mistério. Ficou naquela posição por alguns minutos, e se fosse um personagem em quadrinhos provavelmente o desenhista o pintaria com uma fumacinha saindo de sua cabeça. O menino percebeu aquilo, e começou a achar que Sapiêncio não falaria mais nada, e que só sairia daquela situação quando descobrisse o que estava se passando, e em parte por querer dar um fim ao esforço do mendigo, e em parte porque realmente queria se abrir com alguém, acabou decidindo falar.
- Não é nada disso que você disse. – Começou ele. – É que... é que...
- Sou todo ouvidos, amiguinho. – Encorajou ele. – Fale o que quiser, e da forma que quiser. Não se sinta pressionado só porque lhe perguntei. – Matheus balançou a cabeça em afirmativa, e se sentiu encorajado a continuar.
- É... é que meu pai perdeu o emprego já tem uns meses, e até agora não conseguiu encontrar outro. E talvez tenhamos que mudar de nossa casa aqui perto para a casa da minha vó, que fica em outra cidade. Meu pai não se dá muito bem com a vovó, que é sogra dele, e disse que vai continuar aqui procurando trabalho. Mas até lá vamos ficar longe, e vou ter que sair da minha escola e me separar dos meus amigos. Não quero que isso aconteça, mas o pior de tudo vai ser ficar afastado do papai.
- E não tem nem como mudar para outra casinha aqui mesmo na cidade? – Perguntou Sapiêncio, vendo que o garoto virava o rosto para o outro lado, tentando esconder uma lágrima que se formava.
- Não. Ele disse que não. Hoje eu perguntei se esse ano eu ia ganhar presente, e ele respondeu que não temos dinheiro nem para comprar comida, e nem ceia de natal vamos ter. Ele... ele ficou tão envergonhado depois disso que saiu e não voltou mais. Eu não queria ter feito isso...
- Ter feito o que?
- Ter perguntado sobre o presente. – E nesse momento as lágrimas que tentava conter desceram dos olhos do menino. – Meu pai sem emprego, minha mãe sofrendo, e eu perguntando sobre presentes. Se eu fosse ele, teria me colocado de castigo pra aprender a pensar mais nos outros e nos problemas. Eu... eu sou um grande de uma egoísta, isso sim...
O garoto fungou e virou uma vez mais a cabeça, tentando conter as lágrimas que insistiam em sair, e Sapiêncio enxergou nas costas arqueadas do menino e no esforço que ele fazia para segurar o choro o quanto aquilo o abalava, e pensou que alguém que sofresse tanto por de alguma forma ter feito alguém que amava sofrer podia ser tudo, menos egoísta.
- Você não é egoísta, menino Matheus. – Disse ele, dando leves tapinhas no ombro encolhido do garoto. – E nem é uma pessoa má por ter perguntado o que perguntou.
- Como assim não sou? – Perguntou, virando-se e mostrando os olhos já vermelhos de tão marejados. – Se eu pensasse nos problemas de casa eu não teria perguntado aquilo.
- Nenhuma criança deveria pensar nos problemas de casa, meu jovem, e se você não fez isso não foi por egoísmo ou maldade, mas pura e simplesmente porque não lhe cabia ter esse tipo de apreensão. E o fato de agora se preocupar só mostra que não pensa só em você, mas também nos seus pais, entendeu?
Matheus apenas voltou a olhar para o chão, deixando uma lágrima pingar discretamente e cair no solo, para desaparecer com a mesma rapidez com que tinha surgido. O mendigo ficou olhando aquilo, e depois de pensar um pouco perguntou:
- O que o seu pai faz? Ele trabalha com o que?
Não soube porque perguntou aquilo, se para continuar a conversa ou por algum outro motivo, mas apenas sentiu a necessidade de fazê-lo. Matheus falou o que o pai fazia, assim como o lugar em que ele tinha trabalhado por anos, e do qual só saíra porque o dono morrera e os filhos tinham resolvido não continuar com o negócio, fechando o estabelecimento e deixando-o desempregado.
Ao ouvir as explicações do garoto uma luz pareceu acender-se na mente de Sapiêncio, que começou a trabalhar com a rapidez de costume, ligando pontos enquanto abria e fechava portas na miscelânea que era o mundo que havia dentro daquela cabeça que parecia viver a mil por hora.
- Sabe que dia é amanhã, Matheus? – Perguntou ele depois de todo aquele tempo em silêncio.
- Como assim que dia é amanhã? – Quis saber o garoto, com a voz ainda embargada enquanto enxugava uma lágrima persistente. – Amanhã é natal.
- E quem faz aniversário no natal?
O menino pensou e pensou, tentando lembrar de algum amigo, conhecido ou familiar que fizesse aniversário naquela data, e quando não conseguiu recordar de ninguém não viu outra saída que não fosse chutar uma resposta.
- Você?
- Não, garoto, não eu. – Apressou-se a dizer. – Embora possa dizer que me sentiria honrado se nascesse no mesmo dia em que a pessoa de que falo nasceu.
- E quem é essa pessoa?
- Como quem é essa pessoa? Essa pessoa é um sujeito muito legal, com o qual converso todos os dias. O nome dele é Jesus.
- O Jesus da Bíblia? – Perguntou Matheus, com uma inocência que fez Sapiêncio rir.
- Sim, sim, esse mesmo. E quer saber de uma coisa? Nenhuma criança merece ficar triste no aniversário do menino Jesus. Por isso, quero que vá para casa e avise ao seu pai que mais tarde vai haver uma ceia organizada por Seu João e Dona Toninha. Eles fazem isso todos os anos para ajudar as pessoas que não podem fazer uma, e garanto, meu jovem, que a comida é uma maravilha de tão gostosa. Além disso, sempre tem alguns presentinhos para as crianças que aparecem.
Sapiêncio não deixou de perceber que os olhos do menino brilharam, mas logo em seguida voltaram a fitar o chão, como se um pensamento repentino tivesse mostrado que a alegria que surgira não poderia durar ali por muito tempo.
- O que foi? Não ficou animado?
- É que acho que meu pai não vai aceitar. Eu já ouvi falar na ceia do Seu João e da Dona Toninha, e sei que eles fazem isso pra ajudar as pessoas mais necessitadas. Não sei se o papai vai querer vir. Ele pode ficar com vergonha.
O mendigo parou e pensou um pouco, imaginando como o orgulho bobo e desmedido é uma coisa praticamente inútil e com tanto potencial para atrapalhar a vida das pessoas. Mas mesmo que o pai daquele garotinho fosse orgulhoso Sapiêncio não deixaria que aquilo atrapalhasse o que já estava planejando naquela mente imprevisível.
Por um instante pensou em dizer ao garoto para que insistisse com o pai, mas logo concluiu que aquilo seria inútil, e então pôs-se a matutar naquela curiosa posição de pensador que costumeiramente adotava, cruzando as pernas de sariema e coçando o queixo pontudo, até que pareceu encontrar a solução. Voltou-se então para Matheus, com os olhos arregalados de quem acabara de achar a resposta para um enigma e disse apressado:
- Menino, não saia daqui. Prometo que volto rapidinho com a solução para o caso.
E antes que Matheus pudesse dizer uma só palavra o mendigo saiu correndo de forma desengonçada em direção ao boteco de Seu João, e ali na calçada encontrou Dona Toninha, com quem começou a conferenciar agitadamente. Conforme Sapiêncio falava e falava, a mulher parecia ficar cada vez mais entusiasmada, e sorrindo pareceu aquiescer com algo que o pensador maluco acabara de dizer.
Então com a mesma rapidez com que deixara o garoto, ele voltou para reencontrá-lo no mesmo lugar, enquanto deixava para trás Dona Toninha com um sorriso no rosto, que logo foi substituído pelo susto que teve quando Seu João chegou de repente vindo de dentro do boteco.
- O que aquele maluco queria agora? Perguntar de novo sobre a ceia? – Quis saber ele.
- Não, não. Só veio com aquelas doidices de costume dele. Você sabe como ele é. – Desconversou, sabendo em seu íntimo que o que o mendigo fora lhe falar podia ser tudo, menos uma doidice, e torcendo para que o plano que lhe fora narrado desse certo.
- Garoto... – Disse Sapiêncio, ofegando por causa da corrida. – Eis exatamente o que você vai ter que fazer, e para isso vou precisar que conte para sua mãe tim tim por tim tim o que vou lhe dizer agora. E pode dizer que é tudo com o aval de Dona Toninha, que ela conhece muito bem.
O mendigo contou tudo ao garoto, e pouco a pouco a expressão triste de Matheus deu lugar a um olhar que mesclava animação e esperança. O menino sorriu e aquiesceu, dizendo que ia falar tudo aquilo para a mãe, e que torceria para que ela aceitasse e colaborasse com o plano. Logo em seguida correu, deixando para trás um Sapiêncio cheio de animação, esfregando as mãos e olhando para o céu, pedindo ao aniversariante do dia seguinte que tudo o que saíra de sua cabeça maluca desse certo.
A noite chegou, e com ela as luzes de natal que enfeitavam a praça surgiram fulgurantes, iluminando e colorindo toda a extensão que ficava pelas redondezas. Nos postes espalhados pelas calçadas figuras que representavam aquela época podiam ser vistas em todas as cores e matizes. A um lugar uma árvore de natal, em outro uma vela ou um saco de presentes, em outra parte uma estrela de Belém, e por todos os cantos lâmpadas de todos os tamanhos e matizes se espalhavam.
Mas era na praça que estava todo o encantamento daquela época. De dia a decoração já chamava atenção com os presépios que celebravam o nascimento de Jesus, e com as pequenas casinhas que representavam a vila do polo norte onde o bom velhinho vivia no imaginário das crianças. Mas à noite a magia parecia se multiplicar com as inúmeras lâmpadas douradas, prateadas e coloridas que tinham sido cuidadosamente colocadas por sobre a folhagem dos paus-ferros, ipês e jacarandás que se espalhavam pelo local.
No coreto cuidadosamente decorado, crianças vestidas de anjinho cantavam para uma plateia encantada um “Noite Feliz” ensaiado e executado com um esmero que enchia de graça os olhos e ouvidos dos que acompanhavam aquele belo espetáculo de cores e sons enquanto em outras partes amigos e colegas que frequentavam a praça se reencontravam para se confraternizar e rever os velhos conhecidos que tinham voltado para passar o natal com os parentes.
Entre eles estava Sapiêncio, que naquela noite não parecia um mendigo, mas usava trajes que apesar de não terem sido feitos sob medida ainda assim embelezavam à sua maneira aquela curiosa figura. Usava calças de linho que paravam um pouco abaixo dos magros tornozelos, algo que resolvera a seu modo dobrando as barras até que parassem de arrastar pelo chão.
Usava também uma camisa de botão clara abotoada até o colarinho, e igualmente fechada nos pulsos, o que o deixava, como diziam os mais velhos dali, bastante empacotado, apesar do calor que estava fazendo. Mas era embaixo que estava o acessório mais curioso. Todos os dias na praça podia-se ver Sapiêncio ora descalço, ora usando seus velhos chinelos, mas algo que era quase único de se vislumbrar era o mendigo pensador usando sapatos em seus pés chatos, o que tornava ainda mais estranho e engraçado o já desengonçado andar da figura, que desacostumado àquele tipo de calçado andava de uma forma quase alegórica em sua tentativa de não cair a cada passo que dava.
Só que não eram os sapatos quem prendiam a atenção de Sapiêncio, e sim a ausência do jovenzinho com quem conversara durante uma boa parte daquela tarde. Assim que fora vestido com as roupas doadas por Seu João e Dona Toninha, fora confabular com essa última para repassar o plano que o dono do Boteco sequer desconfiava que existia, e logo em seguida voltara à praça, para ficar à espera do pequeno Matheus, esperando que ele e a mãe tivessem convencido o pai a ir até lá naquela noite.
No boteco de Seu João a agitação já começava a se formar, e as pessoas que geralmente iam comer da ceia por ele preparada já faziam fila diante da enorme mesa que fora montada na calçada, sob as luzes coloridas da marquise do estabelecimento. Todos já conheciam o temperamento do proprietário, que não mudava muito durante as festas de fim de ano, e por isso respeitavam de forma ordeira a fila e a organização, aguardando pacientemente que o velho dono desse a autorização para que começassem a se servir.
Sapiêncio olhou então para o boteco, e de cara viu Dona Toninha olhando de volta e apontando o dedo para o relógio, como se quisesse dizer que o banquete já estava para começar e que não podia mais segurar o ímpeto do marido, que começava a se queixar da estranha demora da esposa em deixar o pessoal se servir, afinal, ainda tinham a própria ceia em família para aproveitar no andar de cima do estabelecimento, onde moravam e onde os filhos que vinham de fora estavam para chegar.
O mendigo deu de ombros em resposta, para mostrar que sabia tanto quanto ela do paradeiro do menino e dos pais, e quando já estava começando a achar que o plano tinha ido por água abaixo, vislumbrou à distância o garotinho, cuidadosamente arrumado, andando de mãos dadas com a mãe a um lado, enquanto era seguido por um senhor que Sapiêncio jurava ser o pai dele, pois carregava no semblante a expressão de quem se sentia envergonhado de estar ali.
“O orgulho e suas bobagens”, pensou Sapiêncio, e presumiu que fora a esposa, em combinação prévia com o filho que tinham convencido o homem a ir até lá, fato em que realmente estava certo. Seus olhos então se encontraram com os de Matheus, e o mendigo piscou para o garoto que discretamente correspondeu ao gesto, começando a puxar a mão da mãe em direção ao boteco de Seu João.
Sapiêncio então olhou para Dona Toninha, erguendo o dedo polegar em sinal positivo, e a mulher imediatamente se virou e foi até o marido que conversava com alguém da fila para anunciar que chegara hora. Seu João então esbravejou sua autorização para que as pessoas começassem a se servir, e um a um os ocupantes da fila foram fazendo seus pratos.
Na fila podia-se ver desde mendigos até as pessoas que não residiam na rua, mas que pareciam estar na mesma situação dos pais do pequeno Matheus. Algumas carregavam aquele mesmo semblante no rosto, como se fosse alguma vergonha passar por necessidade e ser ajudado, já outras sorriam e agradeciam satisfeitas e felizes a Seu João e a Dona Toninha, arrancando do velho resmungão um sorriso raro e até mesmo um marejar de olhos que alguns poderiam garantir que era uma lágrima se formando, especialmente porque naqueles momentos o dono do botequim se virava para disfarçar a emoção que deixava escapar.
Sapiêncio, que podia ser doido, mas não era bobo de perder um belo prato, especialmente um que fora preparado pelas mãos mágicas de Dona Toninha, também se serviu, seguindo na fila logo atrás de Matheus e de sua família, e reparando que quando passou por Seu João o pai do menino fez uma mesura e deu um sincero e emocionado obrigado, o que deixou o mendigo feliz e tocado.
A noite se estendeu, as pessoas que estavam na praça começaram a entrar nas casas para dar início aos preparativos para a ceia que se aproximava, e as outras, que tinham montado suas mesas no local ali permaneceram festejando, cantando e confraternizando. No boteco de Seu João as pessoas terminaram de se servir, e a comida acabou, restando apenas os pratos e a enorme mesa que ainda tinha que ser desfeita e arrumada.
Seu João suspirou. Estava cansado de ter organizado tudo, e por mais que a satisfação em anualmente fazer aquele evento fosse maior, sua disposição e energia diminuíam com a idade, e por um momento olhou um pouco desolado para tudo o que tinha que arrumar e o tempo que levaria para fazer aquilo.
- Boas noites Seu João. – Disse o mendigo, renovando seus cumprimentos em uma sequência de salamaleques e esperando os resmungos do dono do Boteco. Mas Seu João estava tão cansado que nem energia para reclamar com o mendigo teve.
- Boa noite Sapiêncio. – Respondeu com a voz cansada, enquanto aos poucos começava a recolher as coisas.
- Parece que está precisando de uma ajudinha aí. – Continuou Sapiêncio.
- E estamos mesmo. – Confirmou Dona Toninha, aproveitando o ensejo da aproximação do mendigo. – Eu e João já não somos mais moços, e a cada ano que passa estamos precisando mais e mais de ajuda. Meu velho aqui está até querendo contratar alguém para ajuda-lo a servir as mesas e o pessoal aqui no boteco, agora que as vendas aumentaram com o fechamento do bar que tinha no outro quarteirão.
- É mesmo? – Perguntou Sapiêncio, com a cara mais lavada que conseguiu fazer, porque o mendigo já ouvira dias antes aquela mesma afirmação da boca de Dona Toninha, sendo exatamente aquele o motivo pelo qual fora falar com ela depois que conversara com o pequeno Matheus.
- É. – Confirmou Seu João, com a voz cansada e resiliente. – O que eu não daria por um pouco de ajuda agora, e também aqui no boteco. Não estou ficando mais novo, Sapiêncio, e não vou reclamar do aumento do movimento, mas que isso está me cansando cada vez mais, ah, isso está sim.
Foi nesse momento que o mendigo olhou para Matheus, que estava sentado com os pais na mesma mureta em que estivera à tarde, todos admirando a decoração de natal enquanto faziam a merecida digestão. Sapiêncio fez um joinha para o menino, que imediatamente cutucou a mãe, que em sequência cochichou algo no ouvido do marido.
O homem então ergueu-se e timidamente caminhou até o boteco, meio sem jeito com as mãos enfiadas nos bolsos. Estava alheio, assim como Seu João, a toda a combinação feita entre sua esposa, dona Toninha, o menino, e o mendigo, da cabeça de quem saíra todo aquele planejamento.
- Boa noite. – Disse o homem, quase num sussurro, olhando ainda sem jeito para Seu João e Dona Toninha. – Estou passando para agradecer uma vez mais pela ceia. Vocês... bem... – E nesse momento ficou com a voz ligeiramente embargada, fazendo um esforço para terminar o que tinha a dizer. – Vocês não sabem o quanto me ajudaram hoje.
Seu João, que apesar de ser bruto na maior parte do tempo, tinha também um coração de manteiga, mais uma vez naquela noite fez uma breve careta para tentar barrar o caminho de uma lágrima teimosa que queria escapar, e limitou-se a fazer um aceno com a cabeça e despejar para fora um entrecortado “não precisa agradecer”.
Sapiêncio então achou que estava na hora de sair com sua fala ensaiada, para fingir que conhecia o homem de algum lugar, até soltar que era do bar que fechara no outro quarteirão, para fazer germinar a ideia que tivera naquela tarde de dar a oportunidade a Seu João de contratar um garçom, e ao pai de Matheus de ser contratado como tal, já que o próprio garoto tinha dito ao mendigo que era aquela a profissão de seu velho quando fora perguntado pelo mendigo naquela mesma tarde.
Mas o estranho pensador não precisou fazê-lo, já que o próprio homem, ao ver a bagunça na mesa e tudo o que ainda havia para ser feito ofereceu ele mesmo ajuda a Seu João para fazer o serviço.
- Não precisa. – Disse o velho, com uma polidez ensaiada.
- Tem certeza? Posso ajuda-lo. Trabalhei como garçom por muito tempo, e sei bem como arrumar essas coisas rapidinho. Além disso, acho que o senhor ainda tem uma ceia com sua família, e se fizer isso sozinho vai acabar se atrasando.
Os olhos de Seu João brilharam ao ouvir aquilo, mas não por causa de alguma lágrima que estivesse se formando, e sim pela informação que acabara de receber. De seu lado, Dona Toninha dirigiu um olhar disfarçado para Sapiêncio, como se quisesse dizer que a coisa estava saindo melhor que o planejado. O mendigo calado estava e calado ficou, apenas observando o desenrolar da conversa.
- Então você é garçom. – Disse Seu João. – Como é mesmo seu nome?
- Luís, ao seu dispor. – Respondeu o pai de Matheus.
- Disse que trabalhou como garçom. Não trabalha mais?
- Não por opção, mas por falta de emprego. – Respondeu Luís. – O dono do bar onde eu trabalhava infelizmente faleceu há alguns meses, e os filhos preferiram fechar o lugar. Desde então estou desempregado.
- Espere um pouco. Você trabalhava no bar do velho Jorge?
- Sim. E que DEUS o tenha em bom lugar. Era uma pessoa muito boa.
“E era mesmo”, pensou Seu João, lembrando que muitas vezes quis sentir raiva de seu principal concorrente, mas nunca conseguira, já que o homem era de uma gentileza e de uma honestidade que não deixavam espaço para qualquer rancor. Mas lembrou-se também de que ouvira por várias vezes que uma das sensações do bar do homem era o garçom que há anos trabalhava ali, e que era tão cuidadoso e atencioso com os clientes que eles acabavam retornando sempre.
- Tinha outro garçom lá fora você?
- Não. Por anos fomos só eu e o bom e velho Jorge.
Seu João olhou para Dona Toninha, e depois de anos de casados e de convivência, um mero olhar já bastava para falar mais do que um rol inteiro de frases. Aquele olhar queria dizer que estava muito, mas muito interessado, algo que fez inclusive com que esquecesse momentaneamente o cansaço que sentia. A esposa devolveu com outro que queria dizer que estava de pleno acordo, e mesmo nada sendo dito, tudo o que era preciso fora falado.
- Vou aceitar sua ajuda. Enquanto isso, podemos ter um dedinho de prosa. – Disse Seu João, e assim ambos se afastaram e começaram a trabalhar enquanto falavam algo que não era ouvido por Sapiêncio e nem por Dona Toninha, mas do qual eles desconfiavam que sabiam muito bem qual era o teor.
Mais tarde naquela noite Seu João subiu com Dona Toninha para o primeiro andar, onde a família já os esperava. O velho estava feliz porque a ceia fora um sucesso, porque a limpeza fora feita em tempo recorde, e porque agora contava com um garçom para ajuda-lo no boteco, um cuja competência e bom trato já eram velhos conhecidos seus.
Na rua, Luís saía com o coração mais leve e com algumas lágrimas nos olhos, porque finalmente conseguira um emprego novo e não teria que se separar da família. Saiu abraçado com o filho e a esposa, quase flutuando enquanto vivia toda a magia que aquela época tinha a oferecer. Mas depois que tinha andado alguns metros, Matheus pediu para esperar, e sem dizer mais nada correu até Sapiêncio, que sentado a uma mureta observava placidamente as luzes que se espalhavam pela praça.
- Sapiêncio. – Disse o menino chamando a atenção do mendigo.
- Ora, menino Matheus. Como vai? – Perguntou, como se tivesse esquecido tudo o que se passara ali.
Matheus apenas abraçou Sapiêncio, com lágrimas nos olhos e um alívio no coração. E o fez com uma sinceridade e com uma ternura que só as crianças sabiam fazer, tirando do mendigo algo que ele conhecia bem... uma lágrima de alegria.
- Obrigado. – Disse Matheus, olhando para Sapiêncio com os olhos marejados e com um sorriso no rosto. – Obrigado. Eu nunca vou esquecer do que fez.
O mendigo, que alinhado e bem vestido daquele jeito até se passava por uma pessoa normal, deixou sair sem reserva a lágrima vestida de alegria que se formara em seus olhos esbugalhados, e sorrindo só disse uma coisa, que o menino nunca mais esqueceria em sua vida.
- Não agradeça a mim. Agradeça ao aniversariante. – E apontou para cima, para o céu. Já era meia noite, e já era Natal.
O garoto sorriu, deu um novo abraço em Sapiêncio, olhou para cima e agradeceu, não apenas em palavras, mas principalmente no coração, este sim o agradecimento mais sincero. Foi então em direção aos pais, onde a mãe, chorando, olhava para Sapiêncio, também agradecendo. Luís não entendeu o que tinha acabado de se passar, mas conhecia a fama do mendigo, e sabia que era uma pessoa boa, o que lhe bastou para que não fizesse perguntas.
E assim foram todos para casa, deixando para trás o mendigo de coração leve, que voltara a olhar feliz para as luzes de natal.
- Não vai passar o natal com ninguém? – Perguntou um homem que passava pelo local e que vira Sapiêncio parado e sozinho em meio à praça.
O mendigo olhou espantado para o homem que surgira de repente, e em seguida sorriu. Adorava fazer amizades e puxar assunto com pessoas desconhecidas, o que nem sempre era bem visto por todos, e ficava satisfeito quando aparecia alguém que fazia o mesmo.
- Vou sim, meu amigo. Vou passar o natal com o aniversariante. – Respondeu com naturalidade.
- E onde está ele? Esse aniversariante?
- Aqui, ali, em todo lugar. – Falou o mendigo, como se aquilo fosse a coisa mais óbvia do mundo. – Mas principalmente, neste local. – E apontou para o coração.
O homem sorriu, e correu os olhos pela praça e por todas as cores que se espalhavam pelo lugar. Era belo, com seu olhar tranquilo e seu jeito leve. Os cabelos levemente compridos se moviam na brisa noturna, enroscando um ou outro fio na barba rala, mas bem cuidada.
- E você, amigo, vai passar o natal sozinho? – Perguntou Sapiêncio.
- Não. – Respondeu o homem. – Vou passar com a minha família. Hoje é meu aniversário.
- Ora, que beleza. – Falou o mendigo. – Meus parabéns então. E onde mora sua família?
- Aqui. Ali. Em todos os lugares. – Respondeu o homem, olhando para ele e sorrindo, e Sapiêncio sentiu uma estranha paz tomando conta de seu coração. Uma que nunca tinha sentido antes. O estranho então acenou para ele, dando-lhe novamente aquele sorriso acalentador, e sem dizer mais palavra deixou-o com aquela paz singular aquecendo seu peito.
- Espero que goste dos presentes que vai ganhar. – Disse o mendigo, quando o estranho já tinha se distanciado.
- Já ganhei um grande presente hoje. – Respondeu o homem. – A boa ação de um filho, que fez nascer o sorriso de alegria de uma criança. Um feliz natal, meu amigo. Um feliz natal.
E antes que Sapiêncio percebesse o homem sumiu, deixando-o ali na praça, sozinho enquanto pessoa, mas sentindo-se mais acompanhado do que jamais se sentira antes. E sorriu, derramando mais uma lágrima vestida de alegria, imaginando que se contasse a alguém sobre o encontro que acabara de ter seria considerado mais louco do que já era taxado pelas pessoas.
Mas se aquilo era considerado loucura, então ele nunca iria querer ser considerado são, porque aqueles que não veem a verdade acham louco quem na realidade tem razão.
Olhou então para o lugar em que o estranho estivera poucos segundos antes, e depois para o alto, e desejou a Ele um feliz aniversário. Um feliz Natal.
“Em verdade vos digo que, quando o fizestes a um destes meus pequeninos irmãos a mim o fizestes”. Jesus (Mateus, 25:40).
Um feliz e abençoado Natal a todos.
E que DEUS os abençoe.
Virtual
Lá fora os pássaros cantavam à primeira luz que anunciava o início da manhã, enquanto lentamente o céu de um pálido alaranjado pouco a pouco ganhava seu azul natural, conforme o sol avançava por trás do horizonte tocando delicadamente o orvalho que aos poucos pingava das folhas, que ainda se mantinham úmidas com o derradeiro abraço da madrugada fria que agora se esvaía.
Na penumbra do quarto, saindo aos poucos do mundo de fantasia e caos dos sonhos ele abriu os olhos, percebendo na luz cinzenta que começava a clarear o ambiente e no canto dos passarinhos lá fora que a noite tinha terminado e um novo dia batia às portas do mundo. Mas diferente do que muitos fariam, não se espreguiçou, não checou o relógio para ver que horas marcavam e muito menos virou-se para tentar extrair do tempo um pouco mais de descanso pensando enquanto se virava, “só mais cinco minutinhos”.
Seu primeiro movimento antes mesmo de perceber inteiramente que voltara ao mundo dos acordados, como se fosse um autômato com uma programação definida para realizar sempre aquele mesmo movimento, naquela mesma circunstância foi agarrar o celular que estava ao seu lado, tão perto quanto ficaria uma esposa ou namorada, e avidamente, ainda com os olhos embaçados pelo sono recém interrompido, olhar com avidez a tela do aparelho e tudo o que ela podia lhe revelar.
Apertou os olhos tentando focar a imagem enquanto os dedos já trabalhavam rapidamente, como se já soubessem de cor o local onde ficava cada ícone, sem errar o alvo por um milímetro sequer, mesmo com a visão não sendo ainda uma das melhores. Parou o trabalho desenfreado dos dedos apenas para esfregar com uma das mãos os olhos, afastando de vez o sono insistente que o impedia de enxergar na plenitude tudo o que o interessava.
O primeiro destino foi o aplicativo de conversas, onde olhou contato por contato aqueles que insones tinham lhe enviado mensagens durante a madrugada, e de pronto passou a digitar rapidamente respondendo a cada uma delas, enquanto o som digitalizado dos teclados virtuais sendo apertados se espalhava pelo quarto, substituindo o trinar afinado dos pássaros que lá fora cantavam para o mundo real.
Avidamente respondeu uma a uma das mensagens, alternando enquanto o fazia sorrisos e caretas, conforme reagia ao teor do que estava lendo, e antes que se desse conta a penumbra do quarto já dera lugar à claridade trazida pelo sol que já surgira com seu esplendor por trás das montanhas. Naquele momento o estômago roncou, reclamando do jejum da noite que se estendia e o conclamando a lhe dar o alimento de que precisava.
Mas de início pareceu não dar importância ao comando, e permaneceu na cama, olhando e digitando, sem desviar por um instante sequer a atenção do aparelho e de tudo o que ele continha. Terminada a saga das respostas, ao menos para aquele momento, lançou os olhos em seu segundo alvo, as redes sociais, onde as fotos e vídeos lhe permitiriam ver a rotina da vida de outras pessoas, sem perceber que a hora se adiantava e deixava de lado a preocupação com sua própria vida.
Direcionou toda sua atenção à timeline, onde podia ver o que cada um fizera, como fizera e com quem fizera, ao menos de forma disfarçada, com a maquiagem que a internet fornecia para que cada um desse à sua própria realidade um pouco dos contornos da fantasia que sonhavam viver, mas que na maioria dos casos não viviam.
Viu, olhou, checou, curtiu, torceu a cara, criticou, comentou, olhando para tudo aquilo enquanto mal piscava os olhos, até que sentiu pela segunda vez as queixas de seu estômago, e impaciente resolveu atendê-las, prestando pela primeira vez atenção ao relógio que a todo momento estivera na tela do celular, mas com o qual não se importara em momento algum.
Disparou um sonoro “droga” ao perceber que a hora se adiantara enquanto se distraía na virtual realidade do mundo de sonhos que visitava acordado, e pulou da cama para arrumar-se para o trabalho e tentar comer algo que pudesse forrar sua barriga pelo restante da manhã, sem perceber que enquanto ia ao banheiro não soltava o celular, que ainda tinha em mãos como se dele sua vida dependesse.
Correu para o banheiro e desajeitado tirou a roupa, ainda com o aparelho em mãos, e só não o levou para debaixo do chuveiro porque a tecnologia ainda não permitia que aquela relação se estendesse até aquele ponto. Mas antes que se lançasse embaixo da água tirou o celular do silencioso e deixou o som ligado, para ao menos saber que as notificações estavam chegando, como se ouvir lhe trouxesse o consolo por aquela rápida mais ainda assim dolorosa separação.
Tomou um banho apressado, enrolou-se na toalha, e antes mesmo que suas mãos tivessem secado já passava os dedos úmidos e apressados pela tela, respondendo perguntas e comentando fotos e postagens que chegavam ao seu conhecimento. Agiu da mesma forma enquanto atabalhoadamente trocava de roupa e depois preparava um nada substancial café da manhã, consumindo com voracidade o conteúdo daquele mundo digital enquanto pouco se preocupava em consumir algo útil, como o alimento que deveria manter suas energias durante o dia.
Antes de sair voltou três vezes para procurar as chaves do carro, a carteira e o relógio, mas em momento algum esqueceu-se do celular, cujo peso reconfortante o fazia lembrar-se constantemente de algo que para ele se tornara essencial, como se a ausência do aparelho lhe trouxesse a sensação de que faltava uma parte de seu próprio corpo.
No trajeto para o trabalho pegou o aparelho sempre que encontrou tempo para fazê-lo, ainda que estivesse dirigindo enquanto o fazia, escapando no caminho de colidir-se com dois carros e de atropelar mais alguns transeuntes que lhe dirigiram os xingamentos que a situação demandava porque se distraíra olhando as mensagens que não paravam de chegar em seu telefone.
Enquanto ouvia os xingamentos e as buzinas daqueles que por pouco não tinham se tornado vítimas das irresponsabilidades que sua sede desenfreada pelas redes lhe fizera cometer chegou a lembrar-se das campanhas publicitárias que diariamente via, pedindo para que motoristas não repetissem o gesto que ele estava fazendo, e acabou por justificar para si próprio aquelas atitudes, afirmando em sua mente que tinha plenas condições de fazer as duas coisas ao mesmo tempo, um erro que era cometido por muitos, e que em grande parte das vezes não podia jamais ser corrigido.
Chegou ao trabalho e assim que sentou-se à mesa ignorou pela primeira vez o celular, deixando-o a um canto enquanto ligava o computador. Mas tão logo a tela acendeu-se, passou a abrir as mesmas redes que tinha no aparelho telefônico, e assim deu continuidade ao processo que já fora iniciado em casa, dividindo sua atenção entre o que era essencial e o que era inteiramente fútil, o que ampliaria ainda mais as queixas que muitos já levantavam sobre a decrescente qualidade de seu trabalho.
Entre um relatório e outro, uma curtida. Entre uma e outra análise apressada e mal feita, um comentário atento a uma foto ou publicação que merecera sua completa atenção. Naquele encantamento que lhe hipnotizava e capturava seus pensamentos ele dava importância ao que era frívolo e julgava desimportante o que realmente possuía alguma relevância.
As horas passaram e a fome do corpo uma vez mais entrou em conflito com a fome insaciável pelas redes. Novamente se alimentou mal da comida que nutria, para devorar com voracidade a que não trazia benefício algum. De olhos vidrados analisou perfis, vendo fotos e mais fotos de contatos em praias, fazendas, shows, boates, restaurantes, curtindo cada uma delas e comentando algumas com elogios enquanto na privacidade de sua mente, que era a única que alguém ainda podia ter no mundo atual, invejava e tecia teorias sobre a origem do dinheiro gasto por aquelas pessoas.
“Aposto que essa faz programa para pagar essas viagens”, disse sobre uma. “Tenho certeza que esse aí toma bomba”, pensou sobre outro. “Claro que tem um carrão, afinal, deve ter um papai que banca tudo”, julgou sobre um terceiro, sem saber ao menos se os bens que possuíam realmente tinham aquela origem.
Viu os posts das celebridades, comentou, julgou, condenou, teceu sua opinião com críticas pesadas e nada construtivas, que pouca ou nenhuma serventia possuíam, e tudo movido única e exclusivamente pelo sentimento de inveja e frustração que carregava no peito, por não ser aquela pessoa da foto. Por não ter a aparência da pessoa da foto. Por não estar no lugar em que a pessoa da foto estava, em um estranho misto de admiração e revolta, em que colocava aquelas pessoas em um pedestal ao mesmo tempo em que avidamente desejava derrubá-las de lá.
Levado pela onda que costumeiramente pega aqueles que não têm senso crítico ou opinião formada sobre algo, acabou entrando no rol da patrulha de plantão que costumava julgar e cancelar aqueles que não possuíam o mesmo ponto de vista que o seu, e acabou por fazer o mesmo, sem sequer ter conhecimento aprofundado sobre a causa que era objeto da discussão.
Cancelou, criticou e esbravejou em comentários revoltados, sem analisar fatos, sem procurar elementos, fazendo apenas o que a turba ensandecida por descarregar as frustrações sentia tanto prazer em fazer... rebaixar, destruir, massacrar, e tudo impelido por um deturpado senso de moral que o levava a acreditar que estava fazendo um bem, quando na verdade causava apenas mal.
Após um tempo que não soube mensurar vivendo naquele complexo mundo de faz de conta ele assustou-se ao ver o adiantar dos ponteiros do relógio, e só naquele instante lembrou do trabalho acumulado que tinha para fazer, e no qual mal tocara naquele dia. Não importava, faria aquilo na manhã seguinte, esquecendo, enquanto se fazia aquela promessa, que dissera a si próprio aquelas mesmas palavras na tarde anterior, e na anterior, e na anterior...
E assim uma vez mais deixou para o dia seguinte o que era relevante, em detrimento da frivolidade de acompanhar com tanto afinco a vida alheia ao invés de viver a sua própria, deixando de aproveitar a realidade que se descortinava ao seu redor para ocultar-se como um voyeur virtual, alimentando-se do que os outros faziam, mostravam e viviam, voltando para casa para estender-se em mais uma madrugada solitária, acompanhado de imagens frias de pessoas que estavam mais distantes dele do que sua mente imaginava, em um ato preparatório para o que iria se repetir no dia seguinte, e no seguinte, e até onde fosse enquanto algumas verdades essenciais não fossem finalmente absorvidas por sua mente...
A de que o mundo era muito maior do que uma tela de celular. De que nem sempre o que se via era o que de fato se passava. De que cada um possuía sua própria história, suas próprias dores e suas motivações, que deviam ser vistas e ouvidas antes de um julgamento precipitado, e o de que o sabor do que era real estava muito além da distância e da frieza de um mundo virtual onde o sentir era uma mera invenção de faz de conta.
Sem cheiro, sem sabor, sem toque e sem calor.
Sapiêncio e a opinião alheia
A praça fervilhava naquele início da manhã, banhada por um sol fulgurante e por um céu de azul cristalino que brilhava acima das cabeças dos passantes, apressados demais em chegar aos destinos onde cumpririam seus compromissos previamente marcados. Nos bancos os mais velhos se assentavam, ora conversando, ora alimentando os pombos que saltitavam pelo local, e nos brinquedos e árvores as crianças brincavam ruidosamente, enchendo o ambiente com seus gritinhos de alegria e êxtase.
Carros passavam nas ruas, pessoas andavam pelas calçadas, pássaros cantavam no ar e um cachorro sentava-se preguiçosamente na frente do boteco de Seu João, esperando com uma língua dependurada ao lado da boca que o velho mau humorado tivesse um lapso de caridade e lhe lançasse um dos quitutes que Dona Toninha caprichosamente preparava todos os dias.
De seu lado, Seu João continuava no balcão, ocupado com seu jornal e suas palavras cruzadas, ora lendo as notícias do novo dia, ora impacientando-se e passando a refugiar-se em seu passatempo favorito, o de preencher as lacunas das cruzadinhas que lhe proporcionavam a diversão e distração necessárias para a manutenção do pouco bom humor que guardava dentro de si.
Absorto em encontrar as repostas para os pequenos enigmas de que se ocupava ele não reparou no cachorro que o fitava insistentemente, nem nos pedestres que corriam para cumprir seus compromissos, e muito menos nos dois senhores que sentados em um dos bancos da praça do outro lado da rua ocupavam-se em apontar com olhares julgadores e com queixos cheios de autoridade os defeitos que consideravam que cada pessoa que por eles passava possuía.
- Veja só aquilo, compadre. – Disse um deles, enquanto brincava com um palito que viajava de um lado a outro da boca encimada por um grosso bigode quase inteiramente branco. – Veja só que absurdo.
- O que, companheiro? Ver o que? – Apressou-se o outro, que era um pouco menos dono de sua própria opinião, e tinha mania de seguir o amigo em suas conclusões. Este passou a correr os olhos pelo lugar à procura do que o colega indicara, sem conseguir localizar a fonte que chamara a atenção do companheiro.
- Como assim, o que? Está velho demais para reparar ou simplesmente está dando uma de doido? Olhe bem, ali, ao lado do vendedor de algodão doce. Veja só que escândalo.
O outro jogou o olhar diretamente no local indicado, e viu uma moça jovem ao lado de uma criança. Algo que passaria batido por ambos, não fosse a roupa que a mulher usava, e que foi imediatamente destacada pelo que a observara inicialmente.
- Vê isso? Que imoralidade! É por isso que esse mundo está perdido. Uma moça que se veste assim não merece respeito algum!
- Verdade, verdade. – Concordou o outro.
- E o que dizer da criança? O que aquele garotinho que está com ela vai aprender vendo uma mulher se vestindo dessa forma do seu lado? É um absurdo isso. – Continuou o mais rígido, com o olhar fixo nas pernas da mulher enquanto mesclava a irritação com um súbito interesse no que via. – Depois reclamam quando recebem cantadas na rua. Se pessoas assim se dessem ao respeito, não precisariam se incomodar com piscadinhas e assobios daqueles mais saidinhos.
- Sim, sim. Um absurdo. Um verdadeiro absurdo.
Enquanto julgavam a moça perto deles os dois companheiros de olhos atentos e línguas afiadas não repararam que sentado em um grosso galho, um pouco acima de suas cabeças, outra pessoa também os observava, ouvindo atentamente cada palavra que aqueles dedicados opinantes proferiam no julgamento que faziam.
De cima as pernas finas balançavam calmamente, dando à figura a semelhança de uma criança sentada em um banco grande demais para que os pés tocassem o chão, e braços igualmente finos se estendiam enquanto as mãos magricelas se apoiavam no galho nodoso, que apesar de não ser muito grosso não demonstrava muito esforço em suportar o parco peso do homem que sobre ele se sentava, com olhos grandes e atentos que lhe davam a aparência de um louco, o que muitas pessoas acreditavam ser verdade.
- E essa agora. – Voltou a falar o mais atento ao ver um rapaz se aproximar da moça e após dar-lhe um beijo, segurar sua mão. – Pode isso? O namorado permite que ela saia vestida assim.
- Verdade, verdade. Como pode? – Concordou o outro.
- É por essas e outras que o mundo está desse jeito. No meu tempo a mulher sabia seu lugar, e sempre obedecia a um homem que demonstrasse autoridade. Vê-se logo que esse tipo não tem essa capacidade, já que deixa a moça andar assim para que todo mundo veja. É por essas e outras que o mundo está desse jeito.
- Exatamente. É por essas e outras que o mundo está desse jeito.
A esses comentários seguiu-se um silêncio que por um momento pareceu que seria duradouro, levando o espectador sentado no galho acima daquelas brancas cabeças a observar a beleza da natureza ao seu redor. Mas a calmaria foi logo quebrada quando os olhos astutos de um deles encontrou outro alvo para alimentá-los.
- Olha aquilo ali, compadre, olha só.
- O que? Onde? Cadê?
- Ali, homem! Por acaso está ficando cego? Não vê aquele rapaz caminhando até o boteco do Seu João?
O outro observador correu os olhos pelo lugar, até encontrar o alvo a que o amigo se referia. A seus olhos, um rapaz se preparava para entrar no boteco do velho e ranzinza apaixonado por palavras cruzadas, e por um instante pareceu confuso, não vendo nada de mais no jovem que ali estava parado, observando o quadro postado na calçada, onde estavam anotados a giz os pratos do dia.
- Não entendi. O que tem? – Perguntou, ainda confuso.
- Como assim o que tem, sua besta? – Esbravejou o mais agressivo. – Não vê o que está acontecendo? Veja só o cabelo do rapaz, desarranjado como está. E aquela barba rala? Típica desses maloqueiros. Não vou nem falar das roupas, veja só, camiseta e calça folgada, com uma mochila nas costas. Aposto que guarda uma arma naquela mochila e está pronto para assaltar o pobre João. E isso sem falar na cor da pele. Não podemos ficar aqui parados, temos que ajuda-lo. Policial! POLICIAL!
Começou a gritar para o policial que fazia a ronda da praça quase todas as manhãs, chamando a atenção dos passantes que preocupados olhavam para ver o que estava acontecendo. O guarda apressou-se e foi em direção aos velhos, pronto para agir para ajuda-los.
- O que houve? – Quis saber tão logo chegou, já com a mão no coldre onde levava o revólver.
- Ali! Ali! – Apressou-se o que primeiro percebera a presença do rapaz, apontando com um dedo nervoso até onde ele estava. – Ali, seu polícia. Aquele rapaz ali parado, daquele jeito, olhando insistentemente para o boteco do Seu João. Acho que é um assaltante. Tem todo o jeito de um. Vamos, vá até lá! Logo!
O velho continuou apontando o dedo, mas sua insistência logo feneceu ao ver a expressão de desagrado no rosto do guarda, que já afastara a algum tempo a arma do coldre e fitava o nervoso denunciador com um inequívoco olhar de reprovação.
- Mas qual? Não vai fazer nada seu guarda? Vai ficar aí parado olhando enquanto um assalto acontece?
- Aquele rapaz ali parado, meu senhor, não é assaltante coisíssima nenhuma. O nome dele é Pedro e é sobrinho de Dona Toninha, o que o faz também parente de Seu João, que o tem como um filho. Vem uma vez por semana para almoçar, e isso só quando tem uma folguinha das aulas na faculdade de medicina que fica aqui perto. Já tive a oportunidade de conversar com ele mais de uma vez, e garanto que além de ser um doce de pessoa, educado e atencioso, é também um aluno genial, e aposto que será um dos melhores médicos que essa cidade já viu.
- Ah, é? Hum... certo, certo. Tudo bem. – O velho parecia indeciso entre a vergonha pela reprimenda que acabara de receber e a dúvida insistente sobre a integridade daquele jovem, que a seus olhos carregados de preconceito ainda era um sério candidato à definição de bandido, mesmo não tendo feito nada para que merecesse aquela pecha.
O guarda afastou-se, balançando negativamente a cabeça em reprovação ao que acabara de ouvir, enquanto o acusador empinava o nariz como que para atestar que mesmo com aquele erro ainda era o detentor de uma verdade absoluta e incontestável, e assim procurou ignorar o olhar reprovador do policial enquanto ignorava também que outros olhos estavam atentamente pousados sobre ele e sobre seu amigo um pouco mais desatento, que voltara a ler o jornal que tinha em mãos.
- Grosseiro esse policial, não? – Falou o que recebera a lição de moral.
- Muito. Demais. – Concordou, sem afastar os olhos do jornal.
- Isso... isso. Disse tudo meu amigo. Agora mesmo, eu só quis ajudar, como um cidadão preocupado que sou. Não sabia que o rapaz era sobrinho de Dona Toninha. Não sou adivinho. E não podemos arriscar. Vai me condenar por isso? Viu a forma como o jovem se veste? E além disso... bem... você sabe, não é? Ele é bem moreninho, e se formos traçar um perfil... você entende, não é?
- Perfeitamente, meu amigo. Perfeitamente. E acho que está coberto de razão. Para que arriscar?
- Exatamente. Para que arriscar?
E ficaram por mais alguns momentos calados, um com os olhos nas notícias estampadas no jornal, e o outro fitando atento e de nariz empinado o movimento ao seu redor, à procura de qualquer coisa que fugisse às suas noções pré-definidas do que era certo ou errado, até que uma nova imagem acionou o alerta que carregava consigo, e de imediato passou a cutucar o outro com um cotovelo insistente:
- Ali. Veja aquilo. É por isso que eu digo que as coisas estão tomando um rumo sem volta.
- O que? Como? Onde? – Perguntou o outro, novamente confuso.
- Ali, o menino ali sentado. Está vendo? Onde já se viu? Um menino nessa idade brincando de boneca com outras meninas, enquanto ali do outro lado aqueles garotos estão jogando bola, esse sim um esporte de homem.
No local para onde olhavam um grupo de garotinhas brincava cada uma com suas bonecas, enquanto um menino com cerca de oito anos as acompanhava cheio de satisfação, sem perceber ou se importar com o que quer que os olhares das outras pessoas ou seus julgamentos dissesse sobre ele.
- No meu tempo brincadeira de menino era jogar bola, andar de bicicleta ou rolimã e caçar os passarinhos com nossos estilingues. Brincadeira com meninas só se fosse para fingir que éramos médicos. – E deu uma sonora gargalhada que lhe arrancou uma tosse seca e intervalada enquanto se divertia com os pensamentos impudicos que o comentário trazia à sua mente.
- Aposto que quando crescer vai se transformar em um daqueles afetados. – Continuou, limpando uma lágrima de um dos olhos, derramada em meio às abafadas gargalhadas que tinha dado. - Mais um. E já são tantos. A cada dia crescem mais e mais em número. Tudo isso culpa dos pais, que não dão uma boa surra quando ainda há esperança para eles. Se não agem no tempo certo, não adianta remediar depois que acabam se transformando nesses invertidos que vemos rebolando por aí. Horrível, isso.
- Sim, sim. Horrível.
- Ah, mas eu não vou ficar quieto vendo isso. Calado não fico. Não, não! Vou fazer algo a respeito. Se esse menininho não tem educação em casa, vai ter na rua.
- O que vai fazer? – Quis saber o outro, ligeiramente alarmado.
- Como, o que vou fazer? Vou tomar uma atitude, ora bolas. – E voltando-se para o lugar onde o menino estava começou a gritar. – Garoto! Ei garotinho!
O rapazinho voltou o olhar para os dois senhores sentados no banco assim que percebeu que era a ele que chamavam.
- É, sim. Você mesmo. Venha aqui. Venha aqui. Não se preocupe. Só quero lhe dizer algo. – Insistiu o velho, chamando o menino com gestos repetidos de suas mãos.
O jovem levantou lentamente, e reticente caminhou até o banco onde os dois estavam sentados, mas parou alguns metros antes, à distância, olhando ao redor para ver se não estava sozinho, preocupado com os avisos dos pais sobre conversas com estranhos.
- Menino. – Disse o velho que o chamara. – Quantos anos tem?
- Tenho oito. – Respondeu obediente o garoto, ainda cheio de desconfiança daqueles olhares que o analisavam detidamente.
- E por que não está brincando com aqueles garotinhos ali? Veja, olhe só. Estão jogando futebol. Não gosta de futebol?
- Gosto sim. – Limitou-se a responder o garoto.
- E por que não está lá jogando com eles? Não vê que brincar de boneca é coisa de menina? De mariquinhas? Aquelas menininhas ali, você só tem que chegar perto delas para dar uns beijinhos vez por outra, e não para brincar de coisa de mulherzinha.
O menino então começou a rir, e de início o velho ficou satisfeito, achando que ele achara graça nas coisas que dissera. Mas logo em seguida percebeu que os olhos antes preocupados do garoto não estavam focados nele, e sim em um ponto acima de sua cabeça, e assim virou-se para ver o que tanto chamava a atenção do jovem, dando um pulo do banco logo que percebeu do que se tratava.
- Mas o que diacho...? Quem raios é você, seu doido desvairado? – Perguntou o homem ao ver uma figura magricela pendurada de cabeça para baixo e balançando-se como um macaco raquítico de um lado para o outro acima dele.
De seu lado, Sapiêncio sorria, o que lhe dava mais ares de maluco do que se ostentasse a expressão séria de quem se punha a pensar sobre alguma coisa, algo que sempre significava problema para quem estivesse conversando com ele.
Os cambitos quase que inteiramente feitos de pele e ossos se prendiam com uma força surpreendente no galho acima dele, e os cabelos desgrenhados escorriam para baixo como uma cascata de um castanho platinado, enquanto os braços magricelos pendiam desajeitados de um lado para o outro, aumentando ainda mais o sorriso do menino que se admirava com aquela estranha figura.
Mas se a criança estava contente com aquela visão, o mesmo não podia ser dito dos dois homens que o fitavam abismados, especialmente o que mantinha-se mais ávido em formular seus julgamentos com base no que concebia através de apenas um vislumbre de um todo que continha muito mais história do que imaginava, e que agora fitava Sapiêncio incomodado com aquela intromissão repentina.
- Mas qual? – Bradou ele. – Se não é aquele mendigo maluco que fica incomodando os outros com as besteiras que fala! Nunca lhe disseram que é falta de respeito aparecer desse jeito para os outros? E ainda por cima fazendo macaquices! Que tipo de exemplo pensa que está dando para essa criança?
- Estou ensinando a ela... – Começou a dizer Sapiêncio, movendo-se logo em seguida com uma agilidade que espantou os velhos, enquanto com uma mão dependurava-se no galho para voltar à posição normal. – Os efeitos da lei da gravidade, ensinada muito tempo atrás por um moço chamado Isaac Newton, que dizia, em outras palavras, que tudo o que sobe, tem que descer, do mesmo jeitinho que o fez a maçã que lhe acertou bem no meio do cocuruto . – E soltou-se do galho, pisando no chão com um baque suave. – Assim ele vai saber que se subir muito alto numa árvore dessa, pode se machucar ao cair. Certo garotinho?
O menino, ainda sorrindo, acenou positivamente com a cabeça, sem demonstrar nem um pouco da apreensão que sentira com os velhos quando se aproximara do banco momentos antes.
- Ótimo. Agora xô, xô, xô. Volte a brincar, que o lugar de criança é onde há brincadeira, não importa qual seja essa brincadeira. Desde que seja saudável, é claro. – E lançou aos dois homens um olhar que de algum modo denotava que ele ouvira as palavras ditas pelos dois enquanto falavam sobre o menino e o modo como estava brincando.
- Além de inconveniente é também metido, Sapiêncio? – Queixou-se o mais revoltado. – Se intrometeu no exato momento em que eu ia dar uma lição naquele garotinho, e ainda por cima o dispensou sem sequer permitir que eu o fizesse. Quem pensa que é?
- Bom dia também para vossas senhorias. – Respondeu Sapiêncio, apertando de forma desengonçada as mãos de cada um deles antes que tivessem tempo de perceber. – Toda conversa deve ser iniciada assim, especialmente em um dia tão bonito como esse. E quanto à pergunta que me fez... bem, o que posso dizer é que penso que sou Sapiêncio, mas às vezes, e não são poucas, penso também que sou outras pessoas, ou outras coisas. Agora há pouco pensava que era um macaquinho serelepe, e por isso me aboletei em um desses galhos e fiquei me balançando, o que é assim por ainda ser dia, porque se fosse noite, eu pensaria que era um morcego, já que por essas horas a macacada está em suas casinhas dormindo, enquanto que os morceguinhos estão por aí, aprontando das suas.
- Ora, seu mendigo biruta. Não me venha com suas maluquices aqui. – Disse o velho, sem perceber que o amigo abafara um riso com aquela resposta nada convencional. – Não somos pacientes como Seu João, que atura suas conversas bizarras todos os dias sem fazer nada a respeito.
- Seu João às vezes não é tão paciente. – Disse Sapiêncio, mudando a expressão brevemente para uma cara amuada, como a de uma criança que foi contrariada e faz bico em protesto. – Que o diga meu pobre traseirinho, que ontem levou um pontapé daqueles.
- Pois se levou foi merecido. – Esbravejou o velho. – Por ficar se metendo nas conversas dos outros. Agora me diga, por acaso estava ouvindo tudo o que falamos? Há quanto tempo estava aí?
- Não tenho relógio para medir o tempo. E como disse antes, excelência, agora há pouco eu era um macaquinho, e macacos não possuem relógios, se é que sabem ver as horas, então não posso dizer o tempo exato em que estava no meu galho matutando sobre a vida.
- Não tergiverse. Você fica aí com suas lorotas, mas não nos enrola não. Agora responda, já estava aí quando chegamos? E se sim, ouviu toda a nossa conversa?
- Não conto lorotas, nobre cavalheiro. Apenas narro o que se passa na minha pobre e limitada cabecinha, que só sabe que nada sabe. Mas sei também que já estava no meu galho quando vossas magnificências chegaram, e que ouvi sim algumas coisas que disseram... infelizmente.
- Infelizmente por que? – Vociferou.
- Infelizmente porque não foi felizmente, oras.
- Deixe logo de suas bravatas e fale direito, seu mendigo biruta. Infelizmente por que?
- Se eu preciso falar porque acho infeliz o que vossas senhorias disseram, então é exatamente este o motivo do infelizmente.
- Finja que somos apenas um garotinho de oito anos, como aquele que esteve aqui agora há pouco, e nos explique. – Pediu o segundo velho, tendo de conter o amigo, que já estava ficando vermelho com toda aquela conversa.
- Se fossem um garotinho como aquele, tudo seria mais fácil. Tanto de explicar, como também de compreender.
- Como é?
- Nada, nada. – Sapiêncio tentou acalmar o velho mais estressado. – Vou falar o que penso. Mas antes, peço que se sentem. Se querem que eu pense que são como aquele garotinho, então terão de sentar, assim posso imaginar que eu sou um professor, e vocês são meus aluninhos.
Os amigos se entreolharam com um misto de espanto e aborrecimento, mas acabaram acatando o pedido, em parte por que estavam curiosos em ouvir o que ele tinha a dizer, e em parte porque levavam a sério o velho ditado que apregoava que com doido não se discute.
- Como já expliquei, quando Vossas senhorias chegaram, eu já estava sentado no meu galho, matutando sobre a vida e me deliciando com a vista dessa linda praça nesse dia maravilhoso, e não teria sequer reparado na ilustre presença dos senhores, não fossem os comentários que teceram sobre a jovem que até agora há pouco estava ali, pertinho do carro de pipoca.
- Hunf, aquela indecente. – Disse o mais revoltado.
- Sim, muito indecente. – Concordou o outro, como de costume.
- Sim, indecente. – Falou Sapiêncio, o que animou momentaneamente os homens, que pensaram que haviam ganhado mais um integrante para reforçar o coro. – Muito indecente... o olhar de um dos senhores para ela.
- Ora, mas o que está dizendo? – Bradou o que realmente olhara para a moça, externando o quanto se sentia ofendido.
- Isso mesmo! O que quer dizer com isso? – Perguntou o outro, sem entender realmente o que Sapiêncio tentava explicar, já que estivera mais preocupado em olhar para o jornal do que para as pernas da jovem.
- Quero dizer, meus caros aluninhos, que a única coisa indecente que vi foi o olhar de um dos senhores para aquela jovem. E digo mais, pelo que vi nos rostos de algumas pessoas que passavam por aqui, não fui apenas eu que percebi isso.
- Que olhar? Mas que olhar, seu maluco? Nós apenas estávamos analisando e comentando o quão curta e indecente era a roupa daquela jovem despudorada.
- Com um olhar semelhante ao dos cachorros que ficam ali na frente do boteco do Seu João olhando os franguinhos rodando no espeto, logo na entrada. Ou será que sou eu que fico olhando assim para os franguinhos? Ah, aqueles franguinhos são tão gostosos...
- Lá vem você com suas doidices, Sapiêncio. Depois alguns duvidam quando dizem que é maluco. Ora, mas onde já se viu. Nós, senhores distintos, sendo acusados de olhar com algum desejo para aquela jovem indecente quando apenas estávamos comentando sobre os costumes e a educação deturpada que temos hoje em dia.
- Eu não disse que foram os dois, excelência, mas apenas o senhor.
O homem ficou vermelho de raiva. Não queria admitir, mas a indignação que sentia não era nem de longe pelo fato de sua reputação ter sido ferida com o comentário de Sapiêncio, e sim porque ele tinha acertado em cheio ao descobrir o que realmente tinha passado por sua cabeça enquanto fitava a jovem e proferia seus julgamentos. Naquele instante, a boca dizia uma coisa, mas a mente pensava em outras, que em nada condiziam com a pureza e o respeito que cheio de autoridade ele apregoava.
- É, é. Isso, isso. Onde já se viu? – Repetiu Sapiêncio com ironia. – Mas vamos adiante. E quanto às roupas da jovem? Vai negar também que estavam criticando as roupas dela?
- Mas claro que estávamos criticando as roupas dela. Como não reparar em tamanha falta de pudor? Uma saia curta daquela? Em plena luz do dia, em uma praça com crianças brincando? Vai dizer que não achou isso um absurdo?
- Não achei isso um absurdo. – Retorquiu Sapiêncio. – Vi apenas uma saia muito bonita em uma jovem que parecia bastante feliz com o namorado, com uma criança, e com um saquinho de pipoca na mão. Onde está a indecência disso?
- Na roupa, ora bolas!
- Roupas não pensam. Roupas não falam. Roupas não sentem, e por isso não podem ser indecentes. Se me permitem dizer, a indecência não está na indumentária, mas nos olhos de quem a vê. Por acaso conhecem aquela moça? Por acaso já pararam para passar um dia com ela, ou apenas um minuto sequer conversando sobre algum assunto? Então, se não a conhecem, como podem taxa-la de imoral simplesmente por causa de um pedaço de pano?
- Mas ela estava quase nua!
- Não, não estava. E mesmo que estivesse, qual direito teriam em chama-la de imoral? Se for assim, todos nascemos indecentes, já que saímos da barriga de nossas mamães pelados, nuzinhos da silva. Ou vossas senhorias nasceram fardados?
Os velhos se entreolharam incomodados, tentando buscar um no outro algum argumento que pudesse contrabalançar aquelas ideias, mas nada encontraram.
- Ora, não me venha com suas maluquices. – Disse finalmente o mais revoltado, aborrecido por ter ficado sem argumentos e usando do expediente que algumas pessoas tipicamente usam em casos como esse, que é apelar para a agressão verbal. - É por isso que o chamam de doido. Pois digo e repito, aquela moça era uma indecente por se vestir daquele jeito, e ponto final!
- Exatamente. E ponto final! – Repetiu o outro.
- Certo, certo. Ponto final. – Aquiesceu Sapiêncio, sabendo que não adiantaria permanecer naquele tópico com os dois cabeças duras diante dele. Podia até ser doido, como muitos diziam, mas de bobo não tinha nada. – Por que não adiantamos então?
- Isso, adiante. Faça isso logo, homem. Não temos o dia todo.
- Tudo bem. Por que não falamos então do sobrinho de Dona Toninha?
Os homens se mexeram incomodados em seus lugares nos bancos e se entreolharam por um segundo, cientes de que dali viria mais uma bomba contra a qual pouco ou nenhum argumento teriam para oferecer.
- O que tem ele? – Resmungou um deles.
- O que ele tem eu não sei. – Respondeu Sapiêncio. – Mas sei que dentro daquela mochila ele não tem uma arma, e dentro daquela cabeça ele não tem intenção de roubar ou de prejudicar ninguém. Pelo contrário, excelências, o que aquele menino tem é uma vontade enorme de ajudar os outros. Acho que quando for médico vai beneficiar muita gente, especialmente os mais carentes. Acreditam os senhores que às vezes ele me oferece o próprio almoço, mesmo sendo a única coisa que vai comer durante todo o dia? É por isso que Dona Toninha e Seu João o convidam para almoçar aí todas as tardes, porque sabem que o menino faz das tripas coração para ter condição de pagar as coisas dele, e nem sempre consegue fazê-lo. E o garoto é tão bom que só aceita fazer isso uma vez por semana, e ainda assim me oferece a comida. Que eu não aceito, evidentemente, primeiro porque não quero que ele fique sem o pouco que já tem, e segundo, porque estou de dieta, e preciso perder algum peso. Não é fácil para uma pessoa bonita como eu manter toda essa beleza.
Sapiêncio fez uma pose para destacar sua silhueta, que estava mais magra do que nunca, o que trouxe apenas um pensamento à cabeça dos dois homens que ouviam atentos a tudo aquilo. “É doido mesmo”, pensaram simultaneamente, sem ter a mínima noção de que o faziam.
- Mas continuando. – Prosseguiu o magricela pensador. – Pelo que me lembro uma, vossas senhorias achou que ele iria assaltar o estabelecimento, e tudo pelo que mesmo? Hummm... ah, sim, por causa do jeito que se veste, e por ser... deixe-me ver se recordo a expressão que um dos senhores usou... Lembrei! Por ser moreninho! Não foi isso?
Os dois se mexeram novamente incomodados com o que ouviam, especialmente o que usara aquela expressão, e depois de alguns segundos em silêncio e de alguns movimentos desconexos, o que dissera “moreninho”, visivelmente irritado por ser novamente enquadrado, vociferou:
- Vai me julgar por ter falado isso? Ou por acaso vai ser hipócrita de dizer que quando vê uma pessoa assim na rua, especialmente em um local mais esquisito, não se preocupa ou mesmo atravessa a rua e muda de caminho?
- Meu senhor, posso lhe garantir que me preocupo com tudo e com todos hoje em dia, e não, não atravesso a rua. Pelo contrário. Algumas pessoas que me veem pelo caminho é que acabam trocando de calçada, o que muitas vezes não entendo. Seu João já me disse com aquela delicadeza dele que é porque sou mendigo, e acabam me julgando pela aparência, o que às vezes me pergunto se é verdade, já que uma coisa que não pode ser contestada é o tamanho da minha beleza. – E sacudiu os cabelos desgrenhados enquanto balançava o corpo magro e desengonçado na frente dos velhos.
- Não importa. – Bradou o velho. – Só digo que não pode me julgar por pensar que uma pessoa mais... bem... mais escura pode lhe assaltar. Afinal, basta ver o noticiário para constatar que a maioria dos criminosos tem essa cor.
- Basta ver o noticiário também para ver que a maioria dos criminosos de colarinho branco são clarinhos, penteadinhos e engomadinhos, e roubam todos os dias o suado dinheirinho de todos nós. – Replicou Sapiêncio. – E por esse motivo eu vou ter medo de todo branco bem vestido que passa perto de mim? Se fosse assim eu já estaria correndo de vossas excelências, não acham?
O silêncio dos dois foi reposta o bastante para ele, que resolveu continuar e passar para o próximo assunto.
- Não querem mais falar no sobrinho de Dona Toninha? Tudo bem. Vamos adiante. Falemos agora na pobre criancinha que esteve aqui e me viu fazendo macaquices no galho.
- Qual o problema com ele?
- O problema é que vossas senhorias não podem negar que também foram desrespeitosos com o menino.
- De forma alguma. – Falou o mais alterado, já revoltado com a acusação. – Apenas quisemos ajuda-lo a... a...
- A...? – Encorajou Sapiêncio, já sabendo o que ele diria.
- A não se tornar um desses meninos invertidos, ora bolas!
- Invertidos? Como assim invertidos? – Sapiêncio coçou o queixo magro e proeminente, em sua já conhecida postura de quem estava pensando em algo. – Invertido no sentido de trocar as mãos pelos pés e andar plantando bananeira?
- Não, seu doido. Invertido no sentido de ser um desses afetados. Um desses maricas que tanto vemos por aí hoje em dia.
- Ah... entendi. – E depois de um tempo em silêncio, alisando o queixo, Sapiêncio continuou. – Posso lhe fazer duas perguntas?
- Desembuche logo, homem.
- A primeira delas é, como o fato de brincar de boneca vai fazer aquele garotinho ficar invertido? Usando suas próprias palavras. E a segunda é, e se a preferência dele não for a mesma que a sua, isso o torna uma pessoa pior?
- Brincar de bonecas cria maricas, foi o que meu pai sempre disse. – Esbravejou o velho.
- O senhor considera Seu João como isso aí que falou? – Quis saber Sapiêncio.
- E por que deveria?
- Porque ele brincava de bonecas quando era um garotinho.
- Mentira! – Disse o segundo velho, com a boca em forma de “O”. – O Seu João brincava de boneca?
- Sim, sim. Ele mesmo me disse uma vez, depois que tomamos uns copinhos de cachaça em um dia em que ele estava de bom humor. – Disse até que tinha uma favorita, cujo nome era Antonieta. Talvez seja por isso que tenha se apaixonado por Dona Toninha.
- Se brincou ou não, isso não importa! – Bradou o primeiro velho. – É uma exceção à regra. E quanto à sua segunda pergunta, não gosto desse povo, e tenho todo o direito disso. Ninguém pode me obrigar a gostar de quem quer que seja!
- Isso é verdade. – Falou calmamente Sapiêncio. – Ninguém pode obriga-lo a gostar de quem quer que seja, em lugar algum. Mas não gosta deles porque os conhece pessoalmente, ou simplesmente porque não são da forma como acha que deveriam ser?
- Não entendi.
- Perguntei se já conheceu todos eles de perto para saber que não gosta deles, ou se não simpatiza somente porque não são do jeito que o senhor pensa que deveriam ser.
O velho olhou para o amigo em busca de algum auxílio, mas assim como da outra vez nada encontrou a não ser a mesma expressão confusa que tinha quase certeza de que era um exato reflexo da sua. Fitou então Sapiêncio, que mantinha a mesma cara de sempre, com os mesmos olhos esbugalhados e perscrutadores e a mesma cara chupada que acentuava o aspecto de doido que muitos lhe atribuíam, e não tendo nada melhor para falar, concluiu.
- Não gosto e pronto, ora bolas. Isso aqui é uma democracia, não tenho o direito de gostar ou de deixar de gostar de quem me aprouver? Ou vou ter que ser obrigado a isso agora?
- Longe de mim obrigar qualquer pessoa a nada. – Respondeu Sapiêncio, erguendo as mãos e balançando os dedos magros em sinal de paz. – É como minha vózinha sempre dizia, “tentar forçar uma pessoa a gostar da outra é o mesmo que querer segurar o vento com as mãos. Não vai conseguir nada além da frustração de tê-las vazias”. Ah, como sinto falta dela. Espero que esteja em um lugar melhor agora.
- Ela morreu? – Perguntou o mais calmo dos velhos.
- Não, não. Se mudou. Queria uma casinha melhor, e por isso espero que tenha encontrado uma que a tenha agradado.
- Você e suas sandices, seu mendigo maluco. – Esbravejou o outro, já irritado com toda aquela conversação. – Pois então se não sou obrigado a gostar, não venha me importunar com isso, e muito menos com lições do que acha certo ou errado. Por acaso é o dono da verdade?
- A verdade não tem dono, senhor. A verdade é dona de si mesma.
- Então não me encha a paciência, ora bolas!
- O senhor se acha dono da verdade?
- N-não. Claro que não. É como você disse aí. Ela é sua própria dona, ou o que o valha.
- Então por que julga tanto as outras pessoas com base nas verdades que acha que possui?
- Não julgo ninguém! Apenas observo e comento!
- E sentencia com base nesse julgamento. – Retorquiu Sapiêncio. –Sentenciou à condição de vadia uma moça apenas pelas roupas que usava. Sentenciou um jovem a ladrão apenas pelo modo como se vestia, e pior, pela cor de sua pele, e sentenciou um garotinho e todo um grupo de pessoas a algo pelo que sente tanta aversão que chega a nomear de invertidos. Isso, até onde eu sei é julgar. Até mesmo o senhor. – Disse, agora fitando o outro. – Concordar com tudo, mesmo sem dizer tanto assim, é uma forma de julgar. E isso me lembra algo que li em um livro muito, muito famoso, com passagens cheias de sabedoria. Dizia assim, “Por que você repara no cisco que está no olho do seu irmão e não se dá conta da viga que está em seu próprio olho? Como você pode dizer ao seu irmão: 'Deixe-me tirar o cisco do seu olho', quando há uma viga no seu? Hipócrita, tire primeiro a viga do seu olho, e então você verá claramente para tirar o cisco do olho do seu irmão.”
O rosto do primeiro velho ficou rubro como sangue, e seus olhos se arregalaram para Sapiêncio como se estivessem em fogo. O mendigo arregalou os seus, visivelmente espantado com aquela carranca que parecia querer engoli-lo, e chegou a fazer uma cruz com seus dedos finos e magricelos enquanto dava dois passos desengonçados para trás.
O homem então levantou-se de um salto, e sem dizer mais palavra saiu de lá, bufando e pisando forte sem olhar para trás. No banco, o amigo que a todo instante repetira o que ele dissera ficou desolado, olhando o companheiro de julgamento indo embora enquanto parecia pensar sobre algo. Então, depois de alguns segundos em silêncio, fitou Sapiêncio, que encarava concentradamente o galho onde estivera pendurado antes de toda aquela discussão, parecendo estar com a cabeça já distante dali.
- Sapiêncio. – Disse o velho. – Você acredita mesmo em tudo o que nos disse?
A pergunta não parecia ser desafiadora, e muito menos fora feita com o propósito de desacreditar o que o mendigo dissera. Havia nela uma sincera aura de dúvida, e aquilo animou Sapiêncio, pois vira que uma semente passara a germinar ali.
- Acredito em tudo o que falo, e no que não acredito, eu me calo. – Respondeu Sapiêncio. – E por isso muita gente me taxa de doido. O que às vezes pode ser verdade, e às vezes não. – E sorriu, mostrando ao velho os dentes tortos e desarranjados, mas que possuíam em si uma certa beleza.
- Acha mesmo que me preocupo demais em julgar os outros?
- Acho. Assim como acho que eu faço o mesmo. E que aquela moça para quem olharam também deve fazer, assim como o policial que abordaram, e como o sobrinho de Dona Toninha provavelmente faz ou já fez alguma vez na vida, e como o menininho que veio aqui há pouco talvez venha a fazer em algum momento de sua caminhada neste mundo. Todos nós somos afeitos a julgamentos e preconceitos.
“Todos nós podemos cair nessa vala comum, não importa a idade, a cor, a orientação sexual ou a religião. Todos, sem exceção, estão sujeitos a agir dessa forma, e não é feio reconhecer isso. Feio mesmo é descobrir que o faz, e ainda assim continuar fazendo, olhando para o cisco no olho do outro, e esquecendo da trave que está no seu próprio.
Muita gente me chama de doido, mas acho que uma das melhores definições de insanidade foi dada por Einstein, que dizia que loucura é repetir sempre o mesmo comportamento, esperando que dele decorram resultados diferentes. Como insistir em um erro, por exemplo.”
- Bom... bom... – Disse o velho, fitando o relógio e encontrando a deixa de que precisava para ir embora. – Já chegou a minha hora, tenho que ir para casa antes que minha esposa se preocupe e venha me procurar por aqui. – E levantou-se lentamente do banco, passando pelo mendigo e lhe dando dois tapinhas no ombro, carregando consigo alguns pensamentos com os quais sabia que teria de lidar dali em diante. Sorriu então para Sapiêncio, recebendo de volta aquele já conhecido sorriso de dentes tortos, mas ainda assim curiosamente belo. Depois disso o velho voltou a tomar seu rumo, mas tão logo deu mais alguns passos, virou-se, com uma expressão repleta de curiosidade.
- Me diga, Sapiêncio... me tire só mais uma dúvida.
- Pois não, excelência.
- Essa história de que Seu João brincava de boneca, é mesmo verdade, ou era só pilhéria sua?
- A mais pura verdade. Sim, sim. Posso garantir. Ouvi dele mesmo com essas orelhinhas que um dia, e espero que esse dia demore, a terra há de comer.
- Certo, certo. – Disse o velho, sorrindo, e assim virou-se, caminhando um tanto que ligeiramente até o boteco de Seu João.
Sapiêncio ficou ali ainda por um bom tempo, voltando a fitar curioso o galho onde estivera, e as pessoas que por ali passavam e já conheciam o mendigo de outros encontros, se perguntavam o que se passava dentro daquela mente peculiar, especialmente por vê-lo na já conhecida pose de pensador fitando concentradamente um galho de árvore.
- SAPIÊNCIO, SEU TAGARELA MENTECAPTO!!!
A voz grossa ecoou pelos quatro cantos da praça, e o mendigo não teria dúvida em qualquer dia do ano em dizer a quem pertencia se alguém lhe perguntasse. Olhou então em direção ao boteco de Seu João, já esperando ver a carranca tomada de raiva do dono do bar, e não teve surpresa alguma ao perceber que de fato era ele, vermelho como um pimentão, correndo em sua direção com uma enorme vassoura na mão.
- Ai, meu traseiro magrinho. – Lamentou Sapiêncio, antes de começar a correr pela praça com Seu João em seu encalço.
- Cachorro! Vou ensinar a você como se deve guardar segredo!!!
- Seu João, eu não fiz por mal. – Gritou o mendigo magricelo, enquanto corria pela praça sob os olhares e sorrisos dos demais, escapando a cada instante das pancadas que o irritado dono do boteco tentava dar.
- Não me venha com desculpas, seu ignóbil! Vou varrer de uma vez esse traseiro magro para fora dessa praça, seu infeliz da língua frouxa!
E assim terminou o debate sobre os julgamentos, com Sapiêncio sendo condenado por Seu João a uma boa sova por não saber conter a língua, o que garantiu o divertimento dos passantes, que viam a curiosa cena do mendigo magricela correndo do atarracado e mau humorado dono do Boteco e de sua impiedosa vassoura.
Mas não pense que depois dessa Sapiêncio correu de vez da praça. Ele vai voltar, logo, logo, se DEUS quiser, para com sua loucura ensinar um pouco sobre a loucura das outras pessoas... e claro, também para tirar a paciência e o juízo delas nesse processo.
Dia de Trabalho
Seus olhos abriram lentamente, nada vislumbrando diante de si, dando-lhe a impressão de que ainda não deixara por completo o mundo de devaneios em que estivera um segundo antes, enquanto no caos ordenado de sua mente as imagens se revertiam em um sonho inquieto e incômodo, que servira mais para turbar seu descanso do que propriamente para preservá-lo.
Apesar da quase que completa falta de visão, o incômodo que sentiu espalhando-se por suas costas deu-lhe um novo senso de realidade, acusando que estava deitado no velho colchão desconfortável em que se debruçava diariamente na tentativa de reaver um pouco da energia que o mundo impiedosamente lhe sugava com a voracidade de um predador que ataca sua presa sem dar-lhe oportunidade de fuga.
Com o incômodo das costas se espalhando por seu corpo ele fez uma careta enquanto forçava os olhos para afastar o véu do sono, vislumbrando pela primeira vez os detalhes de seu simples quarto, que a penumbra do início da manhã começava a destacar de segundo a segundo conforme os raios de sol que anunciavam a chegada de um novo dia se espalhavam pelo mundo lá fora.
Uma nova manhã, uma novo dia, um novo caminho a ser traçado para fazer o mesmo que vinha fazendo desde que sua mente cansada lhe permitia lembrar-se. Com um esforço que lhe pareceu hercúleo ele impulsionou-se sobre o colchão desconfortável, soerguendo-se em meio à claridade débil que ainda lutava com a escuridão pelo domínio daquele simples aposento, escutando a cada movimento os discretos estalos que seu corpo dava conforme avançava naquele processo incômodo de sair de um sono que não cumprira seu papel de restaurar-lhe as forças quase que inteiramente exauridas.
Apoiou-se ao lado da cama, encostando os pés cansados no chão gelado, sentindo o calafrio resultante atravessando-lhe o corpo e instigando os poros de sua pele, que reagiram formando pequenos montículos pela extensão de seus braços. Esfregou os olhos numa última tentativa de afastar o sono e convencer a própria mente de que teria de levantar-se para encarar mais um dia de trabalho árduo e extenuante, algo que por mais que o consumisse, deveria ser feito, se quisesse continuar a ter sobre sua cabeça aquele teto, e sob seu corpo aquela cama, por mais simples e desconfortáveis que fossem.
Ergueu-se com o peso do cansaço recaindo sobre sua mente, sobre seu corpo, sobre sua alma, e com a coragem que a necessidade dá ao homem jogou-se de uma vez no mundo dos despertos para encarar a realidade dos que nele vivem, dos que nele sobrevivem. Jogou na barriga o pouco que compunha seu parco café, suficiente para enganar o estômago, mas não para burlar a fraqueza que há muito chegara e não tinha momento para ir embora, como uma visita indesejada que chega e faz-se presente sem data para livrar de sua incômoda presença o anfitrião que dela quer ver-se livre.
Deixou para trás a casa velha, simples, que parecia manter-se de pé com o esforço hercúleo inerente àqueles que não aceitam que seu tempo chegou ao fim, e encarou o frio do mundo lá fora, que cortante e invasivo penetrava-lhe as vestes puídas e gastas para ultrapassar a barreira de sua pele seca e enrugada, tocando-lhe os ossos doloridos e consumidos pelos anos.
Na rua esperou a condução, fincado ao lado de tantos outros que se assemelhavam a ele, como cópias reproduzidas de um homem cansado e consumido, cada um carregando suas próprias dores, suas próprias frustrações, sua própria história cheia de exaustão. Tão diferentes e ao mesmo tempo tão semelhantes em seus semblantes extenuados e desolados.
Subiu na condução igualmente velha e desgastada, que rangia e tremia a cada metro vencido, como se estivesse se queixando de levar aqueles homens que a ela tanto se assemelhavam, conduzindo-os ao destino que esgotaria suas forças, assim como eles esgotavam as dela naquele instante.
Chegou ao trabalho, descendo do ônibus velho e queixoso para deparar-se com o gigante jovem, ainda por ser terminado que ostentava seu colossal esqueleto de metal e concreto, erguendo sua extensão para o céu como uma ponte que se estende em direção ao firmamento. Olhou demoradamente para cada bloco, para cada andar, para cada cômodo que construiria para ali nunca habitar, para sequer ter permitida sua entrada naquele lugar. Seria mais um prédio novo em um mundo de tantas coisas velhas, como ele, como sua casa, como seus dias cinzentos.
Subiu andar por andar, trocando sua roupa velha e puída pelo uniforme grosso e usado, pondo em sua cabeça cansada um capacete que recairia sobre sua fronte perturbada, e tal qual um autômato, lançou-se ao trabalho, sem fazer perguntas, sem buscar respostas, sem dar tempo ao corpo e à mente para que permitissem que o cansaço já tão presente se mostrasse ainda maior do que já era.
Sob o sol trabalhou, envolto pelo frio cortante que no alto do mundo se mostrava ainda mais voraz, ainda mais faminto por seus ossos e suas forças. Em meio à poeira, em meio ao barulho, em meio aos respingos de cimento que se grudavam em sua pele e engrossavam suas mãos já tão calejadas pela vida se manteve incólume, abraçando resiliente o labor que lhe esgotava.
As horas passaram, consumindo lentamente suas forças, esgotando aos poucos suas reservas, desgastando ainda mais aquele corpo tomado de exaustão. Comeu pouco, pensou pouco, sonhou pouco, trabalhou muito, olhando do alto as pessoas que lá embaixo seguiam suas rotinas sem sequer imaginarem que lá em cima havia alguém com tanto a oferecer, mas a quem tão pouco era oferecido.
Ali, pelo tempo de um instante sentiu que era alguém mais, que estava cima, que estava no alto, que se aproximava um pouco mais do céu, e por alguns segundos permitiu-se sonhar com as ilusões que provavelmente jamais sairiam da mente que se ocultava abaixo daquele capacete de construção, abaixo daquele firmamento que mesclava o azul acinzentado com os tons rosas e alaranjados pintados pelo ocaso que se aproximava.
Mas o pouco que sonhara acordado foi logo interrompido pelo grito estridente do alarme que sinalizava que já estava na hora de partir, como um prévio aviso de que ali ele era apenas um operário, e que nem mesmo naquela condição lhe era permitida a permanência naquele espaço, assim como não o seria quando o último detalhe fosse concluído para abrigar pessoas que jamais pensariam nele, ou que sequer cogitariam que existia.
Trocou o uniforme gasto pelas roupas velhas, carregando nos olhos vermelhos a poeira da construção, levando na pele a aspereza que os calos marcavam, sentindo impregnado no nariz o cheiro do cimento e do suor que derramara enquanto construía aquele prédio, ao mesmo tempo em que desconstruía o seu corpo cansado e o seu espírito extenuado.
Pegou a condução, que gemeu enquanto a muito custo vencia metro a metro o caminho percorrido pelas ruas esburacadas da cidade que banhada pelo começo da noite exalava um cheiro ocre de suor, lixo e combustível, em uma mistura que parecia já estar impregnada em seu corpo e sua alma. Ponto a ponto, um a um seus gêmeos idênticos desceram, caminhando em direção às suas casas tal qual zumbis desprovidos de esperanças e sentimentos.
E assim também ele o fez. Andou e andou, pisando lentamente o asfalto velho com seus pés fatigados, vencendo aos poucos os últimos metros do caminho, como o fizera a condução queixosa que o carregou barulhenta e estridente pelas ruas da cidade velha. Andou e andou até chegar à sua pequena casa, que em nada se assemelhava ao prédio colossal e novo que construía com o esgotamento de suas forças.
Ali entrou, fechando atrás de si a porta que já ameaçava desprender-se das dobradiças, imaginando o quanto deveria tirar de seu parco salário para consertá-la, até resolver que a manteria daquela forma, descrente de que alguém acharia que havia ali dentro algo para dele ser retirado. Na casa entrou, livrou-se da roupa gasta, lavou-se da poeira da exaustão, consumiu o parco alimento que serviria apenas para enganar sua barriga pelas próximas horas de um sono escuro e vazio, onde nem mesmo se permitia sonhar, tamanho era seu quebrantamento.
A noite avançou, empurrando-o para a cama antiga e desconfortável que não lhe daria o descanso de que precisava, mas ainda assim lhe proporcionaria algum repouso, por mínimo que fosse, e naquele instante, em meio a toda a fadiga, em sua simplicidade sentiu-se abençoado e agradeceu, porque o pouco que possuía era mais do que muitos sequer sonhavam em ter.
E com aquele pensamento, o cansaço lhe deu algum espaço, e ele permitiu-se despencar em um sono que duraria horas, mas que pareceria ter durado apenas alguns minutos. Deitou-se e dormiu, sem ter tempo sequer de sonhar acordado ou dormindo com a esperança de dias melhores, porque sabia que na manhã seguinte tudo se repetiria, tudo se renovaria, tudo o consumiria em mais um dia de trabalho.
Em mais um dia de trabalho.
Encontro Inusitado
Is everybody in? Is everybody in? Is everybody in? The ceremony is about to begin.
As palavras soaram em seus ouvidos na voz inconfundível que ouvira pela primeira vez aos dezesseis anos, e que desde então nunca parara de escutar. Chegava como um chamado, uma convocação, provocativa e insinuante para convidar aqueles que a ouviam ao início de uma cerimônia que por vezes levava ao transe, e por vezes a uma euforia quase incontrolável... a música, a poesia, o rock n’ roll.
Sentado na beira da praia, sentindo a brisa tocando seu rosto e a areia seca e ao mesmo tempo sedosa cobrindo-lhe os pés, ele fitava a infinitude do mar e o eterno balé das ondas, que bailavam em seu ir e vir ao som da suave canção composta pelo ruído da água espumante quebrando na arrebentação.
A ela se mesclava a música que fluía dos fones encaixados em seus ouvidos atentos, onde após a convocação da voz melodiosa seguiu-se uma batida oca de bateria, acompanhada por uma sequência de acordes de teclado que fluíam de uma forma sensual enquanto a guitarra dissonante juntava-se a elas, trazendo consigo a assinatura inconfundível de um som que ficara marcado no tempo.
Naquele dia de sol em que sentado na areia da praia divisava o oceano diante de si, ele já não tinha dezesseis anos. Não, mais do que o dobro daquele tempo já havia se passado, e não era mais um garoto magricelo de calças rasgadas e blusas escuras que ostentavam os nomes de suas bandas favoritas. Os brincos que tinham enchido suas orelhas há muito haviam sido guardados, deixando para trás apenas as marcas quase imperceptíveis de uma época que agora parecia ter acontecido em outra vida.
Os cabelos revoltos tinham dado lugar a um corte comportado, quase militar, e a barba, agora aparada, já começava a ostentar os fios brancos que a cada dia pareciam multiplicar-se mais e mais, como pequenas e pálidas estrelas que surgem na escuridão do céu noturno. As roupas já não eram aquelas, ditas largadas, que por muitos eram consideradas trapos ao invés de vestimentas. Vestia ali uma bermuda simples, comum, e uma blusa casual que deixava à mostra no braço uma das tatuagens que possuía.
Numa das mãos um smartphone, de onde soava a música que atravessava os fones, atravessava seus ouvidos... atravessava as barreiras do tempo. Na outra, a cerveja gelada que levara para saborear naquele sábado ensolarado, sentindo o cheiro do mar entrando por seu nariz, e o som inconfundível adentrando pelos recônditos de sua mente. Já não tinha dezesseis anos, mas a cada acorde que lhe tocava o sentimento parecia ser o mesmo que o invadira mais de vinte anos antes, quando os ouvira pela primeira vez.
Enquanto escutava a música ele fechou os olhos, saboreando cada uma daquelas sensações, como se as sentisse pela primeira vez. O som era estranho, alguns poderiam dizer. Batidas de uma bateria acelerada e cheia de ritmo, mesclando jazz, blues e música latina, com traço de bossa nova que repentinamente convertiam-se em violentas pancadas do bom e velho rock n’ roll.
Junto a elas, fluíam doces e hipnóticos os sons de um teclado que ora trajava-se de uma roupagem de límpidas gotas cristalinas ressoando pelos ouvidos de quem as escutava, ora revestia-se de uma aura misteriosa que parecia surgir dos mais profundos sonhos orientais, que enlaçavam e carregavam o ouvinte em devaneios e transes em que podia-se dizer que via os sons, e sentia as cores.
Unindo-se àquela reunião, o ruído de uma guitarra elétrica que trazia os ecos de séculos de música flamenca, por vezes misturada a cítaras indianas que com seus acordes tinha atravessado os milênios pelas sendas do tempo, até converterem-se em acordes dedilhados por um jovem tímido que expulsava sua insegurança nas ondas que irradiavam das cordas vibrantes daquele instrumento.
Mas faltava algo. Um elemento, o último ingrediente que traria ao prato o tempero inconfundível que o destacava dos demais, ou como diriam alguns, o molho secreto. Faltava o atrevimento, a provocação, a timidez transmudada em libertinagem, a inocência culpada que carregava o olhar e a voz do herói que ao mesmo tempo era vilão. Is everybody in? The ceremony is about to begin.
A voz rouca e melodiosa soou novamente, mesclando-se àquele som de instrumentos que se metamorfoseavam-se em algo inconfundível, nunca feito antes, pouco imitado depois. Sim, a música era estranha, alguns diriam. Por vezes perturbadora, outros poderiam afirmar. Sombria e ao mesmo tempo límpida e cristalina. Pesada como a noite, e leve como a manhã. Dois extremos que se cruzavam naquelas canções. Yin-Yang nos acordes de uma melodia.
Não, não era uma música comum. Mas o que é mais saboroso e atraente do que tudo aquilo que foge ao ordinário? Ao igual? Ao mais do mesmo?
Enquanto pensava naquelas coisas, devaneando acordado ele abriu os olhos e correu a vista por aquela praia, numa manhã de 03 de julho de 2021. Para a maioria aquela data não queria dizer nada. Para ele e alguns milhares de fãs, simbolizava o dia em que aquela voz provocadora calara-se para sempre, tirando da música incomum que enchia seus ouvidos o tempero secreto que chegava para fechar aquela rica combinação de ingredientes. Naquele dia, fazia cinquenta anos que Jim Morrison, vocalista do The Doors encontrara o seu melhor amigo, “o fim”.
Ou ao menos era o que a maioria das pessoas dizia.
Polêmico, provocador, selvagem, e ao mesmo tempo inocente, sensível e atormentado, James Douglas Morrison marcara seu nome com letras garrafais na história do Rock, juntamente com os demais mosqueteiros, Ray Manzarek, John Densmore e Robbie Krieger, seus companheiros inseparáveis que junto a ele tinha construído um legado que perduraria por anos e anos a fio.
Jim, como era chamado por muitos, ou Jimbo, pelos poucos que com ele se aventuravam em suas noites de bebedeira, seduzira a música com sua poesia, e depois de uma carreira meteórica de alguns anos falecera misteriosamente na cidade das luzes, Paris, na madrugada de 03 de julho de 1971. Com isso entrara para o seleto grupo nominado de “Clube dos 27”, marcado por artistas que naquela mesma idade tinham sucumbido, como Jimmy Hendrix, Janis Joplin, Brian Jones, Kurt Cobain e alguns outros.
Mas sua morte fora desde o início envolta em mistério. Americano, Jim escolhera Paris como sua moradia no fim da vida, com a clara intenção de dar um tempo no Rock ‘n roll para fazer o que mais amava, escrever. Mas sua partida precoce, vista apenas por sua companheira, Pamela Courson, e anunciada ao mundo apenas seis dias após seu falecimento, quando já tinha sido enterrado na presença de algumas poucas pessoas inaugurara a aura de mistério que perduraria sobre o fato pelos anos seguintes.
Anos depois, ao visitar o túmulo do amigo, localizado no célebre cemitério Père-Lanchaise, local de repouso de ícones da literatura e da música, como Oscar Wilde, Honoré de Balzac, Edith Piaf e Frédéric Chopin, o colega de banda de Jim, John Densmore fitou o esquife e duvidou por um momento que Morrison estivesse enterrado ali.
A partir de então lendas e mistérios passaram a surgir, afirmando que Jim Morrison não tinha morrido, mas cansado da fama e entrado no anonimato, como o fizera Arthur Rimbaud, um de seus poetas favoritos, forjando a própria morte e passando a viver como um cidadão comum, longe da loucura que era o complexo mundo das celebridades.
Sob o sol de uma manhã de céu azul e sentindo o cheiro do mar e o toque do vento em seu rosto, ele repassava aquelas informações que já lera e relera em livros biográficos, revistas, reportagens e tudo o que envolvia aquela que era sua banda favorita, enquanto ouvia atentamente os acordes únicos combinados com a voz melodiosa e manhosa que formava a música daquele estranho e mesmo assim tão envolvente quarteto que deixara sua marca no mundo.
Envolto naquelas lembranças e pensamentos ele não percebeu quando um estranho se aproximou, notando sua presença apenas quando o homem já estava ao seu lado. Um tanto alarmado divisou o desconhecido que chegara furtivamente e sentara a alguns metros dele, mas logo afastou, ao menos em parte, a apreensão que sentira com aquela aproximação repentina.
O estranho não parecia representar uma ameaça, apesar de ele saber que não devia jamais julgar um livro pela capa. Era um senhor, na casa dos seus setenta e poucos anos, magro e com a pele branca e enrugada marcada pelo sol. Enquanto o fitava percebeu a careta que o velho fez com o esforço que empreendeu para sentar-se na areia, e por um momento perguntou-se se não deveria oferecer-se para ajuda-lo, mas o questionamento se perdeu como a areia levada pelo vento quando o desconhecido cessou o esforço empreendido e conseguiu alcançar seu objetivo.
O velho tinha um corpo magro, mas aparentemente em forma. Usava uma camiseta branca justa e uma calça jeans surrada, dobrada na altura das canelas, provavelmente para molhar os pés na água do mar sem encharcar o tecido. Curioso, permaneceu a observa-lo, até que os olhos do estranho se encontraram com os seus, e envergonhado ele desviou o olhar.
Notou então que o velho acenava, e além de embaraço aquilo lhe trouxe impaciência. Queria apenas sentar-se na areia e aproveitar um sábado de sol de frente para o mar depois de uma semana dura de trabalho, ouvindo o som de sua banda favorita enquanto devaneava por mundos misteriosos no ambiente oculto de seus pensamentos. Mas agora atraíra a atenção do velho, e como não tinha como praxe ser grosseiro, especialmente com quem alcançara aquela idade, ele afastou o fone de um dos ouvidos e acenou de volta para o desconhecido.
- Pois não? – Perguntou, enquanto o velho o fitava.
- Tem fogo? – Quis saber o desconhecido, e ele percebeu que o estranho segurava um cigarro entre os dedos.
- Desculpe, não fumo. Deixei isso para trás há um bom tempo.
- Uma pena. – Disse o velho. – Para mim, não para você. Na verdade, acho que já deveria ter feito isso há muito tempo.
- Nunca é tarde para isso. – Respondeu, enquanto já se preparava para colocar o fone de volta no ouvido.
- Velhos hábitos são mais difíceis de abandonar quando se tornam sedimentados pelo tempo, meu jovem. – Falou o velho, chamando de volta sua atenção. – Sempre que penso em parar com isso, ouço a voz do cigarro me provocando. “Vamos meu bem, acenda meu fogo”.
O homem parou por um momento com o fone a meio caminho do ouvido, atraído pelas palavras que o velho dissera, achando que já as ouvira em algum lugar, embora não conseguisse lembrar de onde. Fitou o desconhecido por alguns segundos, e o estranho voltou-se para ele e sorriu, guardando o cigarro na carteira logo em seguida. Tinha o rosto marcado por rugas profundas, mas ao mesmo tempo parecia haver uma jovialidade nele, como se ainda mantivesse insistente os resquícios de uma juventude há muito deixada para trás.
Os cabelos eram quase todos brancos, mantendo ainda alguns fios cinzentos que teimavam em não ceder à passagem do tempo. Eram levemente grandes, caindo um pouco abaixo das orelhas do estranho, que se destacavam junto ao queixo magro coberto por uma barba nem muito rala e nem muito vasta, mas igualmente branca.
Os olhos eram levemente cobertos pelas pálpebras que caíam puxadas pelo peso da idade, e apesar de cinzentos, pareciam conter uma espécie de faísca que denotava a mesma jovialidade que se ocultava no rosto enrugado. Mas foi o sorriso que mais chamou a atenção do homem. Era o sorriso de quem ainda guardava dentro de si uma criança. Uma criança que por vezes gostava de brincar suavemente, e por outras, de aprontar alguma travessura. Uma “criança selvagem”.
- Um dia você vai entender. Ainda é um garoto. – Falou o velho, respirando profundamente o ar marítimo que se acercava de ambos e parecendo sentir um sincero prazer com aquilo.
- Não sou tão jovem. Na verdade já estou perto dos quarenta. E entendo bem o que quer dizer.
- Tem praticamente a metade da minha idade rapaz, então, pode dizer que ainda é bem jovem. – E olhou para o mais novo dando aquele sorriso despretensioso que carregava uma espécie de magnetismo. - Posso perguntar o que está ouvindo? Quer dizer, se não for incomodar, não quero me intrometer.
- Não, não. – Respondeu o mais jovem, sentindo-se ceder, mesmo que sua intenção primária naquele dia fosse apenas sentar na areia e fitar o mar tomando uma cerveja enquanto escutava sua banda favorita. Havia algo no velho que a cada segundo que passava o impedia mais de fazer aquilo. – Não está incomodando. E estou ouvindo o The Doors, conhece?
- Ah, sim, conheço. Uma boa banda, com um som estranho, confesso, mas ainda assim muito boa.
- Acha o som deles estranho?
- Um pouco, não acha? Mas no bom sentido, afinal, qual a graça de ser normal, especialmente quando vivemos em “dias estranhos”? Além disso, não se espante, meu jovem, mas todos nós temos nossas esquisitices. “As pessoas são estranhas”, cada uma a seu modo.
Ao ouvir aquilo o mais moço sentiu repetir-se a sensação que tivera momentos antes, embora não soubesse definir o que era, e já envolvido pelo magnetismo do velho desistiu de sua ideia de permanecer solitário naquele fim de manhã ensolarado. Ao invés de recolocar o fone que tirara do ouvido, enrolou-o na mão e vasculhou o cooler que estava ao seu lado, buscando outra cerveja para molhar a garganta em meio ao calor daquele dia.
- Cerveja? – Ofereceu ao velho, enquanto segurava uma garrafa na mão.
- Não, obrigado. “Acordei essa manhã e tomei uma cerveja” mais cedo, o que já é o bastante. Bebi muito quando era mais jovem, e agora busco dosar. William Blake dizia que “os caminhos do excesso levam ao palácio da sabedoria”. Bem, acho que fiquei um pouco mais sábio depois dos males causados pelos meus exageros, e agora procuro evita-los. Além disso, de maus hábitos já me basta o cigarro, e não quero “atravessar para o outro lado” tão cedo.
- Poucas pessoas querem.
- E outras almejam isso. Existem aqueles que desejam a morte, e outros que amam a vida, cada um faz a sua escolha.
- Pelo visto você faz parte do segundo grupo.
- Hoje em dia sim. Mas já integrei o primeiro, em uma época turbulenta. Já desejei a morte, mas hoje amo a vida, e garanto que a sensação é bem melhor agora. Ame a vida, rapaz, curta, aproveite, ou como costumo dizer, “ame-a loucamente”.
- É um bom slogan. – Disse o mais jovem, tomando um gole de sua cerveja. – E uma excelente forma de viver a vida.
- Pois é. Daria até nome de música. – Falou o velho, piscando um olho para seu interlocutor. – A vida é rápida como a duração de uma música, e por isso devemos ouvir e aproveitar cada acorde dela, porque “quando a música acabar”, não se poderá ouvi-la novamente.
- Entendo o que diz. “O futuro é incerto, e o fim está sempre por perto”.
- E como está, garoto. E como está. – O velho parou um pouco para observar o mar, parecendo saborear aquele pensamento, e depois de alguns segundos voltou a falar. - Não vem muito por aqui, não é garoto? Nunca o vi por essas paragens.
- Venho poucas vezes. O que é uma pena, dada a beleza desse lugar.
- Concordo plenamente. E o que o trouxe aqui nesse dia? A simples vontade de tomar uma cerveja na praia em um dia de sol?
- Sim... e não. Digo, não apenas isso. Também vim relaxar um pouco, ouvindo uma boa música e saboreando uma cerveja gelada. Além disso... – E parou, como se tivesse desistido de dizer o que restava a ser dito.
- Além disso? – Encorajou o velho.
- Nada. Esqueça. Vai parecer bobagem. Uma tolice, especialmente para alguém da sua idade.
- Tolice é achar que todos são sábios. Nessa vida todos estamos no mesmo navio, meu jovem. Um “navio de tolos”. Então, que mal há em falar alguma tolice? Desde que não fira ninguém, claro.
- Bem... vim hoje porque, além de estar um dia lindo, quis prestar uma homenagem a uma pessoa.
- Algum familiar?
- Não. Na verdade, sequer o conheci. Ao menos pessoalmente.
- Fala dessa pessoa como se ela já não estivesse mais aqui.
- E não está. Se foi há muito tempo. Na verdade, hoje fazem exatos cinquenta anos de sua morte.
- Uau! – Exclamou o velho, depois de soltar um longo assobio. – Cinquenta anos! Uma vida inteira. Cinquenta anos atrás eu era apenas um moleque, por assim dizer. Acho que era apenas um jovem no alto dos meus vinte e sete anos. – As últimas palavras do estranho lhe causaram novamente a estranha sensação que sentira outras vezes, mas antes que pudesse pensar mais sobre aquele sentimento, o homem continuou. – Quem era essa pessoa? Se me permite a intromissão. Algum parente que não chegou a conhecer? Seu avô, por exemplo?
- Não, não. É exatamente aí que reside a tolice de que lhe falei. Estou aqui homenageando um cantor que sequer conheci, e que já morreu há cinquenta anos. Isso vindo de um homem às portas de se tornar um quarentão não lhe soa um tanto tolo? – E sorriu para o velho, um pouco sem jeito.
- “Navio dos tolos, garoto”. Na verdade, reconhecer-se como um é o mais perto que podemos chegar da tão almejada sabedoria. Mas não se acanhe. Sei bem como é ser um fã, um admirador da obra de alguém. Isso não é motivo para vergonha, desde que não se descabele e arranque as roupas, como se o mundo fosse acabar no próximo segundo. – E sorriu para o mais novo. – Ou desde que não abdique de viver sua vida para perder tempo acompanhando os factoides sobre tudo o que a pessoa que admira faz. Eu tive meus momentos de fã. Gostava demais de Elvis e Sinatra, e vez por outro faço um tributo pessoal. Nada exagerado, mas apenas eu e as lembranças dessas pessoas que nunca conheci pessoalmente, mas que sempre admirei. Uma homenagem como essa que faz agora.
- Concordo com você. A admiração que guardamos por essas pessoas deve ser como a que temos por qualquer outra, pública ou anônima. Particularmente acho sem sentido seguir cegamente essas celebridades e ter ataques histéricos quando se encontra com elas. São humanos, como qualquer outro, e aqui para nós, acho que por vezes acabam sendo consumidas pela fama que as circunda. Acredito que boa parte delas se incomoda com esse tipo de reação dos fãs.
- Passam de deuses de carne e osso para objetos do desejo de quem os cultua, e assim permanecem, alternando entre tais posições até que caem do pedestal e acordam feridos, com o tombo que levaram.
- Isso deve consumir a calma e a sanidade de qualquer pessoa. Ao menos as que possuem alguma sensibilidade para se incomodarem com tal fato.
- E como consome, garoto. – Disse o velho laconicamente, como se estivesse perdido em pensamentos, revisitando algum lugar de seu passado. – E como consome.
- Como disse?
- Nada. – Respondeu, dando-se conta que devaneara momentaneamente. - Só estava pensando em voz alta. Mas me diga, já que estamos falando nisso, o que faria se um dia encontrasse com uma dessas celebridades que admira? Por exemplo, o que faria se encontrasse com os Doors?
- Com os remanescentes? Bem, no máximo, se muito, chegaria perto e discretamente pediria um autógrafo, ou uma foto, se possível.
- Nada de ataques histéricos? – Perguntou, com o sorriso que entregava um pouco da criança que havia naquele homem de cabelos brancos.
- Discreto como vos falo agora. Uma pena que um encontro como esse não é possível. Pelo menos não com todos. Jim Morrison zarpou em seu “barco de cristal” há décadas, e Ray Manzarek se foi alguns anos atrás.
- É, Ray se foi. Uma pena mesmo. – O sorriso infantil sumiu do rosto do velho repentinamente, e a sombra que recaiu em sua face pareceu acentuar as rugas que por ela se espalhavam, como se uma nuvem de tristeza tivesse coberto momentaneamente a alegria de um dia ensolarado. Mas com a mesma velocidade que surgiu ela dissipou-se, e o velho o encarou com um olhar curioso. – Supondo que um encontro como esse fosse possível... melhor dizendo, supondo que pudesse se encontrar com Jim Morrison, o que diria a ele?
- Teria um ataque histérico e partiria para cima dele. – Disse o mais novo, com a ironia estampada na voz, o que arrancou um meio sorriso do velho que o fitava.
- Falando sério, garoto. Se soubesse que ele não morreu, como alguns malucos dizem por aí, e tivesse a oportunidade de lhe fazer uma pergunta, qual seria ela?
O mais jovem ficou em silêncio e passou a fitar o ir e vir das ondas que brilhavam sob aquele sol que reinava num céu azul sem nuvens, e assim permaneceu por alguns segundos, ponderando sobre a pergunta de seu interlocutor. Então virou-se para ele, e encarando aqueles olhos, donos de um magnetismo que poucas vezes vira na vida, respondeu:
- Eu faria uma pergunta que acabei formulando com o passar do tempo, depois de muito pensar sobre os dramas pessoais pelos quais ele tinha passado. Se Jim Morrison estivesse vivo, eu lhe perguntaria se ele finalmente encontrara a paz de que tanto precisava.
Ali naquela praia os dois homens permaneceram fitando um ao outro, sem dizer palavra, tendo nos ouvidos apenas o cantarolar da brisa, que fazia um dueto com o som das ondas quebrando na arrebentação. O velho então abandonou o olhar sério que adotara após ouvir aquelas palavras, e lentamente construiu um sorriso naquele rosto enrugado. Um sorriso que pareceu fazer aquela face brilhar.
- É uma ótima pergunta, garoto. Uma ótima pergunta.
- O que acha que ele responderia?
O velho virou-se e voltou a fitar o mar, a areia, e todo o cenário que se descortinava à frente deles, que parecia ter saído de uma pintura criada pelas mãos de Um Artista Perfeito. Então lentamente balançou a cabeça, para cima e para baixo, como se estivesse concordando com algo que estava dizendo a si mesmo nos recônditos de sua mente.
- Acho que diria que sim. Que acabou encontrando a paz que tanto queria.
- Que deixou de ser um dos “viajantes na tormenta”.
- Que deixou de ser um dos “viajantes na tormenta”. – Concordou o velho.
- Um brinde a isso então.
- Um brinde simbólico. Já bebi minha cota hoje, e agora tenho que sair dirigindo por aí. Se beber demais não terei como “manter os olhos na estrada e as mãos sobre o volante”.
- Tão rápido? – Lamentou o mais novo, que tinha começado a gostar da conversa com aquele estranho velho.
- O tempo não sossega, rapaz. E esse velho também não. Não consigo ficar parado muito tempo em um lugar só. Mas não se preocupe. Talvez tenhamos uma chance de nos esbarrar novamente por aí. Nessa praia, na “rua do amor”, ou para tomar um drinque num “Whiskey Bar”.
- Nunca se sabe. – Brincou o mais novo, levantando-se para ajudar o velho a erguer-se.
- Nunca se sabe. – Respondeu o outro.
O velho então acenou para o jovem, e saiu caminhando com um passo lento e despreocupado, a blusa movendo-se discretamente ao sabor da brisa, enquanto que os cabelos brancos esvoaçavam sobre aquela cabeça despreocupada. Dirigiu-se à calçada e parou ao lado de um dodge clássico, azul, um tipo que quase não se via mais por ali. Então o mais novo lembrou-se de algo que não passara por sua mente em momento algum durante a conversa que tinham mantido, e acenou para o estranho, que se preparava para entrar no carro.
- Ei. Amigo. Acabei de perceber que não nos apresentamos formalmente.
- Qual o seu nome, garoto? – Perguntou o estranho, depois de ficar em silêncio por alguns segundos.
- Marcílio. – Respondeu o quase quarentão, com o fone de ouvido ainda enrolado em uma das mãos. – E o seu?
O velho então sorriu, e naquele momento, mesmo em meio às rugas, à barba e aos cabelos brancos, mesmo com as marcas deixadas pelo tempo acercando-se dele, algo revelou-se naquele sorriso provocador e ao mesmo tempo infantil, e o mais jovem lembrou imediatamente do rosto que vira tantas vezes em vídeos e fotografias, mas nunca pessoalmente. Uma face que parecia encaixar-se plenamente com a do estranho que ria para ele, e que com uma voz que lhe soou estranhamente familiar, respondeu:
- Jim.
E ainda com aquele sorriso no rosto e com os olhos azuis brilhando sob um sol fulgurante em um céu cristalino, o velho entrou no carro, acenou para seu interlocutor e seguiu adiante, deixando para trás um rapaz boquiaberto, que não queria acreditar no que acabara de acontecer.
Ou talvez quisesse.
Sim, talvez quisesse.
E enquanto olhava o carro indo embora, uma voz melodiosa soava do fone pendurado em sua mão.
It hurts to set you free, But you'll never follow me. The end of laughter and soft lies.
The end of nights we tried to die.
This is the end.
São João
As chamas dançavam, movendo-se animadas ao sabor do vento que livre viajava em meio àquela noite estrelada. Noite limpa em que no alto um tapete de estrelas se desenrolava no céu, estendendo-se pelo infinito a perder de vista, enquanto abaixo delas as cores se espalhavam pelo ambiente enchendo de matizes os lares e os olhos daqueles que as admiravam.
Nas ruas repletas de gente a alegria refulgia, ecoando ao redor com o som da música e dos sorrisos que se misturavam ao barulho dos fogos e dos gritos animados da multidão repleta de corações aquecidos e acelerados, que a tudo vislumbravam e aproveitavam cada um à sua maneira, revivendo uma vez mais a satisfação de estarem em meio àquela noite que por todos era tão aguardada.
Bandeirolas se desenrolavam na mais variadas matizes, unidas em uma trilha sem fim que ia de uma casa à outra, de uma rua à outra, ganhando tonalidades mais fortes conforme as luzes das fogueiras as tocavam, avivando as cores que enchiam os olhos dos passantes e mesclando-se ao restante daquela decoração tão única, só vista em uma época como aquela.
Pelo chão de terra batida, de antigas pedras de calçamento que ali estavam há um tempo que já não podia se mensurado, ávidos pés de crianças corriam enquanto o som de suas gargalhadas enchia o ar, dividindo espaço com o barulho dos traques, dos vulcões e das bombas que reverberavam para logo em seguida encontrar o eco da música que saía do palhoção erguido no centro da praça, se espalhando pelo ar e pelos ouvidos das pessoas, que hipnotizadas pela música seguiam os tons em um transe de felicidade, tal qual os jovens que um dia foram carregados pelo flautista de Hamelin.
Em seus ouvidos atentos e corações acelerados o som choroso e ao mesmo tempo cativante da sanfona brincava, arrancado pelo dedilhado de um sanfoneiro apaixonado, enquanto o trinintar do triângulo, límpido e cristalino unia-se ao compasso da zabumba, que batia no mesmo ritmo da pulsação dos casais que se deixavam contagiar por toda aquela animação.
A senhora que acompanhava tudo de uma cadeira alocada no alpendre de sua pequena casa, com um sorriso carregado das lembranças que guardara naqueles anos de vivência, mexendo discretamente a silhueta coberta com um vestido simples e um agasalho, deixando-se levar pela animação da música como o fizera tantas vezes antes.
O velho ao lado dela, que enrolava seu cigarro de palha, batendo distraidamente um pé no mesmo ritmo da música, marcando o compasso com o solado grosso da bota gasta que calçava, lembrando com um brilho nos olhos acinzentados dos São Joãos de seu tempo de mocidade.
Ali perto os homens riam alto na bodega, cantando e contando causos que só o mais ingênuo ouvinte acharia que fossem verdadeiros, enquanto entornavam doses e mais doses de cachaça e quentão, que com seu calor aqueciam ainda mais as barrigas e os imaginários daqueles criativos contadores de histórias.
Do outro lado da rua, as moças solteiras olhavam ansiosas para os rapazes que tinham vestido suas melhores roupas para encontra-las naquela noite, dando a eles sorrisos tímidos e olhares furtivos enquanto aguardavam ansiosamente pelo par que surgiria para convidá-las a uma animada dança no palhoção, enquanto os jovens entravam um a um na bodega para virar a dose que atiçaria a coragem para o convite que desejavam fazer àquelas damas.
Mais adiante, mesas e mais mesas eram tomadas por uma quase indizível variedade de comidas, que atiçavam os olhos com suas cores e as barrigas com seus sabores. Pamonhas, canjicas, pés de moleque, milhos assados e cozidos, cuscuz, paçoca, e mais um sem número de atrações que eram visitadas constantemente por aqueles que se deliciavam com aqueles alimentos, fazendo plantão naquelas mesas com o mesmo afinco com que os apaixonados pela dança não deixavam por motivo algum o palhoção onde o forró rolava solto.
E as fogueiras queimavam, as estrelas brilhavam, os fogos estalavam, os risos ecoavam, a comida deliciava e a música aumentava, parando apenas pelo tempo que os músicos levavam para bebericar uma dose da cachaça que os mantinha acesos em meio àquela animação.
Lá de seu canto, com o cigarrinho enrolado e pousado nos dedos calejados pelos anos de labuta na lavoura o velho fitava tudo com seus olhos acinzentados, dando um sorriso de meia boca ao ver toda aquela animação, ouvindo com a mesma atenção a música que enlaçava seu coração.
O velho correu a vista pelo lugar enfeitado, e achou curiosa a visão de um matuto que com a cabeça cheia de aguardente subia e descia animado ao sabor da música, parecendo possuir molas no lugar das pernas, tal qual um cossaco que dança animado um pagode russo naquele cai e não cai, indo e vindo atiçado, em um eterno vai e não vai.
Ali perto viu o palhoção lotado de gente, não deixando de ouvir quando um dançarino frustrado passou irritado em direção à bodega, reclamando enquanto dizia “quem tá fora quer entrar, mas quem tá dentro não sai”, sendo recebido por um amigo de copo na mão, que rindo alto dizia “Tá é danado de bom, tá é danado de bom meu compade, tá é danado de bom, forrozinho bonitinho, gostosinho, safadinho, danado de bom”.
O velho sorriu ao ouvir aquilo, deu uma breve tragada e voltou a correr os olhos pelo lugar, enquanto a música corria pelo ar. Viu um grupo de amigas, e em meio a elas uma chorava, se lamuriando enquanto falava em meio às lágrimas, “nem se despediu de mim, já chegou contando as horas, bebeu água e foi-se embora, nem se despediu de mim”.
Mas enquanto uns iam, outros voltavam, e ele não deixou de perceber um velho conhecido seu que com um brilho no olhar chegava na rua com uma trouxa nas costas, depois de ter passado muito tempo fora. “Voltou pro seu aconchego”, pensou consigo, “trazendo na mala bastante saudade”, e disse a si mesmo para lembrar-se de convidar o amigo para um dedo de prosa no dia seguinte, depois que ele aliviasse o cansaço e tivesse um pouco da paz que gostava de ter.
E assim olhava, vendo de tudo um pouco, e de um pouco muito mais. O namorado que pedia a Dona Maria permissão para namorar a sua filha. O matuto solitário que chorava enquanto dizia, lembrando da amada, “quem dera ter você agora, de novo, me amando”. O jovem apaixonado que encantado fazia a anunciação de seu amor para uma linda morena tropicana que usava um vestido estampado de girassol.
Viu também a moça sonhadora que já era famosa na redondeza por só querer, só pensar em namorar, sem saber que na verdade ela só queria um amor, que acabasse o seu sofrer, alguém por quem o “tum, tum” de seu coração pudesse bater, sem mais ser maltratado, sem mais não ter direitos.
Divisou à distância o casal de dançarinos que não conseguira espaço na palhoça, e ali mesmo, no meio da rua bailava, espalhando a poeira pelo ar, e ouviu quando alto ela disse a seu par, “roça meu filho, roça assim, seu corpo em mim”, e seu parceiro roçava, sentindo aquelas perninhas grossas dançando São João na roça.
Ouviu nova algazarra chegando da bodega, e apurou os ouvidos para escutar o que diziam, ouvindo concentrado enquanto um vaqueiro emocionado cantava sua saga comovente, arrancando lágrimas até mesmo do velho mais bruto que ali estava ao dizer ao final qual fora o maior prêmio que DEUS tinha lhe dado.
Viu também um pouco mais perto o casal próximo à burrinha da felicidade, que não se atrasava e chegava ao seu tempo, mostrando a todos que coisa boa mesmo era namorar, e ouviu quando o rapaz disse à sua amada que ela podia vir de mala e cuia, porque em sua casa sobrava amor para dar e vender.
Percebeu então quando o salão silenciou de repente, para logo em seguida ouvir a sanfona chorosa chamar docemente, acompanhada da voz melodiosa do cantador, os amores a olharem para o céu, vendo como ele estava lindo, e lembrou-se que foi numa noite igual àquela que sua velha, que estava ali ao seu lado, tinha lhe dado o seu coração.
Olhou para ela e viu que ainda era uma moça bonita, tal qual no dia que a conhecera, com seus cabelos longos presos em duas tranças caindo pelos ombros em um vestido quadriculado preto e branco, e sorrindo por aquela que fazia seu coração bater mais forte, por ela que era dona de sua cabeça, levantou-se e tirou-a para dançar, como fizera tantos e tantos anos antes, dizendo-lhe no ouvido que era bonita demais.
E assim, com o céu azul em festa eles dançaram grudados, enquanto os balões voavam no ar, o xote e o baião corriam soltos no salão, e ali no terreiro, o olhar dela incendiava o coração apaixonado daquele velho enamorado, que vendo o tapete estrelado que se desenrolava acima deles, deu um beijo na sua velha e sussurrou em seu ouvido...
Olha pro céu meu amor.
Juntos
Sentado solitário na varanda de casa ele divisava o ambiente com um olhar perdido, mantendo na face a expressão de quem estava jogado nas lembranças, caminhando a passos largos pelas sendas do tempo enquanto abria as portas que o permitiam viajar ao passado.
Acima dele, alheias àquele solitário viajante do tempo, estrelas se espalhavam pelo céu escuro da noite, iluminando o firmamento com um brilho milenar que carregava consigo a história de cada uma delas, e que já fora visto por olhos de pessoas que agora eram apenas o eco de uma folha virada no livro das eras.
Mas ali, sozinho e em meio a uma noite fria de inverno ele também estava alheio ao tapete de estrelas que se estendia universo afora, pois naquele momento em sua mente só havia espaço para uma imagem, uma lembrança, uma única beleza, que já não estava ao seu lado, mas se fazia presente em sua memória, como se estivesse estado com ele apenas alguns segundos atrás.
Ao lado da mão recostada na mesa uma taça solitária, quase vazia repousava na superfície, ladeada por uma garrafa de vinho que já ia pela metade. “O vinho preferido dela”, ele pensou, deixando-se constatar, em meio aos devaneios que se acercavam de sua mente, que não havia um segundo cálice ali, como pouco antes houvera. Naquele momento, apenas o dele se fazia presente.
“Não faz muito tempo eram dois”, ele pensou. “O meu, e o dela. Não faz muito tempo atrás, éramos dois. Eu, e ela”.
E com aquilo em mente ele viajou ao passado, assim como o brilho das estrelas viaja por um tempo incontável pelo oceano silencioso do universo até chegar em nosso raio de visão para ser vislumbrado por olhos admirados com o cintilar de sua beleza. Mas em sua viagem no tempo, a beleza que ele viu era outra, uma que ele achava infinitamente maior que a dos astros que se espalhavam pelo infinito.
Era dia dos namorados, e os casais passeavam de mãos dadas, se abraçando, se beijando e trocando declarações de amor eterno, observados à distância por aquele jovem de vinte anos que parecia ser a única pessoa solitária em toda aquela profusão de corações apaixonados. Nas mãos uma rosa repousava, igualmente sozinha, à espera de outras mãos que pudessem recolhê-la. À espera do sorriso que haveria no rosto da pessoa que iria recebê-la. A mesma pessoa que ele olhava à distância, tentando tomar coragem para chegar junto a ela e declarar o segredo que havia em seu coração.
Há meses se conheciam. Há meses dividiam a mesma sala na faculdade, de onde ele tentava conciliar sua atenção entre os assuntos ministrados em aula e os devaneios que tomavam sua mente enquanto sonhava acordado com aquele amor, o que muitas vezes podia ser considerado uma tarefa hercúlea quando se envolvia um coração tão apaixonado como o dele.
Já tinham trocado palavras, já tinham debatido sobre assuntos, chegara até mesmo a suspeitar que houvera um ou dois olhares trocados naquele período, mas por vezes pensava tratar-se apenas do desejo de seu coração pregando peças na lógica de seus pensamentos, fazendo-o imaginar coisas que na realidade não existiam. E por temer não ser correspondido ele mantinha aquele amor recolhido, guardando-o a sete chaves, como um segredo ancestral que se revelado poderia estragar até mesmo o sentimento que levava consigo.
Em certos momentos as palavras tinham chegado às portas de sua boca, ansiosas por serem proferidas, ávidas por chegarem ao único destino para o qual tinham sido criadas, o coração daquela que tanto amava. De termos piegas a poesias cheias de floreios. De declarações rebuscadas a palavras simples, todas elas caminhavam em direção à porta de seus lábios, e em sua mente estava sempre decidido a proferi-las, mas quando o momento certo chegava uma barreira surgia com a mesma rapidez com que a paixão batia no peito, e travadas elas permaneciam no íntimo de seu âmago, assim como aquele amor que carregava sem ser revelado.
Mas naquele dia as coisas tinham que acontecer. Naquela data ele teria de tirar de sua boca e de seu peito o que guardava para entregar a ela, junto com a rosa que tinha em mãos. Não podia deixar escapar uma vez mais o momento que ansiava diariamente que se tornasse real. Naquele dia, teria que escapar do campo dos sonhos para pisar o frio piso da realidade, não importando qual seria o resultado.
Não suportava mais devanear e fantasiar, vivendo constantemente no mundo do “e se?”, sem saber jamais se o que tanto desejava se tornaria realidade ou se desmancharia diante de um não com a mesma rapidez com que um sonho desvanece assim que os olhos são abertos. E assim, levado pela coragem de um coração ansioso e apaixonado ele caminhou na direção dela, mãos suadas apertando a rosa que levava consigo, olhos nervosos que não conseguiam escapar dela, pernas trêmulas que pareciam perder força a cada passo que dava em sua direção.
Caminhava para ela, para o lugar em que sentada ela lia seu livro favorito de poesias, recostada no tronco de uma árvore sob um céu azul em um dia ensolarado. Seus longos cabelos presos em uma trança que caía sobre a pele branca de seu colo, seus olhos cor de âmbar folheando devorando linha a linha os versos dos poemas que lia.
Então, quando já estava perto o bastante para ser percebido, e longe demais para desistir e voltar atrás ele subitamente viu quando aqueles olhos cor de mel desviaram-se por um segundo e encontraram os seus, deixando-o completamente desnorteado enquanto era invadido por uma sensação de vertigem que preguiçosamente subia por cada parte de seu corpo a ponto de deixa-lo frio, quase dormente.
Ainda caminhava quando aquele misto de sensações o invadiu, e com as pernas trêmulas demais para que pudesse sobre elas ter algum controle, tropeçou em um montículo de grama que não viu, porque só tinha olhos para ela, e viu o mundo acelerar de repente enquanto caía exatamente na frente dela, pensando com a velocidade do vento que ninguém jamais deveria ter sustentado no rosto a expressão de bobo que deveria estar externando naquele momento.
E ali, de bruços na frente dela, observado pelos olhos que pareciam extrair suas forças enquanto ao mesmo tempo o enchiam de amor, as palavras que tanto desejara falar ficaram presas novamente em sua boca, e nada mais lhe restou a não ser erguer a mão que carregava a rosa e entrega-la à dona do seu coração, deixando que o gesto dissesse o que seus lábios não sabiam dizer.
E sorriu, quando ela sorriu para ele, e delicadamente pegou a rosa de suas mãos, sentindo o toque breve dos dedos dela nos seus enquanto o mundo ao seu redor parecia parar repentinamente.
Era dia dos namorados, e casais apaixonados passeavam, trocando juras de amor enquanto eram observados por aquele rapaz de vinte e poucos anos que os fitava parecendo não vê-los, porque diante de seus olhos havia apenas a imagem dela. Nas mãos, uma caixa era passada constantemente pelos dedos trêmulos e nervosos daquele jovem, que imaginava os dedos da moça que poderia carregar ou não a aliança que ali havia, tudo a depender da resposta que ela daria ao seu pedido.
Lembrou então do dia que caíra diante dela com uma rosa na mão e palavras retidas na boca. Lembrou-se de como sorrira, de como seus dedos tinham se tocado momentaneamente, e de como dali em diante tudo parecera correr com a naturalidade de algo que já estava escrito, à espera apenas de que cada um deles lesse as linhas grafadas nas páginas daquele livro.
Mas agora estava ali novamente, adentrando e caminhando pelo campo do “e se?”. Ansiando, mesmo antes de perguntar, pela resposta que receberia para o pedido que tinha para fazer. Desde o dia que a vira pela primeira vez sentira no peito a certeza de que ela seria sua companheira de uma vida, e os dias que tinham compartilhado haviam mostrado que o mundo estava apenas esperando que se encontrassem para viver aquele amor.
Mas agora, com o nervosismo batendo à porta enquanto dedos nervosos passavam a pequena caixa de uma mão para a outra, aquela certeza se transformara na dúvida que guardava a incerteza da resposta que tanto esperava. Olhou para o relógio, ansiando para que ela chegasse ao mesmo tempo em que torcia para que não viesse, porque tempo que precede o futuro permite que o sonhador mantenha a esperança de que seu desejo se transforme em realidade.
Então a viu, e o próprio tempo pareceu não congelar, mas reduzir seu caminhar, a fim de assistir ele mesmo, o senhor das eras, o futuro que aquele presente em breve se transmutaria. Enquanto a fitava esqueceu pelo espaço de um segundo o nervosismo que sentia, inebriado por aquela beleza que não deixava de impressioná-lo, e que talvez jamais deixasse de fazê-lo.
Andava em sua direção, e conforme o tempo parecia reduzir o passo, sentiu o coração acelerando no peito, algo que sempre sentia na presença dela, como se aquele amor se renovasse da mesma forma que o sol renova o dia ao despontar no horizonte, trazendo na luz da alvorada o calor e a beleza de uma nova manhã.
Os olhos, os mesmos olhos da cor de âmbar que o aprisionavam com seu magnetismo e que o tinham fitado no dia em que lhe dera a rosa agora sorriam para ele, com a mesma luz e beleza do sorriso dado com a boca delicadamente desenhada que guardava o beijo que fazia seu sangue gelar e ferver ao mesmo tempo, e ele sentiu-se inebriado quando ela sentou-se ao seu lado e tocou sua mão, fazendo com que experimentasse ao mesmo tempo a maciez de sua pele e o doce e envolvente cheiro de seu cabelo.
A mão enfraqueceu, da mesma forma que as pernas que sustentavam seu corpo o tinham feito anos antes, e a caixa escapou, girando lenta e delicadamente por sua perna e caindo ao lado dela, abrindo-se como se tivesse vontade própria, e se o tempo antes reduzira o passo, naquele momento parou, porque viu em seus olhos que ela percebera o seu intento ao olhar para o anel que brilhou sob o sol daquela manhã, e ali ele esperou por sua resposta, como esperara em outra época quando oferecera uma rosa em um dia como aquele.
Era dia dos namorados, e os casais sorriam e conversando em sussurros nos bancos da igreja, ansiosos à espera da convidada principal daquela celebração. Mas a ânsia que sentia nem de longe se comparava à dele, que nervoso aguardava ao lado do altar, olhos apreensivos fitando constantemente a porta da igreja, que se abria revelando as possibilidades de um futuro inteiro que havia pela frente.
Ainda lembrava do dia em que caíra na frente dela com uma rosa na mão e a esperança no peito. Ainda lembrava do dia em que a caixa caíra de sua mão e se abrira diante daqueles olhos da cor de mel, revelando o pedido de casamento que não teve tempo de pronunciar, porque o próprio tempo parecia ter parado naquele momento.
E agora perguntava-se como seria a lembrança do momento que vivia naquele instante, apenas para ter a certeza de que seria como todas as outras que guardava do tempo que passava ao lado dela, memórias cheias do amor que carregava no peito. Então o tempo pareceu parar novamente quando ela surgiu na entrada da igreja, trazendo-lhe a sensação de que a via pela primeira vez, assim como acontecia todas as vezes que a via.
Encantou-se uma vez mais com sua beleza, com o sorriso que brilhava e iluminava o ambiente ao seu redor, com a leveza de seus gestos, com os olhos que o fitavam cheios de amor e expectativa, com o pequeno sinal em seu queixo afilado, com seus longos cabelos que caíam sobre os ombros até tocarem sua cintura fina, e antevendo o futuro que se estendia à frente, ele sentiu uma lágrima rolando-lhe pelo rosto suado e nervoso, à espera do sim pelo qual ansiara desde o dia em que lhe entregara aquela rosa.
Era dia dos namorados, mas não havia casais trocando declarações de amor ali perto. Não estava no jardim em que a ela entregara uma rosa, não estava no parque em que a caixa com a aliança se abrira, não estava na igreja em que tinham se casado no campo em um dia de céu azul e sem nuvens. Estava na varanda de sua casa, sob um oceano de estrelas que brilhava no firmamento, girando sua solitária taça de vinho enquanto as lembranças o visitavam segundo a segundo.
Pensou nela e sentiu saudade, olhando para o lugar ao seu lado, em que tantas vezes ela sentara, e em como sua presença e seu perfume pareciam se espalhar pelo ambiente, como se tivesse estado ali apenas segundos antes. Um jovem velho de sessenta anos sentado sozinho na noite dos namorados.
- Meu reino por seus pensamentos. – Disse ela, aproximando-se de onde ele estava.
- Meu reino pelo seu amor. – Respondeu, virando-se e vendo que ela voltara. Trazia numa mão a taça que sempre acompanhava a sua em noites como aquela, e na outra a bandeja com os frios que fora pegar na cozinha, enquanto ele ficara recordando, naquela noite dos namorados, dos tantos dias que tinham passado juntos.
Ainda estavam ali, os longos cabelos caindo pelos ombros até a cintura, o sinal discreto no queixo afilado, os olhos cor de âmbar com o magnetismo que sempre o prendia, e o sorriso, que parecia brilhar mais que todas as estrelas que se estendiam naquele céu. Um ou outra linha de expressão fora morar naquele rosto, que a ele parecia mais bonito a cada dia que se passava, e por um instante perguntou-se se algum dia deixaria de admirar aquela beleza da mesma forma que a admirava sempre que a encontrava, como se fosse a primeira vez.
- Senti sua falta.
- Fiquei fora apenas por alguns segundos. – Respondeu ela, dando-lhe aquele sorriso que ainda o encantava.
- O tempo não passa da mesma forma quando você está longe, e parece parar quando está ao meu lado, como se ele mesmo quisesse sossegar um pouco em sua eterna caminhada para admirar sua beleza.
- Sempre galanteando com as palavras.
- Teria que fazer isso em algum momento, já que da primeira vez caí mudo na sua frente, e da segunda sequer consegui pedi-la em casamento.
- E da terceira quase não conseguiu dizer o “sim” diante do altar, de tão nervoso que estava. – Brincou ela.
- Por isso mesmo, uma hora eu tinha que começar a falar.
Ela sorriu novamente, e sentou-se ao seu lado naquela noite fria e estrelada. Cobriram-se então nos próprios abraços, brindaram, e ele a beijou, sentindo seu velho coração bater no peito como se fosse jovem novamente. Porque era isso o que o amor que sentia por ela fazia. Se renovava a cada dia, renovando junto aquele sentimento e fazendo com que se sentisse novamente como o jovem que um dia a entregara uma rosa, em um dia dos namorados que ficara no passado.
E em como tinha se sentido em todos os dias dos namorados que com ela vivera desde então.
Feliz, como um jovem apaixonado, em um feliz dia dos namorados.
Certo ou Errado?
Errado? Certo? O que definia a decisão que ela tinha tomado e que estava prestes a ser concretizada, sem possibilidade para que pudesse voltar atrás, sem chance de retorno ou de correção acaso percebesse, depois de ter feito o que pretendia, que não fora aquele o melhor caminho a ser seguido? Aquela dúvida a corroía enquanto entrelaçava dedos nervosos, buscando naqueles movimentos incessantes a resposta que traria alívio à sua consciência.
As perguntas tinham surgido quase que simultaneamente à revelação que virara sua vida de cabeça para baixo, abrindo um abismo abaixo de seus pés no qual ela continuava despencando, sem previsão de resgate ou saída, mas sabendo que mais dia menos dia se depararia com o chão que havia no fim, duro e frio, levando-a a uma realidade da qual não possuía qualquer previsibilidade ou controle.
Em seus poucos anos de vida sempre se gabara de possuir pleno e total controle sobre o que acontecia consigo, sendo dona de suas atitudes e não acreditando em destino ou em uma sina pré-destinada que permeasse seu caminho. Sempre fora responsável por suas próprias decisões, mas agora o peso daquela realidade recaía sobre ela como nunca dantes, obrigando-a a arcar com os resultados de suas escolhas e com o real significado que havia por trás da palavra responsabilidade.
Fora depois do baque inicial daquela notícia, logo após conseguir reunir um mínimo de calma que lhe permitisse alcançar o discernimento necessário para tratar com a situação em que se envolvera, que começara finalmente a entender o que estava acontecendo, e dona desse entendimento, a traçar os possíveis caminhos que teria pela frente.
A primeira decisão com a qual se deparara, e que teria inevitavelmente que tomar seria a de contar ou não às pessoas mais próximas o que tinha acontecido. Em casa, para os pais, sempre fora motivo de orgulho, a garota das notas boas, o exemplo a ser seguido, a menina que se tornaria uma mulher decidida e bem sucedida, quadro que contrastava com a realidade da irmã, que era a ovelha negra da família, aquela que não daria para nada, como era dito em casa por trás da porta fechada do quarto do pai e da mãe.
Mas a realidade chegara dura e impiedosa para mostrar que as coisas não seriam como todos achavam e julgavam que viriam a ser. E ali estava ela, sentada em uma cadeira de uma sala fria, esperando em um ambiente que parecia ser inóspito e sem vida, contrastando com a vida que ela própria carregava na barriga, que dentro em breve se tornaria tão vazia quanto a sensação que a envolvia por estar naquele lugar.
Pensara por dias, semanas no que estava na iminência de fazer, pesando prós e contras, ouvindo amigos mais próximos que guardariam, assim esperava, o segredo que carregava dentro de si, perdendo noites de sono enquanto uma infinidade de perguntas desfilavam por sua mente cansada. Certo ou errado? Era a principal delas, a que nunca deixava de estar em evidência, como um anúncio de neon brilhando em meio a uma noite escura.
Certo ou errado? Se perguntava enquanto pesava seus dezoito anos e o fato de ter acabado de entrar no curso de seus sonhos. Certo ou errado? Desistir de tudo o que planejara para abraçar algo que sequer de longe fora planejado em sua vida. Certo ou errado? Deixar que a vergonha de escapar à expectativa de todos se evidenciasse por causa de alguns minutos de descuido em uma noite de sexo sem proteção. Certo ou errado? Impedir que uma vida surgisse, para que ela mesma não tivesse de enfrentar as dificuldades que surgiriam pelo caminho.
Ouvira um pouco de tudo, e um bocado de todos, pelos menos dos poucos que por ela tinham sido eleitos para saberem do que estava se passando. Lera sobre conceitos de concepção, analisando as diferentes correntes que tratavam sobre o exato momento em que a vida começava dentro do útero. Pesquisara sobre grupos antagônicos e sobre o que cada um deles defendia, investigando teorias e explicações de quem era e de quem não era cientista.
Mas no fim de tudo, a decisão que tomara fora motivada pelo futuro. Ou pelos diferentes futuros que estariam à sua frente. Diversamente de conceitos sobre os quais tivera conhecimento, que afirmavam que seríamos seres viventes de uma realidade cujo caminho já estaria brevemente traçado diante de nossos olhos, ela acreditava no livre-arbítrio, no poder que nossas decisões tinham na construção do que estaria adiante, com as exceções devidas que surgiam de tempos em tempos para nos mostrar que não somos tão donos de nossas vontades, mas ainda assim de uma parte delas.
Ou não fora assim que chegara até aquele momento? Acaso tivesse evitado aqueles minutos de prazer, ou ao menos tivesse tomado os cuidados necessários que envolvem uma relação sexual, ela estaria naquela situação? A resposta era óbvia demais para que sequer fosse pronunciada.
Escolhera fazer aquilo, e o futuro de uma gravidez chegara, como inevitavelmente o futuro sempre acaba chegando. E agora tinha em suas mãos, assim como tivera antes, o poder de escolher o amanhã que teria pela frente. Ser mãe em tenra idade, atrasando os estudos e todos os projetos que tinha diante de si, ou tirar de seu ventre o ser que se formava, tirando dele um futuro para ela pudesse ter o seu próprio?
Na escolha das sendas ela seguira o segundo caminho, e seus passos a tinham levado para aquela sala fria e inóspita onde as dúvidas e perguntas ainda a corroíam, escancarando a incerteza que gravitava em torno da decisão que tomara.
Enquanto as dúvidas a fustigavam uma porta repentinamente se abriu, e para seu alívio não foi a que guardava o lugar onde sua escolha seria concretizada para todo o sempre. A porta de entrada do consultório revelou sua tia, a única da família a quem contara o que tinha acontecido, assim como a decisão que tinha tomado.
Sempre fora mais próxima dela do que da própria mãe, sentindo-se mais à vontade para falar de coisas que envolviam seus sentimentos mais pessoais, revelando-a sobre o que se passava nos recônditos de seu coração, e daquela vez não fora diferente. Dela recebera conselhos, mas nenhum julgamento, nenhuma avaliação ou condenação sobre o que decidira fazer.
Mas não fora apenas aquele aspecto que a fizera escolher a tia como sua principal confidente naquele caso, e sim a experiência de vida que aquela mulher carregava junto às linhas de expressão que começavam a se formar em sua face. Em sua juventude ela passara pela mesma situação, e escolhera fazer exatamente o que a sobrinha estava fazendo, o que deixara a garota mais confortável para tê-la ali ao seu lado naquele momento que seria um divisor de águas em sua vida.
- Como está se sentindo? – Perguntou a mulher, ao sentar-se a seu lado.
- Bem. – Limitou-se a dizer, sem perceber que continuava movimentando os dedos de forma contínua, o que acusava a apreensão que a dominava.
- Sabe que lhe conheço mais do que muita gente, e que nem precisaria ver a forma como está mexendo as mãos para perceber que não está nem um pouco calma.
A moça parou imediatamente de se mexer, ciente do quão acusadores eram seus movimentos. Nunca gostara de demonstrar fragilidade, especialmente por causa das expectativas que tinham sido colocadas sobre ela, e sentiu-se envergonhada por a tia ter descoberto a pequena mentira que contara naquele momento.
- Sei que já conversamos sobre isso. – Disse a tia, depois de um longo silêncio que se acercou delas, e de ter a certeza de que a sobrinha não tinha certeza alguma sobre o significado de sua opção. – Sei que sua decisão já está tomada, mas não vou me perdoar se não perguntar uma última vez. Tem certeza do que está para fazer? Já pesou bem todas as consequências que virão disso?
- Você sabe bem que sim. – Respondeu ela, depois de pensar por alguns segundos.
A tia olhou para ela, analisando-a detidamente. Sim, tinham conversado sobre todas as consequências que poderiam advir do que ela estava para fazer, desde problemas para sua própria saúde até as polêmicas científicas que circundavam um ato como aquele. Mas após aqueles diálogos algo crescera dentro dela, dia após dia.
Depois de ter conversado com a sobrinha sobre a decisão que ela estava para tomar, ela finalmente deu liberdade a um pensamento que sempre mantivera preso em seu coração, e que agora crescia, tornando latente a necessidade de falar sobre ele, de mostra-lo àquela jovem, sabendo que se não o fizesse não teria paz posteriormente. Tinha de apresentar a ela todos os quadros, todos os cenários que decorreriam daquele ato, e mesmo que ela mantivesse a decisão, ao menos saberia que falara tudo o que guardava dentro de si.
- Você realmente pensou na morte que está para causar? – Tentou fazer aquela pergunta de uma forma menos crua, mas não havia como, não naquele momento, em que estavam na iminência de dar o próximo passo em direção a um caminho sem volta.
- Como assim?! – A pergunta exprimia o espanto que vinha também destacado na expressão da garota, além da revolta com a acusação velada que estava contida naquelas palavras.
- Você está às portas de tirar uma vida. Pode não saber disso ainda, mas está. Quero saber se realmente está pronta para isso.
- Como pode me perguntar isso? Como pode me perguntar isso logo agora, quando esse foi um dos assuntos de que mais falamos quando fui lhe perguntar o que achava? E pelo que lembro sua posição era a de que no período em que estamos não há ainda uma vida formada para que possa ser tirada.
Ela lembrava daquela conversa assim como recordava da sua posição sobre o assunto, seguindo a linha dos que consideravam que nos primeiros meses de gravidez ainda não havia uma vida formada no ventre da mãe, o que significava que o aborto feito naquela forma não significaria um assassinato, como muitos diziam.
Mas após todas aquelas conversas que tivera com a sobrinha, passara também a conversar consigo mesma, olhando constantemente para trás e para o caminho que trilhara até chegar a ser a mulher em que se transformara, e a cada vez que mantinha aquele diálogo mental um pensamento que não estivera presente quando fora ela mesma a tomar aquela atitude tomava forma, assim como o toma um feto no ventre de uma mãe conforme o tempo passa mais e mais.
- Como pode dizer que estou tirando uma vida depois de tudo o que me falou antes? – Continuou perguntando a sobrinha, ainda indignada.
A tia a fitou, vendo a expressão de confusão mesclada à de indignação no rosto dela, reconhecendo-se naquela garota, cheia de projetos e sonhos que seriam inevitavelmente atrapalhados por uma gravidez naquela idade. Mas sabia também que a jovem tinha à sua frente um espelho em que poderia reconhecer a mulher que se tornaria acaso seguisse por aquele caminho, e cabia a ela mostrar-lhe o reflexo que a sobrinha ainda não via, para que assim pudesse tomar sua decisão, sabendo de tudo o que poderia enfrentar nos anos seguintes.
- Como posso? Você me pergunta. Posso porque tenho como fazer essa pergunta. Porque também tirei uma vida quando segui pelo mesmo caminho que você está querendo seguir agora. Mas a vida que falo não é a da criança, já que não acredita que ela já exista em seu ventre. A vida que falo, a da pessoa que estará inevitavelmente matando, independente de corrente científica ou ideológica, é a da mãe que poderá ser caso decida ter esse filho.
A indignação desapareceu inteiramente do rosto da jovem com a mesma rapidez com a qual surgira, e assim permaneceu, sem compreender nenhuma palavra do que a tia dissera. A mulher então prosseguiu:
- Se fizer o que está para fazer vai tirar uma vida, sim. A da mãe que poderia ter sido. Ao privar-se de sentir crescendo em seu ventre a criança que agora carrega, de saber que um pequeno coração bate aí dentro, de pegar-se sorrindo sozinha tentando adivinhar como serão seus olhos, sua boca, seu nariz, a cor de seu cabelo... o som de seu sorriso, de sentir o primeiro chute, os primeiros movimentos e imaginar esse pequeno ser se desenvolvendo em sua barriga, ao privar-se de tudo isso, você estará matando essa mãe, e isso corrente científica alguma pode contestar.
A jovem nada disse, e continuou perplexa enquanto a fitava com a confusão estampada no olhar.
- Fui mãe depois do que fiz. – Continuou a tia. – Tive a sorte de poder carregar no ventre outra criança, o que nem sempre acontece depois que se faz o que está para fazer, e hoje você tem duas primas lindas com as quais pôde conviver. Mas não há um dia em minha vida em que eu não pense em como teria sido aquela criança que não deixei vir ao mundo, assim como não há um só dia em que não pense naquela jovem mãe que matei naquele dia, privando-a de sentir o que senti depois ao engravidar de minhas filhas.
“Não um só dia em que eu não pense no que tirei daquela jovem. A alegria de ver aquela pequena vida saindo de dentro de você. De olhar pela primeira vez aquele sorriso que antes só podia imaginar como seria. De alimentar com meu próprio leite aquele pequeno ser. De ver, dia após dia as mudanças que se operavam, os detalhes tomando forma, as feições ficando mais ou menos parecidas com as nossas. De ouvir os choros nos momentos de tristeza, e os sorrisos nas horas de alegria. De escutar enquanto falavam sobre a primeira paixonite, sobre o primeiro beijo, sobre o primeiro amor. De sofrer quando sofriam, e de se alegrar quando se alegravam. De ouvir pela primeira vez, saindo daquela boca que há pouco aprendeu a falar o desejo de “feliz dias das mães”. Foi tudo isso que tirei daquela jovem no dia em que matei a mãe que ela poderia ter sido.
Sei que sempre confiou em mim, mais até do que na sua própria mãe para abrir-se e me contar tudo, e é justamente para não trair essa confiança que digo isso, porque jamais teria paz em minha vida se não deixasse claro para você o que só ficou claro para mim quando tive a oportunidade de sentir... de me deixar sentir uma vida crescendo em meu ventre. Quando me permiti ser uma mãe, como não permiti que aquela jovem fosse anos atrás.
Era isso que estava guardado dentro de mim, da mesma forma que aquela criança esteve guardada dentro da jovem que não deixei ser mãe. Era isso o que eu tinha a dizer. Agora, o que vai decidir daqui em diante é uma opção que só cabe a você escolher, mas ao menos terei minha consciência tranquila por tê-la deixado sabendo de tudo o que envolve o que está para fazer.”
No silêncio que se abateu sobre elas a mais moça olhou para a mais velha, e ali, por um segundo, viu o reflexo da mulher que poderia vir a ser um dia. Perguntou-se então se sustentaria aquele mesmo olhar resoluto que carregava o peso de uma história dentro de si, ou se o tempo a faria deixar de importar-se sobre a jovem que um dia proibira de ser mãe, tornando-o apenas uma memória dentre tantas outras que carregamos na vida.
Lembrou então que o dia seguinte era dia das mães, e em um ato reflexo pôs as mãos na própria barriga, que ainda não começara a crescer, pensando em tudo o que a tia dissera. Pensando na mãe que poderia ser, ou na mãe que naquele dia deixaria de viver, sentindo, mais do que nunca, a incerteza sobre a decisão que estava para tomar.
Certo ou errado? Era a pergunta que fustigava sua mente e seu coração. Não tinha uma resposta para ela, mas agora carregava uma certeza, a de que a vida de uma mãe dependia da decisão que tomaria naquele dia. E assim pensou, no silêncio da sala estéril. No silêncio de suas dúvidas. O silêncio de uma morte, ou o sorriso de uma vida?
Certo ou errado?
O que você faria?
Foi por Nós
- O que há, meu filho? – Perguntou o padre, sentando-se lentamente no banco de madeira da igreja, que era tomada por uma atmosfera amena e silenciosa naquele início de manhã de domingo.
- Não entendi. – Respondeu o homem, que sentado, mãos unidas e cabeça baixa, aguardava o início da missa dominical, que só aconteceria dali a uma hora.
- Algum problema? – Insistiu o padre.
- Continuo sem entender. Por que me pergunta isso?
- Porque é o único que está aqui, e porque carrega no rosto um semblante de quem parece estar com o espírito pesado, como se algo estivesse machucando seu coração.
O homem encolheu-se um pouco a seu canto, incomodado não apenas com a intervenção do padre, que surgira sem se fazer anunciar, trazendo uma pergunta que achava por demais invasiva, mas principalmente porque o homem de batina parecera ter lido com uma precisão única tudo o que se passava em seu interior, tudo o que realmente pesava em seu espírito.
- Meu coração está muito bem, obrigado. E meu espírito está leve como uma pluma. Quanto a ser o único aqui, gosto do silêncio e da paz que rodeiam a igreja nos momentos em que está assim, vazia. Há algum problema em ficar aqui? – A pergunta soou mais agressiva do que ele queria que soasse, e de imediato se arrependeu de tê-la feito daquela forma, mas permaneceu em silêncio, nada mais dizendo.
- Problema algum, filho. – Respondeu o padre, dando um sorriso que acentuou as rugas que carregava na face já envelhecida. – A casa de DEUS está sempre aberta, estejamos ou não com o espírito pesado. E esse velho amigo está sempre aqui, caso precise conversar sobre algo que o incomode.
- Amigo. Pff. – A língua dele estava afiada naquela manhã, e o comentário, que a princípio ele intencionara manter apenas na sua mente, lhe escapou pelos lábios com uma destreza que lhe pegou de surpresa.
- Perdão? – O velho padre voltou-se para ele, com uma expressão um pouco confusa.
- Desculpe, padre. Eu... é que pensei em voz alta. Só isso.
- E pelo que vejo o seu pensamento é de que não me considera um amigo. – Disse o velho, novamente com aquele sorriso que vincava levemente seu rosto. – Posso perguntar por que?
- Por que o que?
- Por que não me considera um amigo.
- Olha padre, eu, eu sinto muito se fui desrespeitoso. Não quis ser. Mas quero apenas ter um momento de paz, se não se importa. Não estou bem hoje, e gostaria de ficar sozinho.
- Então não foi plenamente sincero. – Retorquiu o padre.
- Como assim não fui sincero?
- Agora há pouco, quando disse que seu coração estava muito bem, obrigado.
O rosto do homem foi repentinamente tomado por uma tonalidade de vermelho que ele logo desconfiou que seria visível mesmo à distância, e uma vez mais sentiu-se invadido por uma onde de incômodo, novamente causada mais pela perspicácia do velho padre em pegá-lo desprevenido do que propriamente pelas perguntas, que ele considerava por demais invasivas.
- O senhor tem o costume de abordar os fiéis e insistir em um assunto como está fazendo agora? – Desta vez ele não se incomodou em parecer mais incisivo, mas fez questão de soar o máximo que pudesse daquela forma.
- Perdão, meu filho. É que nós padres, mesmo conversando com DEUS a todo momento, gostamos também de conversar um pouco com nossos irmãos em Cristo, especialmente quando parece que precisam falar sobre algo.
- Não preciso falar sobre nada.
- Certo, certo. Não vou incomodá-lo mais. Mas antes que eu vá, preciso apenas que me esclareça algo.
- O que?
- Há pouco deu a entender que achava ridícula a ideia de eu ser seu amigo. Posso saber por que? Pode achar a pergunta um pouco estranha, mas me considero amigo de todos, e gostaria de saber o motivo para que futuramente... bem, para que futuramente eu não me torne muito... invasivo.
- Não é nada com o senhor. – Limitou-se a responder.
- Não?
- Não, padre. É comigo. Apenas não tenho amigos, simples assim. Satisfeito?
- Como posso ficar satisfeito ao ouvir isso, meu filho? Como posso ficar satisfeito ao ouvir alguém dizer que não tem amigos?
- O senhor eu não sei... – Falou o homem, depois de revirar os olhos ao ver que o padre não dera a conversa por encerrada. – Mas eu ficaria muito satisfeito se pudesse ficar em silêncio.
- Desculpe, filho, é que acho difícil acreditar que alguém não tenha sequer um amigo.
- Pois acredite, padre! Eu não tenho! Não tenho amigos, não tenho família, não tenho ninguém na minha vida, que me ame ou cuide de mim! Pronto! Agora já sabe porque estou sozinho aqui, porque minha expressão parece carregada, e porque quero ficar sozinho! Sozinho sempre estive, e sozinho quero continuar! Agora por favor, me dê um pouco de sossego!
- Filho... – Falou o padre, depois de alguns segundos em silêncio, contemplando o altar que estava à frente deles. – Pode até não gostar do que vou falar, mas como já deve ter percebido, não sou muito de ficar calado, especialmente quando escuto tanta bobagem como essa que você acabou de falar.
- Bobagem?! – A voz veio carregada de indignação.
- Uma lorota atrás da outra. – Falou o padre, com a maior naturalidade do mundo.
- E posso saber por que?
- Sabe que dia é hoje, meu filho?
- Domingo, ora bolas.
- Algo mais?
- Hummm... – O homem pareceu pensar um pouco, como se quisesse puxar pela memória alguma informação que tivesse deixado passar batida, mas não conseguiu lembrar de nada.
- Deixe-me refrescar sua memória. – Continuou o padre. – Hoje é domingo de Páscoa. Não aquela Páscoa que vendem na da tv ou nos anúncios, com aquele coelho que sinceramente não acho “nada a ver”, e com aqueles ovos de chocolate com os quais enchemos a pança e depois passamos dias e dias de dieta para compensar o exagero. Mas sim a Páscoa em que um camarada, um sujeito boa praça, mais ou menos da sua idade, nos deu a maior prova de amor que alguém poderia dar, e isso há dois mil e tantos anos atrás.
- Sim, sim, eu sei. É que estava com a cabeça confusa e deixei passar batido.
- “Deixei passar batido”. – Repetiu o padre, parecendo saborear cada uma das palavras. – Essa frase define bem o que fazemos todos os dias, um dia após o outro, com a maior prova de amor que recebemos. Deixamos passar batido... como você, quando diz que não tem amigos.
- O que uma coisa tem a ver com a outra? – A pergunta veio com um misto de curiosidade e indignação.
- Tudo e mais um pouco. – Respondeu o padre, como se aquilo fosse a coisa mais óbvia do mundo. – Meu jovem, há mais de dois mil anos atrás, um homem, um homem simples, como simples é o ato de amar, abdicou de tudo o que tinha, de todo o poder que possuía, de todas as chances que teve de escapar, para provar o tamanho do amor que sentia por nós. Aquele homem de semblante humilde era o Rei dos Reis, e despiu-se daquela autoridade para ser tripudiado, humilhado, torturado, espancado e morto, e tudo isso por mim e por você.
“Aquele homem poderia ter se recusado a beber do cálice que estava à sua espera, poderia ter deixado Pedro matar os guardas no fio da espada, poderia ter convocado todos os seus seguidores para resgatá-lo, poderia ter convencido Herodes e Pilatos a soltá-lo e poderia, com uma simples ordem, mandar o céu abrir-se sobre a cabeça de seus perseguidores para convencê-los de Quem ELE de fato era, acabando ali com a agonia que estava sofrendo, mas fez exatamente o contrário, e sabe por que?”
- Eu... bem...
- Porque ELE te ama. Porque ELE me ama. Porque ELE ama a todos nós. Amava, ama, e sempre amará, mesmo que continuemos a... “deixar passar batido.” Agora me diga, rapaz, para você, qual é a definição de amigo?
- Definição de amigo? – Perguntou, confuso após ouvir aquelas palavras.
- Sim, sim. Vamos, responda! – Disse o padre, apressado, sem deixar que o homem lhe escapasse naquele momento.
- Definição de amigo..., bem... alguém que... alguém que está sempre ali para ajudar.
- Definição fraca, essa sua. – Falou o padre, com um pouco de ironia na voz. – Amigo é alguém que sempre está ali para ajudar, sim, mas também é quem abre mão, quem resgata, quem aconselha, quem repreende, quem escuta, quem abraça, quem acolhe, quem se sacrifica... quem ama. Como aquele homem, que se deixou ser pregado em uma cruz por todos nós. E amigo também é aquele a quem sempre buscamos em momentos de dificuldade... exatamente como você fez, vindo aqui.
- Está dizendo que vim aqui pensando em encontrar um amigo? Como você?
- Como eu, não. – Respondeu o padre, sorrindo. – Como ELE. – E apontou para a imagem atrás do altar, onde um Homem de branco, cabelos longos e olhos apaziguadores abria os braços, como se convidasse quem o visse a um abraço. – Então, meu jovem, quando achar que não tem ninguém por você, nenhum amigo, ou alguém que te ame. Não deixe passar batido. Lembre-se do que ELE fez... Foi por você.
O padre deu duas batidinhas leves no ombro do homem, e saiu em direção ao altar, deixando-o ali, aturdido por aquelas palavras enquanto fitava a imagem que parecia convida-lo a um abraço, e ponderou sobre tudo, inclusive sobre o motivo que o levara a ir até ali, inconscientemente, como se tivesse ido à casa de um amigo.
Sentiu então uma vontade repentina de sair, tomar um pouco de sol, um pouco de ar, e ainda com as palavras do padre dançando em sua mente confusa, ele saiu pela porta da igreja, mas tão logo pôs o pé para fora, esbarrou em um homem que passava por ele, e aturdido pela luz do sol que atingiu repentinamente seus olhos, não conseguiu ver com precisão o rosto daquele passante, enxergando apenas os cabelos longos e a barba rala e castanha.
- Amigo, você está bem? – Perguntou o estranho, tocando-lhe o ombro com delicadeza, e como ele não respondesse, virou-se e seguiu caminhando para dentro da igreja.
O homem então virou-se para a rua, mas antes que pudesse seguir novamente, viu que o estranho tinha deixado cair algo. Um pequeno objeto de madeira. Recolheu em suas mãos o achado, e viu que era uma cruz, rústica, mas ainda assim bela e bem talhada, e não sabendo porque, pensou que aquela cruz poderia ter sido feita por um carpinteiro.
- Ei! – Falou, em direção à igreja, querendo chamar o estranho que entrara ali apenas alguns segundos antes. – Ei, amigo... Você deixou cair isso. – E correu pela nave, olhando ao redor à procura do homem, enquanto varria o ambiente com os olhos. – Ei!
- Ei! Ei! Ei!. – Era a voz do padre, um pouco impaciente. – Pare com essa gritaria meu jovem. Estou aqui, o que deseja?
- Desculpe, padre. É que o homem que entrou aqui deixou cair isso. – E mostrou-lhe a cruz que levava na mão.
- Homem? Que homem? Ninguém entrou aqui. Só você saiu, há pouco mais de um minuto.
- Deixe de pilhéria, padre. O senhor viu, com certeza. O homem que esbarrou em mim na entrada. Ele seguiu exatamente pela nave. Não haveria como o senhor não tê-lo visto.
- Meu filho, eu não vi ninguém. E mesmo que ele tivesse sido rápido o suficiente para andar em outra direção, pode ver que todas as outras portas estão fechadas. Tem certeza que viu alguém? Como ele era?
- Ele... bem... eu não vi direito, mas ele era... – E nesse momento os seus olhos foram atraídos para a imagem atrás do altar, onde o Homem com olhos cheios de Paz o convidava para um abraço. Ali ele sentiu um torpor tomar seu corpo, enquanto um calor agradável envolvia sua mão. A mão que segurava a cruz. Mas era o calor que invadiu seu coração, o que mais sentiu.
- E então? Vai dizer como ele era? – Insistiu o padre. – A aparência dele?
“A aparência de um amigo”, pensou em dizer, mas não conseguiu tirar os olhos da imagem do Homem que o convidava para um abraço. “Amigo, você está bem?”, o estranho perguntara. Não, ele não era um estranho. Nunca fora. Apenas seu coração fechado para o egoísmo o fazia ver um estranho, mas naquela manhã era diferente. Naquela manhã, ele encontrara não um estranho, e sim um amigo. Um amigo que lhe dera a maior prova de amor que alguém poderia receber.
Sorrindo para o padre, que ainda parecia confuso, ele sentou-se no banco, e naquele momento percebeu que na mão já não havia uma cruz. Talvez ela nunca tivesse estado ali, ao menos fisicamente, assim como o Homem que esbarrara com ele na entrada da igreja. Mas em seu coração, ele o sentia. Pela primeira vez na vida, ele sentia. E sorriu, pois sabia que tinha um Amigo.
O melhor Amigo que alguém pode ter.
Foi por mim. Foi por você. Foi por nós.
Feliz Páscoa.
Glórias sejam dadas, pois ELE Ressuscitou!
Sapiêncio e as Rosas
Dia de céu limpo e sol forte, que jogava sua luz dourada e acalentadora sobre a paleta de matizes que faziam daquela praça algo semelhante a um quadro pintado com cores vivas e fortes. Um quadro cheio de detalhes e particularidades que apenas enriqueciam aquele ambiente já repleto de vida, sorrisos e de todo tipo de figura retratada pela quantidade de pessoas que por ali passavam diariamente.
E uma dessas figuras era, por seus próprios traços e comportamentos, inconfundível, especialmente para aqueles que já o conheciam e que frequentavam aquela mesma praça, que era como uma segunda (se não uma primeira) casa para ele, que por ali transitava diariamente, não havendo na memória de um só daqueles frequentadores um episódio em que soubessem que Sapiêncio não tinha por ali dado as caras em determinado dia.
E como não poderia ser diferente, naquela manhã estava lá, uma vez mais, com seu andar desconjuntado e com as roupas excessivamente grandes, que provavelmente tinha ganhado de algum morador, e que apenas aumentavam o aspecto esquisito e por vezes hilário do mendigo pensador. Mas não era só a vestimenta que lhe dava um ar de comicidade o que Sapiêncio carregava naquele dia. Havia também outro detalhe.
Naquela manhã o estranho e habitual frequentador daquela vizinhança levava na mão um ramalhete, repleto de rosas vermelhas que ele conseguira sabia-se lá onde. Dançando com suas roupas folgadas no corpo magro e desengonçado, o mendigo circulava, ora pela calçada, ora atravessando a rua e voltando à praça, tudo a depender de alguém que ele via e escolhia para dar uma das flores que levava consigo.
Fosse a presenteada alguém jovem, fosse um pouco mais experiente em anos, fosse até mesmo uma criança, Sapiêncio bailava em sua direção, com movimentos exagerados e cheios de floreios de alguém que achava estar imitando um bailarino, mas que mais parecia um maluco desajeitado em um processo que faria com que qualquer dançarino de renome revirasse os olhos de desgosto, e assim que entregava à agraciada a rosa que tinha em mãos, repetia, com a voz cheia daquela eloquência e simpatia que os demais já conheciam:
- Um feliz dia da mulher para você, bela dama, brava guerreira, nobre lutadora. – E se afastava, bailando enquanto ostentava o sorriso de dentes tortos naquela boca de onde saíam tantas e tantas perguntas que geralmente acabavam fritando o juízo de quem as recebesse.
E daquele jeito passou a maior parte da manhã, movendo-se de um lado para o outro (sem qualquer graciosidade, claro) enquanto seus olhos esbugalhados perscrutavam o ambiente na busca daquela que seria a próxima a receber o presente que tinha em mãos, até que em dado momento, da mesma forma que tinha começado, repentinamente parou, e voltando a adotar o andar desengonçado, de ombros caídos e braços que se moviam como se fossem feitos de borracha, ele caminhou até o boteco de seu João, porque o relógio que carregava na barriga soara com a algazarra de um despertador, avisando que era hora da boia, e como adorava a comida de Dona Antônia, seria louco (ainda mais do que já parecia ser) se recusasse tão suculenta refeição.
Rapidamente entrou no boteco, que àquela hora já estava cheio, chamando a atenção dos fregueses que já o conheciam, e daqueles que ainda não sabiam quem era e que surpreendidos fitavam a estranha figura, que mais estranha ainda ficava com o ramalhete nas mãos.
- Bom dia, seu João, nobre taberneiro de tão belo vilarejo onde vivemos. Como vão as coisas? – Perguntou, com os dentes tortos se destacando naquele sorriso largo.
- Passando, como sempre passam. – Respondeu Seu João, sem tirar os olhos da revisa com as palavras cruzadas. – Se veio buscar o almoço, pode ir lá dentro pegar, só não me venha torrar a paciência com suas coisas.
- Ahhh, simpático como de costume, querido seu João. Sua alegria contagia tanto que sinto até vontade de lhe dar uma dessas rosas, mas não posso, porque hoje é o dia da mulher, e é para elas que estou entregando. Rosas para elas, que são as mais belas flores do jardim e... – então parou de repente quando o velho colocou a revista no balcão e o fitou com o já conhecido olhar de “faça o favor de calar a boca e dar o fora antes que eu chute seu traseiro ossudo”, e Sapiêncio, que podia até ser doido, mas também tinha noção do perigo, passou dois dedos unidos pela boca em sinal de que calaria a matraca, e preparou-se para entrar na cozinha e pegar seu prato diário, quando sua atenção foi chamada por alguém.
- Aí Sapiêncio. Para quem são essas flores? – Era um dos homens que geralmente sentavam para tomar uma cerveja no boteco e jogar conversa fora antes de ir para casa. – Pode me dar uma delas?
- Não, não, não. – Falou Sapiêncio, balançando o dedo fino como um graveto enquanto dirigia-se até a calçada, onde o homem estava em uma mesa com um grupo de amigos. – Essas flores não são para homens, e sim para as mulheres, porque hoje é o dia delas. Se quiser posso arrumar alguma outro dia para você, mas hoje não vai dar.
Os demais que estavam à mesa com o homem que fizera a pergunta se entreolharam por um segundo, e depois caíram em uma sonora gargalhada que se espalhou pela rua.
- Não é para mim, seu mentecapto! – Falou o homem que pedira a rosa. – É para minha esposa. Sei que quando eu chegar em casa ela com certeza vai reclamar porque estou aqui bebendo, e uma flor seria uma boa pedida para acalma-la. Então, o que me diz?
O mendigo o fitou, encarando-o com um olhar analítico enquanto passava o dedo indicador e o polegar em idas e vindas pelo queixo magro, nitidamente pensando se aquele homem seria merecedor de uma das rosas que recolhera tão gentilmente para presentear as mulheres, e quando pareceu que ia ficar o resto do dia naquela pose estranha, finalmente falou:
- Flores deveriam ser um presente sincero, e não uma maneira de escapar às reclamações de alguém. – Falou, em um tom que mais lembrava um pai repreendendo um filho do que um mendigo entregando uma rosa a um frequentador de boteco.
- Mas é um presente sincero. – Respondeu o homem, enquanto pegava a rosa da mão de Sapiêncio. – Um que sinceramente espero que livre minha barra. – E todos caíram na risada novamente, menos o mendigo, que revirou os olhos e preparou-se para ir em direção à cozinha para comer. Mas mal dera um passo, nova algazarra chamou a atenção do desengonçado pensador de rua, que ele identificou como sendo uma mistura de assobios, todos dados a seu próprio modo, mas que consistiam no bom e velho “fiu fiu”, e quando virou-se para ver se estava sendo alvo de troça, constatou que pela calçada passavam duas moças, nitidamente incomodadas com o que se passava.
Um por um Sapiêncio olhou os integrantes da mesa, terminando naquele que dele recebera a rosa, e todos, sem exceção, fitavam as garotas como um cachorro olha para um pedaço de carne que fica pendurado na frente do açougue. O mendigo até pôde jurar que um deles de fato estava babando, como o faria um cachorro. Mas os homens não se contentaram em apenas assobiar, e passaram a dirigir às moças uma rajada de cantadas, todas elas grosseiras.
- Ah uma dessa no colo do papai... – Dizia um.
- Pra uma novinha assim o tio aqui ensinaria muita coisa... – Falava outro.
- Novilha nova é que dá bezerro bom... – Completava um terceiro.
- Ei, loirinha, se eu te der essa rosa você me dá sua flor? – Fechou com a pior de todas exatamente aquele que tinha falado com Sapiêncio.
O mendigo, que pela maioria era considerado um doido, mas ainda assim um doido sensato, como dizia Dona Antônia, demonstrando uma destreza que não condizia com seu jeito desengonçado, retirou a rosa da mão do homem, e antes mesmo que ele percebesse, Sapiêncio já se dirigia à cozinha, imaginando se conseguiria comer depois do que vira e ouvira.
- Ei, Sapiêncio. Devolve minha flor.
Sapiêncio virou-se e soltou:
“Flor na mão eu me pergunto
Bem me quer ou mal me quer?
Mas a elas eu afirmo
Só te quero o bem, mulher”
- Bom, bom. – Falou o homem, batendo palminhas cheias de ironia. – Disse tudo, meu caro. Quero um bem às mulheres, mas tão bem que no meu coração tem espaço para todas elas... e no meu quarto também. – Arrematou, rindo malandramente. – Agora vamos, seja um rapaz legal e me dê a rosa.
- Essas rosas foram recolhidas para serem dadas àquelas que nesse dia tão especial são homenageadas, o que já é muito pouco para quem merece uma homenagem todos os dias do ano, então não vou dá-la a uma pessoa que não valoriza tão nobre ser, como o é a mulher.
-Blá, blá, blá e blá. – Falou um dos homens que estava na mesa. – Não vê que ele quer dar de presente pra esposa dele seu tonto? Então pronto, dê logo de uma vez. Vai acabar na mão de uma mulher, de todo jeito.
- Prefiro dá-la a quem quiser presentear com respeito, e não como desculpa para escapar de uns esculachos.
- Ora Sapiêncio... – Retrucou o que queria presentear a esposa. – Deixe de coisa rapaz. Está fazendo esse estardalhaço só por causa da brincadeira que fizemos agora há pouco? Há, vá! Não vê que foi só uma piadinha?
- Pode ter sido para vocês, mas as moças estavam bem incomodadas. – Retorquiu o mendigo – Estavam sim, eu vi tudinho.
- Porque são frescas! – Bradou outro. – Hoje em dia não se pode mais nem fazer uma piada ou dar uma cantada boba que essas feministas cheias de não me toques já começam a dar chilique.
- Diga-me, nobre ébrio habitual. Por acaso tem filha? – Perguntou Sapiêncio.
- Se tenho? Tenho sim. Duas.
- E pelas rugas no seu rosto e pelos cabelos brancos, presumo que já são grandes. – O homem ficou sem jeito com o comentário de Sapiêncio sobre sua aparência, mas respondeu, sem titubear.
- São grandes sim. Duas jovens, quase adultas.
- E são bonitas?
- Para que quer saber, seu enxerido? Veja bem, respeite minhas filhas hein? – O rosto do homem foi tomado por uma tonalidade rubra que rapidamente se espalhou, destacando-se no nariz adunco que a Sapiêncio lembrou um tomate brilhando.
- Ao ouvir aquilo, o mendigo disparou:
“Já dizia o velho sábio
No tom sério de um burlesco
O ardor de uma pimenta
No dos outros é refresco”
- Não entendi. – O rubor sumiu repentinamente da face do homem, sendo substituído pela expressão confusa de quem de fato não compreendera nada. O que lhe dava o aspecto de um garoto que estivesse aprendendo a fazer contas e não tivesse certeza do resultado a que chegara.
- Explico, nobre dipsômano. – Sapiêncio ergueu o dedo magricela e falou, com ares de professor. – O que quis dizer foi que achou perfeitamente normal desrespeitar aquelas moças com palavras... bem, palavras peculiares, mas ficou irritado só porque perguntei se vossas filhas são bonitas, o que apenas mostra que a máxima está correta. Pimenta no dos outros é refresco.
- O que é dip... dips... isso aí que você falou? – Perguntou confuso o homem que queria a rosa a todo custo, enquanto o pai das moças que fora questionado por Sapiêncio parecia estar absorto, pensando no que o mendigo dissera.
- Dipsômano, meu caro, é um termo usado para definir alguém que gosta de tomar umas e outras.
- Pois eu digo... – Continuou um terceiro, depois de virar um copo de cerveja. – E repito que todos aqui respeitam as mulheres, mas isso não me impede de dizer que elas estão muito atrevidas ultimamente.
- Por que? – Quis saber o mendigo, colocando uma mão na cintura enquanto com a outra ainda segurava o ramalhete, nitidamente curioso com a observação.
- Porque a cada dia que passa elas vêm mais com essa história de igualdade de direitos, de ganhar o tanto que o homem ganha, de ter o mesmo cargo e isso e aquilo, e aquilo outro.
- E acha isso errado?
- Mas é claro que eu acho, ora bolas. Na minha humilde opinião, o homem tem que ser o provedor, porque é mais forte e tem mais capacidade, enquanto que a mulher, que é mais frágil, tem que ficar em casa tomando conta de tudo, porque é mais frágil.
- E Vossa álcoolexcência acha mesmo que as mulheres não são capazes de fazer o mesmo trabalho que os homens? Acha que são mais frágeis?
- Mas qual?! Claro que acho. Fui criado assim e vi isso minha vida toda. Meu saudoso pai saía para trabalhar, enquanto minha querida mãezinha ficava em casa tomando conta de mim e dos meus sete irmãos. Assim era, e assim acho que deveria continuar a ser.
- Sua mãe tomava conta de uma casa, de um marido e de oito filhos, sozinha, e você ainda diz que ela era frágil e incapaz? Me diga, meu caro, quanto desse troço aí vossa senhoria já bebeu?
- Não foi isso que eu quis dizer, seu turrão.
- E o que foi que quis dizer?
- Quis dizer que minha santa mãezinha não seria capaz de fazer o que meu pai fazia, bolas.
- E o que ele fazia?
- Ele tinha uma loja muito famosa. – Disse, se gabando da lembrança.
- Então ele tomava conta de uma loja, onde tinha que pagar alguns funcionários, administrar os recursos e lidar com os clientes de forma gentil e paciente.
- Sim, sim. Isso mesmo. Do jeitinho que você falou.
- E vossa santa mãezinha tinha que tomar conta de casa, trabalhando como uma funcionária que não era paga, enquanto administrava os recursos do lar e lidava de forma gentil e paciente com nada menos que oito crianças, e isso de domingo a domingo, sem folga?
O homem levantou um dedo para falar, e chegou mesmo a abrir a boca, mas se tivera alguma palavra para dizer ela ficou no meio do caminho, e nada saiu do buraco aberto que deu ao falastrão um ar de abobalhado, ali parado, de dedo em riste e boca escancarada, atrapalhado demais para conseguir pensar em algo que pudesse justificar seu ponto de vista.
- E vossa senhoria? – Sapiêncio olhou para o quarto homem na mesa, o que parecia ser o mais novo entre eles. – O que pensa disso tudo?
- Penso. – Começou o rapaz. - Que está na hora de pedir a conta. – E levantou um dedo chamando Seu João. – A conta, querido, porque ainda tenho que ir para casa e dar um bom beijo e um grande abraço na minha esposa, mas antes disso vou passar na casa da minha mãezinha e desejar um feliz dia da mulher. Sapiêncio, poderia me dar não uma, mas duas dessas rosas que tem aí nesse ramalhete?
“Para um homem que respeita,
E que trata com amor
As mulheres de sua vida
Dou a cada, uma flor”
E entregou ao rapaz duas flores, uma para cada uma das mulheres que ele citara, fazendo uma reverência desajeitada que pareceu mais cômica que cordial, e assistiu enquanto o homem ia ao balcão pagar a conta e logo em seguida ir embora, entregar as rosas aos amores de sua vida. Olhou então para os demais, que sem jeito continuavam calados e emburrados, bebendo suas cervejas.
Mas o mendigo percebeu que o primeiro que o tinha chamado, pedindo-lhe a flor para que a esposa não lhe desse uma bronca parecia absorto, pensando com seus botões. Por um instante chegou a achar que o homem pesava as palavras que dissera em sua sábia doidice, e então olhou então para o ramalhete que tinha nas mãos, com aqueles olhos esbugalhados que sempre geravam efeitos diversos em quem os via, assustando alguns, divertindo outros, e irritando quase todos, e pegou uma rosa, oferecendo-a a ele.
- Tome. Leve a rosa.
O homem pareceu espantado, e piscou os olhos enquanto o fitava, como se Sapiêncio parecesse uma ilusão e tivesse que forçar a vista para ver se aquela estranha figura era real ou não. Mas o espanto maior era o mendigo estar oferecendo a mesma rosa que tinha negado momentos antes, por não ser ele merecedor de recebê-la.
- Mas... você disse que eu não merecia leva-la.
- E não merece... ao menos agora. Mas sua mulher merece recebê-la. E no caminho olhe para a rosa, decore bem a imagem dela, absorva cada detalhe, e quando chegar em casa veja que a beleza de sua esposa é muito maior do que a dela, assim como a beleza de todas as mulheres, não apenas a física, mas principalmente a que vem da força e do amor que cada uma delas carrega dentro de si.
O homem olhou para Sapiêncio com cara de bobo, e naquele momento não foi um mendigo que ele viu ali, e muito menos o doido que se acostumara a ver naquela praça, com seus estranhos trejeitos e sua insistente mania de arrancar fora o juízo de cada um, torcer como se faz com uma roupa molhada, e colocá-lo de volta na cabeça quente de quem com ele confabulava.
Já o mendigo, saiu como se nunca tivesse estado ali, e foi rapidamente com seu andar desengonçado em direção à cozinha, porque enquanto a mente estivera trabalhando, a barriga estivera reclamando. Passou direto pelo balcão, sem perceber que Dona Antônia estava parada ao lado de Seu João, que voltara a ficar absorto nas palavras cruzadas, como costumeiramente fazia.
- João... Disse ela, chegando mais perto do marido. – Viu o que Sapiêncio estava distribuindo para as mulheres ali na praça?
- Vi. – Respondeu o velho, num grunhido.
- Cadê a minha?
- A sua o que?
- Não se faça de maluco, espertinho. O único doido que existe por aqui é Sapiêncio. Agora preste bem atenção. Hoje é dia da mulher, eu sou sua esposa, e quero a minha rosa. E já!
As últimas palavras vieram carregadas de autoridade, a mesma autoridade diante da qual o velho e ignorante Seu João abaixava a cabeça sem dar um pio em resposta. O homem olhou para o lado, e a expressão que viu não lhe dava margem para qualquer argumentação. Largou a revista no balcão, e saiu em disparada atrás do mendigo.
- Sapiêncio, seu tratante! Volte aqui e me dê uma rosa, antes que eu plante meu pé no seu traseiro!
E saiu, resmungando entredentes que o mendigo tirava o juízo até de quem com ele não conversava, deixando no balcão Dona Antônia, sorrindo, porque sabia que mesmo que o marido fosse um bronco e um turrão, ainda assim a amava, a seu próprio modo, mas amava e valorizava.
E quem dera todos os homens fossem assim, amando e respeitando, ainda que sem jeito, mas mesmo assim o fazendo, porque no fim de tudo o que as mulheres querem não é mistério algum. Elas querem apenas o que todos nós queremos... amor e respeito.
Se DEUS quiser Sapiêncio voltará logo, para cozinhar o juízo de algum desatento que cruze seu caminho.
Até lá... um feliz dia da mulher.
Carnaval sem Fim
Parecia um dia normal de trabalho, dia comum no escritório, em que vestira o mesmo terno justo, porém sóbrio, a mesma gravata fina com nó curto, que descia discreta pela camisa branca bem engomada, cuidadosamente ensacada na calça social adornada com um cinto de couro preto, que brilhava quando tocado pela luz, tudo conforme ditava a moda para a vestimenta de jovens como ele, dedicados ao labor e moderados no que concernia à vida social.
E assim era ele. Calmo, discreto, educado. Falava quando achava que algo valia à pena ser dito, e quando o fazia era sempre em tom moderado. Fino no trato, a todos cumprimentava cordialmente, respeitoso e observador de todas as normas de etiqueta que já pareciam ter sido escritas no manual que elencava aquela severa legislação regulamentadora dos bons modos.
A alguns agradava com seu jeito, servindo de exemplo para citações de mães e esposas quando queriam condenar algum comportamento daqueles que eram alvos de suas críticas. “Veja como se porta aquele jovem”, dizia uma, “por que não faz o mesmo, por que não aprende algo com ele?”, dizia outra, tendo como resposta apenas um grunhindo e um revirar de olhos dos que achavam tudo aquilo uma inutilidade e um incômodo.
Mas para outros era, se não alvo de crítica, ao menos de observações analíticas feitas após um cuidadoso estudo de comportamento que só sabem fazer aquelas pessoas que se ocupam tão somente de prestar atenção na vida alheia. Para tais estudiosos de plantão, ou fofoqueiros, no dito popular, aquele modo de portar-se era semelhante a uma espécie de prisão, em que o detento era ao mesmo tempo carcereiro, deixando fechada a cela sem permitir-se um momento sequer de liberdade, observando-se constantemente para não pecar nem ao menos no mínimo detalhe, a fim de evitar que o regramento que seguia à risca fosse violado, ainda que minimamente.
E era exatamente essa segunda casta de observadores que detinha a análise correta do que se passava com aquele jovem executivo, tão cuidadoso e esmerado no que concernia ao próprio comportamento, cuidado e esmero estes que lhe tinham sido passados exaustivamente em sua vida, com lições e mais lições de como deveria agir para agradar e ser objeto de admiração de todos os demais... menos de si mesmo.
Mas por detrás da máscara dos bons modos e da etiqueta, o rapaz sentia-se sufocado, por vezes cansado de sempre agir como um autômato que deveria seguir à risca uma cartilha que ele não escrevera, e na qual não enxergava muita utilidade. E assim seguia, sufocado, porque deixava-se sufocar, aprisionado por aceitar a prisão onde tinham lhe colocado, e na qual permanecera mesmo após receber a chave do próprio cárcere.
No entanto, mesmo os presos mais perigosos têm direito a um banho de sol, a um momento onde possam olhar para o céu e adentrar no mundo de faz de conta, imaginando-se fora dos muros que os cercam, imaginando-se a abraçarem a liberdade pela qual tanto anseiam, e para aquele jovem, um momento semelhante se aproximava, porque apesar de parecer um dia normal de trabalho, aquele não seria, ao menos em parte, um dia inteiramente normal.
Naquele dia o terno impecável e colorido seria pendurado no cabide do armário, os sapatos lustrosos ficariam a um canto do quarto, a maleta seria guardada, fechada com o trabalho que havia ali dentro deixado para um outro momento, e os modos, os modos sempre seguidos à risca seriam momentaneamente esquecidos, como a cela que fica para trás no intervalo do banho de sol.
Enquanto caminhava pela rua de calçamento escurecido e multiforme, desviando vez ou outra de bondes que ruidosamente passavam tocando seus sinos, repletos de passageiros que rumavam para seus próprios destinos (talvez até se encontrasse com aquelas mesmas pessoas no lugar para onde iria no fim do dia), ele pensava adiante, caminhando pelo presente, mas já desbravando o futuro em pensamentos sonhadores, futuro este que se aproximava, e que aconteceria naquela mesma noite.
No trajeto para casa cumprimentava os passantes, como costumeiramente fazia, mas para aqueles que não estivessem ocupados demais pensando nos próprios planos, para aqueles que possuíssem o dom da observação e da leitura de outras pessoas, e que estivessem em um momento em que quisessem fazer uso desse dom, para esses caminhantes a expressão do rapaz pareceria um pouco diferente da que geralmente carregava. Ao invés de apenas polidez, educação e esmero, eles poderiam enxergar algo mais naquela face, algo que não viam com tanta frequência.
Uma faísca a brilhar em olhos que geralmente se mostravam reservados e opacos, um sorriso contido no canto da boca que teimosamente se elevava conforme a ansiedade crescia em seu peito, uma leveza no andar, que fazia parecer que no próximo passo sairia dançando pela rua, uma tranquilidade, uma abertura... uma alegria, era isso que veria quem nele prestasse uma atenção redobrada.
O rapaz entrou em casa, tirou do colarinho a gravata que naquele dia parecia apertar-lhe o pescoço mais do que de costume. Tirou os sapatos que brilhavam, mas que lhe apertavam os pés, e arrancou fora as roupas, sentindo o alívio no corpo ao retira-las, como se tivesse acabado de se livrar de uma pesada armadura. Mas faltava algo mais.
Olhou-se no espelho e enxergou uma mudança que gradativamente se operava, com a paciência de quem observava uma flor desabrochando ao sol. A boca sempre em linha reta tremeu levemente, e modificou-se, subindo em arcos inconfundíveis de um sorriso há muito contido, e junto com a boca os olhos também sorriram, e depois todo o rosto, e assim a mudança completa se operou, porque retirara o último item que faltava, a máscara que usava diariamente na frente de todos.
E a retirou porque era um dia diferente. Porque não era um dos dias comuns onde agia conforme costumeiramente todos tinham se acostumado. E ao enxergar-se como era sorriu também por dentro, ao perceber que em uma época onde quase todos vestiam fantasias, ele arrancava a sua para mostrar quem de fato ele era por detrás da máscara que usava.
Olhou para o relógio ansioso, achado que os ponteiros andavam a passos lentos demais, opinião que mudaria no dia seguinte, quando acharia que o tempo correra em uma velocidade vertiginosa. E não é assim com os bons momentos? Passam tão rapidamente que raramente sentimos enquanto se esvaem diante de nossos olhos, como poeira que é levada pelo vento.
Mas não pensaria no tempo, não quando havia muito a ser vivido e tão poucas horas para fazê-lo. Preferia aproveita-lo, e assim o fez. Pôs sua roupa colorida, assanhou os cabelos, vestiu sapatos que não brilhavam, mas que eram calçados por pés que brilhariam nas danças em que se jogaria dentro do salão lotado, da rua animada, do bloco repleto de foliões alegres que com ele dividiriam aquele momento de alegria.
Saiu de casa e caminhou pela rua, a todos cumprimentando, não por educação ou polidez, mas por alegria, abrindo um sorriso em um rosto que geralmente era austero, e fitando a todos com olhos que pareciam brilhar mais que o próprio sol. Andou e andou, e dançou e dançou, sentindo o coração encher-se de alegria quando seus ouvidos foram tocados pelos primeiros acordes que chegavam, trazidos pelo vento e pelas vozes de outros foliões que se acumulavam nas ruas.
Andou e dançou, e encontrou o seu bloco, juntando-se ao exército de foliões que cantava, não as marchas militares dos quartéis cheios de disciplina e autoridade, mas as marchinhas de carnaval, em uma batalha na qual a única disputa seria a de quem dançaria, sorriria ou se divertiria mais. Deixara a armadura em casa e se juntara àqueles que diariamente eram tão diferentes do que ele aparentava ser, mas que naquele dia eram idênticos ao que ele realmente era.
Cantou “Ôh abre alas”, gritou a plenos pulmões, como um bebê que pede a chupeta, para que a pegassem para o neném não chorar. Perguntou por que a jardineira estava tão triste, soltou pilhéria sobre a cabeleira do Zezé, avisou a todos que o índio queria apito, ameaçou de morte quem tinha pego sua cueca para fazer pano de prato, e berrou a plenos pulmões o calor que estava sentindo, enquanto garrafas de água eram giradas no ar, jatos de lança perfume eram lançados sobre as pessoas e confetes e serpentinas se espalhavam por todo lado, não se sabendo de onde vinham e para onde estavam indo.
Cantou até perder a voz, dançou até que os pés latejassem e sorriu até que o rosto sentisse cãibras, abraçando os demais, porque em sua época se abraçava, e não se brigava em blocos de carnaval. Sorriu para as moças, flertando com elas, porque em sua época não se precisava arrancar roupas no meio da rua para sentir o calor que subia pelo corpo quando se desejava alguém, e divertiu-se, sabendo que apenas ele, e somente ele, não estava usando uma fantasia ali, porque aquele era seu verdadeiro eu.
O tempo passou, a marchinha cessou, e para casa ele foi, vendo pelas ruas os confetes e serpentinas espalhados, os ébrios que nas calçadas ainda dançavam, inconscientes que a festa tinha acabado, a decoração que coloria postes e casas, e que sumiria quando a quarta-feira de cinzas chegasse junto com o nascer do sol. Para casa ele foi.
Ele, ele mesmo, sem fantasias, sem máscaras, sem armaduras, apenas a pessoa que era e que queria continuar sendo, mesmo quando o carnaval partisse, mesmo quando Momo descansasse, mesmo quando o arauto decretasse o fim das folias, ainda assim ele queria, que a partir daquele dia, todos os dias fossem carnaval. Deitou-se com aquele sonho, que viveria dormindo, e quem sabe quando acordasse, com o coração ainda em folia, resolvesse fazer do sonho uma realidade, passando a mostrar a todos quem ele era. Quem ele era de verdade...
Um carnaval sem fim.
Um Dia de Verão
Música para seus ouvidos, eram o barulho das ondas quebrando lenta e sucessivamente na arrebentação, o som da brisa do mar sussurrando preguiçosamente em seus ouvidos, como uma canção ecoando das profundezas do oceano e do tempo, e o farfalhar das folhas dos coqueiros enquanto bailavam, brilhando como esmeraldas sob a luz do sol que pairava no céu límpido e cristalino.
Sob ele a areia suave pavimentava um caminho branco que contrastava com o verde esmeralda do oceano, que a tocava carinhosamente, espumante a cada onda que chegava de sua longa jornada, em uma dança sucessiva que parecia não terminar nunca. Em sua pele bronzeada o sol caía e repousava, dourado, dourando, iluminando e aquecendo o mundo que seguia seu próprio caminho abaixo de seus raios fulgurantes.
Um homem, um céu, um sol, um mar, uma brisa a lhe tocar, e em sua mente, pensamentos e lembranças que seguiam-se, trazendo uma sucessão de imagens que complementavam aquele cenário de beleza ímpar que se descortinava diante de seus olhos. Uma junção, união simbiótica que se construía, em que não se sabia onde um terminava e o outro começava.
À sua frente, pessoas passavam, de um lado a outro, seguindo suas vidas, vivendo as páginas de suas histórias que se descortinavam a cada passo dado pelo tempo, deixando na areia pegadas que o mar e o vento apagariam, mas que ficariam eternamente gravadas nos recônditos de suas mentes, assim como na dele. Mãos tocadas, entrelaçadas, olhares ligados, beijos trocados, ou meramente um olhar isolado para o oceano que estendia-se diante deles.
Com um olhar atento e ao mesmo tempo distanciado no infinito ele observava a tudo, a cada um separadamente, e a todos como uma única imagem, elementos que se distinguiam e ao mesmo tempo se combinavam, parecendo desenhados em uma pintura perfeita, que parecia retratar uma história que sempre estivera destinada a ser, como se aquele dia, com aquela paisagem e aquelas pessoas tivesse sido escrito há eras, e só naquele exato momento aquela página era finalmente lida, aquela obra era vislumbrada... aquela história era vivenciada por cada um daqueles personagens, incluindo ele.
O Mar, o vento, o sol, o céu, a areia, a vida, o tempo e o momento. Enquanto sentando experimentava e compartilhava sua vivência com cada um daqueles elementos, passado e presente se confundiam em sua mente, em seu próprio mundo interior conforme voltavam as memórias de dias que tinham chegado e passado como as ondas tocavam a praia de suas lembranças.
Marcara suas próprias pegadas naquele areia que de tão branca chegava a ofuscar seus olhos distraídos e simultaneamente focados. Passos que dera em dias que haviam ficado para trás na caminhada do tempo, mas que permaneciam vivos e presentes em suas lembranças, como se tivessem sido trilhados apenas poucos segundos antes.
Rostos que tinham ficado para trás, sorrisos que agora eram apenas ecos distantes viajando pelo espaço de seus pensamentos. Amigos, amores, cheiros e sabores que tinham se transformado em linhas grafadas nas páginas de sua vida. Sorriu ao lembrar das gargalhadas que dera naquela mesma praia em sua infância, cavando a areia para criar fortalezas que desapareceriam ao primeiro toque das ondas, mas que em sua imaginação permaneceriam incólumes.
Por um instante seus olhos tiveram um vislumbre daquela criança, como se a estivessem vendo naquele exato momento, como se o passado tivesse surgido para segurar na mão do presente, mostrando-lhe as imagens que carregava com tanto carinho na caixa de suas recordações. Sorriu, sentindo um misto de vazio e preenchimento, de saudade e alegria ao revisitar aquela foto do álbum de sua vida.
O cheiro então invadiu suas narinas. Cheiro de algas, de sal, de maresia. Cheiro de mar e lembranças. Cheiro do amor que um dia jurara ser para sempre, mas que permanecera apenas pelo intervalo que circundava os dias de um verão semelhante àquele. Amor de verão, eterno em sua efemeridade, duradouro em sua brevidade, para sempre, pelo curto espaço de um tempo.
Seus olhos uma vez mais tiveram o vislumbre de cenas trazidas pelo mais velho dor irmãos que acompanham o tempo. Um toque, um olhar, o palpitar do coração acelerado batendo dentro do peito, como se aquele espaço fosse curto demais para conter a emoção do primeiro beijo que dera em uma noite enluarada tendo como testemunhas as estrelas que se descortinavam no céu, e o mar que bramia sua música interminável, cantando sua eterna canção enquanto as ondas chegavam para tocar os pés daqueles jovens enamorados. Amor para sempre... para sempre em suas lembranças.
Memórias correram a cada olhar, a cada ponto vislumbrado na areia cheia de claridade, no mar cristalino, no céu límpido, nas ondas que iam e vinham, e a cada uma delas sentia aquele misto de nostalgia e completude. Saudade de um tempo que não voltaria, e alegria por ainda assim tê-lo vivido. Sentado na areia ele via, ouvia, revivia. Sentado na areia ele lembrava, e lembrando sorria, revivendo e vivendo a um só tempo aquele, e todos os outros dias.
O céu cristalino, o mar esmeralda, a areia branca, o sol que brilhava, as ondas que cantavam, a brisa que acariciava. Ali sentiu todos eles, e guardou aquele momento no peito e no mais fundo de sua mente enquanto respirava profundamente, pois sabia que um dia, ao relembrar naquela mesma areia, olhando para aquele mesmo oceano em um dia límpido e cristalino, seus olhos veriam aquela imagem. A imagem de mais um verão que ele guardaria com carinho em seu coração.
Sob o céu que dourava levantou-se, e abraçado pela brisa do mar caminhou pela areia alva, deixando para trás mais pegadas. Marcas que as ondas e o vento apagariam do chão, mas que permaneceriam eternamente, dentro de seu coração.
Sapiêncio e as Resoluções de Ano Novo
Tendas brancas, erguidas e organizadas, emparelhando-se umas com as outras em uma fila interminável, uma forma retangular, que seguia à risca o formato da praça com suas árvores frondosas e seus mosaicos coloridos, seus pássaros cantantes e seus habituais visitantes, que a frequentavam quase que diariamente, como se aquela fosse sua segunda casa.
As barracas, tendas ou coberturas eram brancas, límpidas, impecavelmente arrumadas para a noite tão especial que dentro em breve chegaria, e algumas pessoas já se dirigiam à praça naquele meio de tarde, para ver os preparativos e encantar-se, ou meramente darem seus habituais palpites, como costumeiramente fazia um ou outro frequentador, ávido por opinar em qualquer coisa que achasse digna de ser opinada.
Era a tarde do último dia do ano, e além dos raios dourados de sol que perpassavam pela folhagem das árvores, dando à praça uma atmosfera bucólica, e o vento agradável que acariciava as faces dos passantes e ficantes, havia também uma expectativa, tão característica daquela época, que envolvia os sonhos, projetos e desejos para o ano que estava para chegar.
Todos os anos os moradores da localidade organizavam aquela enorme festa de réveillon na praça próxima às suas casas, a praça que era em si, para todos eles, um lar, onde se reuniriam, brindariam, sorririam e fariam votos de saúde e felicidade para todos que ali estivessem com seu próprios chegados, juntos e misturados como uma enorme família.
Jovens, velhos, crianças e adultos, casais de namorados, ou casais ainda enamorados mesmo depois de tantos anos de matrimônio. Cachorros, gatos, amigos, colegas, todos passavam por ali para antever um pouco do que os encontraria naquela noite, curiosos por saber como seria a festa, mesmo já a tendo vivenciado tantas e tantas vezes antes naquele mesmo local, com aquelas mesmas companhias.
E no meio daquela praça, em uma das muretas que cercavam uma das árvores centenárias que jogavam suas agradáveis sombras na extensão do lugar, estava Dona Antônia, uma simpática moradora que residia em uma das pequenas e aconchegantes casas antigas que ficavam há alguns metros dali, o tipo de casa em que se para na frente e olha, pondo-se a pensar quantas histórias ali aconteceram, quantas lágrimas, quantos sorrisos, quantas tardes como aquela, que antecediam o término de mais um ano.
De estatura mediana e no alto dos seus sessenta anos, Dona Antônia (chamada por alguns de Toninha) era conhecida na região não apenas por sua deliciosa comida, que era apreciada principalmente por seu marido, Seu João, dono do boteco que ficava em frente à praça, como acusava a saliente barriga que o homem carregava, mas também por seu humor agradável e por sua simpatia contagiante, o que a diferia bastante do esposo, calado e um tanto que sisudo, dono de um humor sarcástico e sagaz.
Apesar de algumas rugas no rosto e dos fios cor de neve que já se espalhavam por sua cabeça (Dona Antônia não era muito afeita a camuflar a idade com tintas de salões), ela ainda conservava muito da beleza que tanto atraíra Seu João nos anos de sua mocidade, além de outros pretendentes, os quais o velho dono do boteco tivera que botar para correr à sua própria maneira.
Pele ainda corada, olhos de um verde escuro cor de folha e um corpo que não era magro e nem gordo, ficando no meio termo, o que muito a agradava, pois se não era contumaz da pintura de cabelos, o era das dietas, e além de controlar a alimentação, apesar de cozinhar tão bem, ela também gostava de se exercitar naquela mesma praça, o que era exatamente o que tinha feito momentos antes, parando agora para descansar em uma das antigas muretas.
Mas seu traço mais marcante era mesmo a simpatia, além da bondade e do altruísmo. Toninha, como fazia questão de ser chamada, ajudava como podia quem estivesse precisando de ajuda, desde que de fato a pessoa precisasse, já que aquela senhora, de boba, não tinha nada, e além de prestativa tinha um sorriso fácil que a todos encantava.
Para as crianças era vista como uma simpática vovó, para os jovens e adultos era Dona Toninha, companhia agradável com quem gostavam de conversar, e para alguns senhores mais enxeridos, era uma bela mulher madura, com aqueles chamativos olhos verdes, o que acabava acionando a vassoura de Seu João, que botava para correr aqueles desavisados salientes debaixo de vara, gerando inúmeras risadas nas pessoas que já o conheciam.
Naquela tarde agradável, Dona Antônia, ou Toninha, estava sentada, ainda suada de sua caminhada diária e tomando uma saborosa água de côco que pegara na geladeira do boteco que era tão dela como de Seu João, e pacientemente conversava com outra senhora, que falando em um tom de voz um pouco mais alto que o normal, para ela narrava os planos e projetos grandiosos que tinha para o ano que entrava.
A mulher tinha mania de grandeza, o que podia ser visto não apenas no modo como falava, mas também na forma como se portava e se vestia. Para um observador externo parecia exagerada em seus movimentos, no gestual, no tom de voz, e principalmente na potencialização de sua própria capacidade de fazer as coisas e na narrativa das conquistas que dizia ter alcançado, e no projeto das que alcançaria.
Mas aquela senhora já era uma velha conhecida de Dona Antônia, frequentando esporadicamente a praça ao visitar um parente que vivia nas redondezas, e apesar do discurso exagerado, muita gente ali sabia que o que ela dizia era mais criação de sua cabeça do que propriamente realidade. Na verdade, para quem já tivesse vivenciado o desconforto de com ela conversar, saberia que as promessas e projetos que ela expunha que faria com certeza já eram figurinhas carimbadas, falas repetidas, que acabavam sendo decoradas por quem tinha o costume de ouvi-las, como o faz uma pessoa que já assistiu o mesmo filme por diversas vezes.
Mas Toninha, com sua habitual paciência (em muito adquirida no trato com o marido sisudo) a tudo aguentava com um discreto sorrisinho no rosto, parecendo até mesmo se divertir ao rever aquela mesma cena reprisada diante de seus olhos, e a diversão que sentia parecia aumentar quando via os passantes que já conheciam aquela ladainha revirando os olhos e desviando o caminho ao verem a já conhecida visitante com seus discursos exagerados e delírios de grandeza.
Mas um deles, posicionado um pouco à distância, não revirava os olhos e nem parecia incomodado com a presença da estranha, mas a tudo assistia, atento a cada coisa que a mulher falava, como um profissional que analisasse algum trabalho sendo feito sob sua supervisão. Sentado em sua costumeira pose despretensiosa, com uma das pernas finas de sariema cruzada sobre o outro cambito e apoiando o queixo em uma das mãos, Sapiêncio fitava com olhos interessados, quase vidrados cada palavra que a visitante dizia, como se estivessem em uma sessão e ele fosse o psicólogo escutando o paciente.
Toninha reparou na figura peculiar que as fitava, reconhecendo com um ar divertido o frequentador assíduo do boteco de seu marido, que lá ia diariamente em busca de um prato de comida, abordando vez por outra algum estranho desavisado que pegava para Judas com suas perguntas absurdas e interpelações estranhas. Quando percebeu que Sapiêncio prestava atenção no que a mulher falava, pensou consigo mesmo que aquilo podia de fato se tornar divertido.
Enquanto isso, a senhora falava de conquistas (que pareciam absurdas demais para serem verdadeiras) e dos projetos que tinha para o ano que entrava, e que poria em prática tão logo o ano virasse, ou melhor, tão logo a primeira semana do ano passasse, já que no início do novo período as coisas não funcionavam tão bem como no restante do calendário.
Nas palavras, Toninha reconheceu não apenas uma, mas várias, talvez até mesmo todas as promessas e planos que a mulher fizera em anos anteriores, e perguntou-se quando finalmente ela os acionaria, se é que já tinha colocado em prática algum deles. Enquanto isso ela falava, e falava e falava, ouvida por Dona Antônia, que apenas acenava em concordância enquanto tomava despretensiosamente sua água de côco.
“Resoluções, resoluções
Sempre planejando, sempre sonhando,
Mas o que sobra nos desejos
Nos falta em nossas ações.”
A voz profunda de Sapiêncio foi reconhecida de imediato por Dona Antônia, que naquele momento sorriu abertamente, antevendo a situação que se desenrolaria a partir da intervenção do mendigo, da mesma forma que ocorrera tantas vezes antes. Já a mulher calou-se repentinamente, buscando o dono do comentário e espantando-se ao observar de onde ele saíra. Olhou de cima abaixo Sapiêncio, com seus cabelos desarrumados, suas pernas e braços finos e suas roupas grandes demais para o corpo magro, e só não riu de sua aparência de bufão porque estava ofendida o suficiente com a interferência sem modos em sua fala.
- Perdão? – Disse ela, com um floreio exagerado na voz que denotava a intenção de parecer refinada, o que Dona Antônia e boa parte das pessoas que a conheciam sabiam não ser verdade.
- Perdão? –Respondeu Sapiêncio, com o maior ar de desentendido que a mulher já tinha visto na vida.
- Perguntei primeiro. – Disse a mulher, com ar de ofendida.
- E eu perguntei porque não entendi o que me perguntou. – Continuou Sapiêncio.
A mulher olhou-o de cima abaixo, visivelmente incomodada, e depois virou-se novamente para Dona Antônia, que bebia sua água no canudo, disfarçando um ar de riso. Continuou então a falar sobre o que faria dali a uma semana, um mês, seis meses e daí em diante, sem sequer desconfiar que Toninha sorria por dentro pensando que se ela imaginava que o mendigo parara por ali, estava redondamente enganada.
“Sempre querendo ir alto
Tão alto quanto o céu
Mas de que servem planos
Se não saem do papel?”
Daquela vez Toninha não conseguiu conter o riso, e por pouco não pôs para fora a água que estava bebendo. O gesto não foi percebido pela mulher porque esta já se virara em direção a Sapiêncio, que com cara de quem não estava ali limitava-se a olhar para as árvores, sustentando na face a maior cara de pau que Dona Antônia já vira na vida.
- O que disse? – Perguntou a mulher, com o tom de quem quer receber explicações de alguém.
- Muita coisa. – Respondeu Sapiêncio.
- Não entendi.
- Disse muita coisa desde que nasci, depois que aprendi a falar, claro, então preciso que me diga o que foi que eu disse, para que assim eu possa dizer o que eu quis dizer com o que foi dito.
- Está de brincadeira comigo?
- De forma alguma. – Respondeu Sapiêncio, em tom conciliador. – Mas se quiser, conheço algumas divertidas.
- Algumas o que?
- Brincadeiras, ora, perguntou se eu estava brincando, supus então que isso era um convite.
- O senhor não tem mais o que fazer da vida? Não vê que estou em uma conversa particular? Não tem respeito pelas pessoas a ponto de ficar interrompendo-as enquanto falam?
- Mas eu não interrompi ninguém. – Sapiêncio a fitava como se aquela fosse a constatação mais óbvia do mundo.
- Claro que interrompeu, quando começou a fazer esses versos idiotas enquanto estávamos aqui, no meio de uma conversa entre amigas. - Dona Antônia sentiu vontade de soltar um sonoro “Ahn Ahn” pigarreado ao ouvir a palavra “amigas”, mas preferiu deixar aquilo para outra ocasião.
- Mas eu não fiz esses versos, apenas recitei. Eles foram feitos pelo meu pai. Aliás, talvez tenha sido o meu avô. Nunca lembro. Mas não importa, ambos já se foram, e agora só posso recitar os versos que um dia um ou outro fizeram.
E ao terminar a explicação Sapiêncio deu um longo suspiro e ficou cabisbaixo. A mulher mudou repentinamente de expressão, e arrependeu-se de ter falado mal dos versos recitados por ele. Era dada a delírios de grandeza, e gostava de falar demais também, mas ainda assim não era uma pessoa de todo ruim, e sentiu-se mal pelo modo como o mendigo ficara com o que ela dissera.
- Sinto muito. – Falou, agora em um tom bem mais moderado que tinha pretensão consoladora. – Não quis ofender. Não sabia que tinham sido seu pai ou seu avô que tinham feito os versos, e muito menos que já tinham morrido.
- Oh, mas eles não morreram. – Retorquiu Sapiêncio, voltando a encará-la com o olhar espantado, como se a mulher tivesse falando algo inteiramente sem sentido.
- Como não? – Perguntou a senhora, igualmente confusa. – Você acabou de dizer que já tinham partido.
- Sim. Partiram ano passado, no ônibus que levava para o interior, onde agora estão morando em uma chácara. Até me convidaram para ir, mas sou muito cosmopolita para o campo, e prefiro as opções que a cidade tem a oferecer. – E nesse momento sacudiu os cabelos desgrenhados, com um ar de importância. - Por isso sinto tanta falta deles, e recito os versos, porque foi a única coisa que me deixaram. Além de uma muda de roupas, é claro.
A mulher encarou o mendigo nitidamente ofendida, como se tivesse acabado de cair no conto do vigário, e de tão revoltada não percebeu que Dona Antônia, tendo pequenos espasmos, fazia uma força descomunal para deixar os risos imperceptíveis e não cair na gargalhada, dando pequenos saltinhos com uma das mãos na boca.
- O senhor... o senhor... o senhor é um palhaço! Um tratante e um tremendo de um mal educado. – Os olhos da mulher chispavam enquanto ele jogava aquela torrente de impropérios em direção a Sapiêncio, que em nada alterou sua expressão, agora se mostrando analítica em meio àqueles xingamentos.
- Palhaço não sou. – Retorquiu educamente. – Embora tenha tentado entrar para o circo uma vez. Mas o dono disse que eu falava demais e que o irritava com minhas perguntas. Até hoje não sei porque ele pensava assim. Também não sou tratante, porque não tenho dinheiro, e se não possuo e não gosto do vil metal, não tenho ganas de comprar as coisas que se vendem por aí, e muito menos de pedi-lo emprestado a alguém, logo, não passo a perna em ninguém, o que revela que não sou velhaco e, consequentemente, não sou tratante. Quanto a ser mal educado... – E nesse momento parou, olhando para o nada e repetindo seu costumeiro gesto de passar o polegar e o indicador pela extensão de seu queixo magro, o que mostrava que estava matutando alguma ideia em sua cabeça. – Confesso que não posso responder que não, já que a educação varia de ponto a ponto, mas também não direi que sim, e explico. Por exemplo, não fui educado nos costumes dos jantares de etiqueta, o que leva a concluir que de fato sou mal educado. No entanto... – E aqui ergueu o dedo indicador, fino como um graveto. – Trato todos com cordialidade e respeito, sendo assim... sou mal educado, e ao mesmo tempo não sou. Então, quanto à última observação de vossa senhoria, só posso afirmar que digo que sim, mas penso que não.
“É doido”, pensou a mulher, com a cabeça fervilhando. Suas ideias tinham se embaralhado completamente depois das primeiras palavras de Sapiêncio, e o modo como aquele mendigo não parecia falar coisa com coisa, aliado com sua aparência completamente estranha e seus trejeitos peculiares só a deram uma ideia do que ele era, e assim, voltou a repetir para si mesma. “É doido. Só pode”.
- Mal educado é, porque interrompeu nossa conversa, e peço para que tenha um mínimo de modos e não fique soltando indiretas em forma de versos. – Disse ela, desaforadamente.
“A indireta surgiu
A indireta saiu
E se efeito causou, foi porque...
A carapuça serviu”.
Depois daquele novo verso, cantando em forma de samba, Sapiêncio fez um bico enquanto revirava os olhos para o lado, com uma cara de pau ainda maior do que a que tinha feito antes, e por mais que tentasse evitar, Dona Antônia cedeu às investidas do riso, e um sonoro “hihihi” escapou por sua boca, causando ainda maior irritação à mulher, que agora tinha ganas de pular no pescoço do mendigo.
- Você tenha respeito, seu desaforado. Não lhe conheço para que fique falando esse tipo de coisa de mim, e a carapuça não serviu coisíssima nenhuma.
- Então por que disse que eu tinha soltado indiretas? – Sapiêncio olhava para ela, com ar perscrutador. – Se a carapuça não serve, então não seriam indiretas. Ou não?
- Ora, me poupe de suas perguntas idiotas. – Retorquiu ela, acusando o golpe. – E saiba que não serviram mesmo, pois sou uma mulher decidida quanto a tudo o que faço, e todos os meus planos e resoluções saem do papel, ao contrário do que insinuou.
- Hum, e esses planos são importantes?
- Claro que são importantes, do contrário não os faria.
– Hummm. – Sapiêncio voltou a perder-se, parecendo olhar para lugar nenhum. Então quando a mulher parecia dirigir-se para continuar a conversa ele voltou a falar. – Pode me dizer um deles?
- E por que a curiosidade? – Quis saber a mulher, uma vez mais impaciente.
- Porque gosto de planos importantes. E de saber como as pessoas alcançaram conquistas tão relevantes. E a senhora parece ser uma dessas pessoas.
“Aí tem coisa”, pensou consigo Toninha, ao ouvir o desvio que Sapiêncio dera no rumo da conversa, chegando mesmo a direcionar aquele elogio à mulher. Para quem a visse de longe, era evidente que gostava de se pavonear, e para quem gosta de se promover dessa forma, qualquer elogio é alimento, combustível e estimulante para continuar tecendo loas à si mesma.
- Hum... é. Que bom que reconhece. – Falou a mulher, de nariz tão empinado que por pouco não apontava para o céu.
- E então?
- E então o que? – Perguntou ela.
- Não vai me contar nenhum? – Insistiu Sapiêncio.
Para quem não fosse familiarizado com o mendigo e suas maluquices, pareceria que de fato ele estava curioso para saber sobre as resoluções e planejamentos da mulher, mas o fato mesmo, e que foi de cara percebido por Dona Antônia, era que Sapiêncio jogara a isca, e aquela senhora a estava observando, faminta e ávida por mordê-la, o que invariavelmente acabou fazendo.
- Muito bem, se insiste em saber, posso contar um ou dois deles. – Respondeu ela, com ares de suma importância. Sapiêncio sorriu abertamente, mostrando quase que inteiramente os dentes tortos, porém bem cuidados. Era estranho como parecia um mendigo, e às vezes não se assemelhava nem um pouco a um morador de rua. – Um dos planos que fiz foi o de abrir um restaurante. Modéstia à parte, cozinho muito bem. Mas não quero fazer algo chinfrim, sabe? Como uma cantina ou algo do tipo... – E nesse ponto Toninha reconheceu uma pontada de provocação ao boteco do marido, mas não achou que valeria à pena reagir. – Quero mesmo é coisa chique, de alto padrão.
Sapêncio fitava a mulher com algo parecido com um “O” no local da boca, nitidamente (ou fingidamente, não havia como saber quando se tratava daquela figura) ele estava impressionado com as coisas que a mulher falava sobre garçons de smoking, talheres e pratos de primeira categoria, taças de cristal e vinhos do mais alto padrão.
- Nossa! – Disse ele, quando a mulher acabou de falar. – Espantoso! Deve estar dando um trabalho enorme fazer isso.
- Não comecei ainda. – Respondeu ela.
- E por que não? Uma coisa tão grande assim já deveria ter sido iniciada, principalmente com a senhora tendo pensado em tudo.
- Não tive tempo. – Limitou-se a dizer. – Por isso coloquei como resolução do ano que entra.
- Hummm. Uma pena não ter começado ainda. – Sapiêncio olhava para algum ponto distante, como se estivesse imaginando o restaurante a partir da descrição dada pela mulher, mas havia algo mais naquela cachola tão bagunçada que ele chamava de cabeça. Enquanto isso, Toninha voltara a tomar sua água de coco, lembrando-se que no ano anterior a sua interlocutora dissera as mesmas coisas, sobre o mesmo plano, inclusive colocando-o como resolução para o ano seguinte, que agora estava prestes a se tornar ano passado, tendo feito o mesmo no ano anterior a este, e no anterior, e no que havia passado antes, ou seja, o tempo passava, mas o restaurante nunca vinha.
- Uma pena mesmo. – Disse ela. Mas a coisa envolve muitos detalhes que têm de ser cuidadosamente resolvidos.
- E tem outro? – Perguntou ele, parecendo ter perdido a empolgação no restaurante e buscando uma nova. A mulher animou-se com aquela nova questão.
- Uma loja! – Falou, enquanto levantava as duas mãos formando com elas um retângulo, como se por ele pudesse ver um filme ou uma imagem. – Uma loja de roupas chiques, para mulheres igualmente chiques e refinadas, como eu. Com champanhe na recepção, espelhos por toda a parte, música ambiente e vendedoras que falem mais de um idioma. Coisa de primeira categoria.
- Esplêndido, fantástico, impressionante. – Sapiêncio parecia extasiado com a descrição. – E onde fica essa loja?
- Ainda não abri. – Continuou ela. – Muitos detalhes envolvidos. Alvará de funcionamento, contato com fornecedores, contratação de funcionárias qualificadas, aluguel do ponto, reformas. Muita coisa. Coloquei como resolução de ano novo.
“Assim como no ano passado, e no ano anterior, e em pelo menos três antes deste último”, pensou Toninha. “Todo ano é a mesma ladainha, as mesmas promessas, as mesmas resoluções, e quando o ano acaba, as mesmas desculpas”. Mas preferiu não dizer nada. Olhou então para a garrafa de água de coco que tinha nas mãos e lamentou por ver que estava vazia. Ainda cogitou a ideia de ir ao boteco de Seu João pegar mais uma, já que a tarde estava quente, mas preferiu ficar para ver qual seria o desfecho da conversa entre aquelas interessantes figuras.
- Mas qual! – Sapiêncio espantou-se. – Também não abriu?
- Como disse, são muitas questões envolvidas. Não é tão simples assim. – Falou a mulher, olhando-o de cima.
- E desde quando as realizações são simples? É como minha avó dizia, minha vózinha que já se foi:
“Constroem o que sonham
As mãos que se calejam
Pois elas realizam,
Aquilo que almejam”.
- Sua avó também se foi para morar na roça? – Perguntou a mulher, meio que curiosa, e meio que ofendida com a nova indireta.
- Não, não. Essa morreu mesmo. – Respondeu Sapiêncio, com a naturalidade de uma criança, enquanto conferia as unhas, vendo que tinha uma sujeirinha aqui e outra ali para limpar. - A pobrezinha, teve um problema na cabeça.
- Doença? – A curiosidade da mulher era tão grande quanto a ofensa que sentia.
- Não, não. Uma jaca caiu em sua cabeça enquanto ela dormia embaixo da jaqueira. Pobrezinha.
A mulher arregalou os olhos para ele, agora duplamente irritada, mas conteve os xingamentos para justificar porque não pusera ainda os planos em prática.
- Pois repito, as coisas não são tão simples assim. Requerem cuidado e planejamento. Por isso as coloquei como resolução de ano novo, já que nos próximos meses colocarei tudo em prática.
- Mas lembro que ano passado a senhora disse a mesma coisa. – Ainda olhava as unhas, lembrando que estivera ali ouvindo a mesma conversa no ano anterior, sem, no entanto, envolver-se, o que, em se tratando de Sapiêncio, era uma exceção a ser considerada.
- Lembra como? Se é a primeira vez que nos falamos?
- É que eu estava aqui, matutando sobre a vida e tudo o mais, e ouvi a senhora falando com Dona Toninha. Queria ouvir os passarinhos cantando, mas como vossa mercê fala um pouquinho alto, acabei ouvindo a conversa.
- Pois devia ter feito agora o que fez da outra vez, ficando calado.
- E a senhora devia fazer agora diferente do que fez da outra vez. – Retorquiu Sapiêncio, com naturalidade.
- Diferente como?
- Diferente oras. Parando de falar e começando a fazer.
- Mas era só o que me faltava. Receber lições de como agir de um mendigo metido que fica de mutuca e interfere nas conversas dos outros. Por acaso entende algo de negócios para ficar me dando palpite?
- Entendo que se não tirarmos o negócio do papel, ele continua sendo um negócio, mas apenas de papel.
- Que parte do “não é tão simples assim” você não entendeu?
- A parte em que a senhora nunca começou a enfrentar essas coisas que não são tão simples assim. O que é complicado se complica mais ainda se o complicamos com nossas complicações. – Tirou os olhos das unhas, descruzou um cambito de cima do outro, para cruzar o outro em cima do um, e olhou para a mulher com aquela expressão de quem acabara de dizer algo óbvio.
- E acha que é fácil assim? Primeiro eu precisaria de um empréstimo. Depois de pesquisa de mercado. Depois de bons fornecedores, de comidas ou de roupas, e depois disso tudo, teria que cuidar das reformas, do material e da contratação dos empregados, além, é claro, do treinamento de cada um. O que um mendigo como você sabe disso?
- Sei o que já disse que sabia. Que realmente não é fácil, e que o simples mesmo é ficar olhando para o papel e ficar com a cabeça nas nuvens pensando em como seria, sem nunca fazer nada para que venha a ser. E se continuar aqui, aposto que ano que vem estará aqui, falando a mesma coisa, tim tim por tim tim. – E franziu a boca, elevando as sobrancelhas para a mulher.
- E eu aposto que continuará sendo um mendigo intrometido e metido a esperto. – Provocou ela.
- Mas ora, é claro que sim. Não tenho planos de ir a lugar algum além desse. A não ser que tire umas férias para visitar meu pai e meu vô na roça, e aprender alguns versos novos com eles.
- Férias de que? – Perguntou, empinando o nariz. – Quem tira férias é quem trabalha.
- E eu trabalho com meus pensamentos. E pensar não é nada fácil, senhora. Quando começamos a pensar, vamos pensando mais um pouco, e esse pouco puxa mais pensamentos, até que a cabeça fica tão cheia que começamos a pensar em parar de pensar. Penso que isso é deveras cansativo. – E deu um suspiro, como se estivesse fatigado. – Às vezes a pessoa pode acabar ficando doida. – Disse quase num sussurro, arregalndo os olhos para ela, como que para provar seu ponto de vista.
- Pois eu digo que o senhor não sabe é de nada, e que é muito metido, além de... bem... de doido! E não vou ficar mais um minuto sequer aqui, perdendo meu tempo com um maluco que fica falando bobagens. Passar bem! – E saiu, pisando forte, fazendo ecoar o som do impacto de seus tamancos no chão da praça.
- Passar bem, senhora. E um feliz ano novo. Espero que tire as resoluções do papel, mas se não tirar, estarei aqui, para ouvir novamente seus planos ano que vem. – Retorquiu Sapiêncio, sorrindo e mostrando a fileira de dentes tortos, no que a mulher virou-se, e ficou ainda mais revoltada, por pouco não esbarrando em um casal que tomava sorvete mais à frente.
- Você não é fácil hein? – Disse Dona Antônia, sorrindo para ele.
- Por quem me tiras, Dona Toninha? Fácil eu sou. Difícil é imaginar como deve ser passar a vida apenas sonhando enquanto os outros estão realizando. Traçar objetivos é algo muito bom, mas melhor ainda é alcança-los.
- E quais são seus objetivos para o ano que entra?
- A longo prazo? Continuar este árduo trabalho que é filosofar sobre as coisas. Ai, ai, como é difícil essa vida. A curto prazo, tomar uma bela sopa no boteco do Seu João. Mas para alcançar esse último, vou precisar da sua ajuda para convencer seu marido, porque hoje ele parece estar um tantinho que irritado. – E piscou um olho para ela.
- Tem meu total apoio. – Respondeu Toninha, com um sorriso.
- Viu? – Sapiêncio a fitou com um olhar repleto de razão, e ergueu o dedo magro, como se fosse passar uma lição. – Se eu não tivesse lhe pedido, o objetivo da sopa teria ficado no plano da vontade, e para tristeza da minha barriga, não teria se cumprido.
Toninha sorriu, enquanto se levantava para seguir Sapiêncio, que animado já sacolejava o corpo magricela e desajeitado enquanto caminhava animado para o boteco, falando sozinho, para variar um pouco. “É doido mesmo”, pensou ela. “Mas ao menos é um doido sensato”. E foi atrás do mendigo, para convencer o marido a dar-lhe um prato de sopa e ajudar Sapiêncio a alcançar o último objetivo do ano, ao mesmo tempo em que se perguntava quais peripécias ele aprontaria no ano seguinte.
E no ano novo Sapiêncio de fato voltará, tirando o juízo de algum desavisado que venha a cruzar seu caminho.
Um beijo para o meu amor, que me deu a ideia para esse conto.
E um feliz ano novo a todos, abençoado por DEUS.
O Aniversariante
Nevava lá fora, em meio à noite gelada e silenciosa que era cortada pelo vento frio, balançando levemente os flocos que dançavam no ar, flutuando graciosamente antes de chegarem ao chão, juntando-se ao restante dos que já tinham concluído aquela lenta viagem e formado no solo pequenos e brancos montes que se espalhavam pela rua.
As ruas estavam vazias, tomadas apenas pela neve acumulada, visitadas esporadicamente por um ou outro carro que as cruzava com destino ao compromisso comum a quase todos os habitantes daquela pequena e simpática cidade do interior, e no saguão frio e extenso daquela rodoviária, cujo chão brilhava de tão encerado, não era diferente.
No auto falante, uma música natalina ecoava pelo ambiente, que era ocupado apenas por um faxineiro, que passava levemente o esfregão em um dos trechos ainda não abrilhantados por aquela lenta e demorada tarefa, um sonolento funcionário que lutava para não dormitar no guichê de uma das únicas duas empresas de ônibus que ali faziam linha, e um rapaz, que cabisbaixo sentava-se no banco frio enquanto esperava pelo momento em que seria autorizado seu embarque.
O jovem, bem agasalhado com um grosso casaco, calças para frio, botas de caminhada e um gorro pouco convencional na cabeça, fitava distraidamente um livro aberto, parado em uma página que sequer estava lendo, com o pensamento perdido na distância e com uma pergunta que martelava constantemente sua mente. Era certo o que estava fazendo? Seria para tanto? Não estava exagerando?
Não sabia dizer se sim, ou se não, o que sabia era que estava cansado de ser ignorado, de ser visto sem de fato ser enxergado, de ser só mais uma sombra vivendo em uma mesma casa com um pai que não parecia reparar que ele existia. Uma casa com memórias e saudades demais de uma mãe que morrera havia pouco tempo. Agora, pai e filho pareciam ser apenas dois estranhos vivendo sob o mesmo teto, e o que acontecera no dia anterior fora a gota d’água para que tomasse a decisão que já vinha adiando havia um tempo. A de ir embora de uma vez.
Enquanto pensava, enquanto lembrava, enquanto se questionava, aquele rapaz, no alto de seus dezessete anos, não reparou que uma outra pessoa, além do faxineiro e do sonolento funcionário do guichê, se aproximava. Um homem alto, igualmente agasalhado, esfregando as mãos enluvadas enquanto caminhava em sua direção. Também usava um gorro na cabeça, e a gola do grosso casaco cobria-lhe o rosto até o nariz, o que o impedia de ver melhor a face daquele que estava chegando.
“Tomara que não venha puxar conversa, porque não estou nem um pouco a fim de papear agora”, pensou o rapaz, lembrando-se que na pequena rodoviária havia apenas dois bancos, um de costas para o outro, o que obrigava os passageiros a sentarem-se próximos, dando ensejo muitas vezes a uma conversa puxada aqui e ali, o que ele não desejava de forma alguma naquele momento.
O receio do rapaz aumentou quando o homem sentou-se a cerca de um metro e meio de distância dele, no mesmo banco, e não no outro que ficava às suas costas, e logo imaginou que mais hora, menos hora viria uma pergunta ou um comentário, daqueles tipicamente usados para dar início a um diálogo. Checou então o relógio, e viu que ainda faltavam meia hora para a chegada de seu ônibus. Fingiu então que estava concentrado no livro que tinha nas mãos, mesmo sem prestar atenção alguma nele. Seus pensamentos ainda estava presos nas perguntas sobre os resultados da atitude que estava para tomar.
- Cara, que frio está lá fora. – Disse o estranho, correspondendo aos temores do rapaz e puxando assunto naquela noite solitária. – Pensei que meus ossos fossem congelar.
O rapaz limitou-se a responder com um grunhido, o que pareceu suficiente por alguns segundos, os quais o estranho permaneceu calado, distraído com alguma coisa que o jovem não soube e nem quis saber o que era. Tentou concentrar-se na página do livro, mas não conseguiu, e o pouco de concentração que tinha foi quebrado pelo auto falante da rodoviária, que cessou por um momento a música natalina para avisar o tempo que faltava para o ônibus chegar.
- Nossa. Vai demorar ainda. – O estranho voltou a falar. – Essa demora me deixa mais ansioso. Estou louco para ver meu pai e minha mãe. Está indo ver os seus pais também?
O rapaz acabou se irritando com a pergunta, achando-a invasiva demais, especialmente porque era exatamente o contrário o que estava fazendo, se afastando do pai ao invés de ir vê-lo, e chegou a virar-se para o estranho já com um belo “não é da sua conta” preparado na ponta da língua, mas assim que olhou para o homem ao seu lado e viu pela primeira vez o seu rosto, foi demovido da ideia.
O estranho tinha retirado o gorro e abaixado a gola do casaco agora que estava no interior da rodoviária com aquecimento ambiente, e o rapaz pôde ver que tinha cabelos ondulados que caíam até um pouco abaixo das orelhas, e uma barba rala mas bonita, se espalhava por seu rosto magro. Aparentava não ter mais que trinta anos, tinha olhos castanhos e expressivos, e sustentava um sorriso calmo e sincero, daqueles que aquelas poucas pessoas que passam calma às outras carregam, e foi exatamente aquele sorriso que fez com que a frase pronta preparada pelo jovem voltasse da saída de sua boca para dentro de si mesmo.
- Não. – Limitou-se a responder, voltando a olhar para o livro que não estava lendo.
- Não vai passar a véspera de natal com sua família? – Insistiu o estranho, lembrando a data que aquela noite representava. – Com amigos, então?
O rapaz impacientou-se novamente, mas não quis olhar para o homem ao seu lado, e ao invés disso apontou para o livro, como se quisesse dizer que o estranho estava atrapalhando sua leitura.
- Humm. – O som saiu da boca do homem enquanto ele inclinava levemente a cabeça para ler o título do livro. - “Um Conto de Natal”, de Dickens. Bem próprio para essa época. É uma história e tanto, especialmente pelo que acontece... você sabe, com o personagem.
Falou daquele jeito tentando ter o cuidado de não revelar o que acontecia com o velho Ebenezer Scrooge, personagem principal daquela história, apesar de o rapaz saber exatamente o desfecho daquela da narrativa, que já vira em filmes, desenhos e especiais de natal adaptados da obra. O cuidado em não dar o famoso “spoiler” fez com que o jovem achasse engraçada a atitude, e diminuiu a já pouca antipatia que ele sentia pelo estranho.
- Em que parte do livro está? – Insistiu o homem.
“Nossa, esse cara não vai desistir”. Pensou o jovem, revirando os olhos. “Era tudo o que eu queria, um papagaio de pirata tagarela e curioso que não vai parar a boca. E o pior de tudo é que não tem mais ninguém aqui para ele encher o saco com todo esse falatório.
- Na parte em que o fantasma do natal futuro visita ele. – Respondeu sisudo, demonstrando que a conversa não lhe trazia qualquer satisfação.
- Ahh, a parte mais sombria da história. A que mostra ao velho Scrooge onde as escolhas dele vão acabar levando. Não seria ótimo se soubéssemos com antecedência onde as consequências de nossos atos levariam?
“Seria ótimo se você me deixasse em paz. Não estou com o mínimo saco para esse tipo de conversa.” Pensou o rapaz.
- Na verdade, acho que todos nós recebemos a visita de alguém que tenta nos mostrar onde nossas escolhas levarão. – Continuou o estranho. - Alguns chamam de consciência. Outros de anjo da guarda. De qualquer forma, esse algo ou Alguém está sempre lá.
- Não acredito nessas coisas. – Disse o rapaz, cedendo às investidas do estranho antes que se desse conta de que acabara entrando na conversa da qual queria com tanto afinco fugir. Mas sempre gostara de entrar em debates daquele tipo, especialmente quando envolvia suas crenças... ou descrenças.
- Não acredita em Alguém caminhando com você, ou na existência de sua consciência?
O rapaz pensou por instante, indeciso entre ficar calado com seus próprios pensamentos, o que de fato desejava com afinco, e defender um ponto de vista, o que era uma de suas características mais fortes. Não fugia a uma discussão, e sustentava suas ideias com a força de quem carregava uma certeza, e aquele seria mais um momento em que teria a oportunidade de fazer aquilo. Finalmente decidiu por dar ao estranho uma resposta definitiva, que encerraria o debate e deixaria claro que não estava ali para ficar jogando conversa fora.
- Não acredito em algo ou Alguém superior regendo nossos destinos ou sussurrando palavras em nossos ouvidos, e quanto à minha consciência, chamo apenas de praticidade de pensamentos. Calculo o que pode ser proveitoso ou não, meço as possibilidades de erro, e com base no resultado eu ajo. Agora, se me dá licença, estou no meio de uma leitura, e não consigo me concentrar com alguém falando ao meu lado.
- Um matemático. – Disse o estranho, parecendo ignorar o último comentário do rapaz. – Mas por mais bela que seja a matemática, já foi comprovado por a mais b que ela não possui influência nos sentimentos das pessoas. Os sentimentos são ilógicos demais para a ciência dos números. Quando a coisa envolve amor, alegria, raiva e até mesmo tristeza, dois mais dois podem ser igual a qualquer número.
- E o que isso tem a ver com o que acabei de falar? – Perguntou o rapaz, fechando novamente o livro e esquecendo do próprio aviso que tinha dado ao homem ao seu lado, uma vez que voltava a entrar na discussão que a princípio não queria ter.
- Tem a ver que disse que toma suas decisões com base em cálculos frios, mas quando são decisões que envolvem sentimentos, esses cálculos não se aplicam, e por isso quase sempre existe uma pontinha de dúvida envolvendo a coisa. É aí que entra a consciência, ou Alguém maior, no qual já me disse que não acredita, trazendo perguntas e mais perguntas sobre se o que está se fazendo é certo ou não. E para mim, quando tais perguntas surgem, se pararmos para ouvi-las melhor, podemos descobrir que não se tratam de questões, mas de avisos. Como se uma pergunta feita sobre se o que estamos para fazer é certo, seja na verdade um conselho, dizendo que não é certo.
O rapaz fitou o estranho, que lhe dirigiu um breve sorriso, não de zombaria, mas de outra coisa, algo como amizade ou acolhimento, o tipo de sorriso que alguém dá para um parente há muito não visto, e por um instante o jovem ficou hipnotizado por aquela expressão de compreensão que o estranho trazia no rosto. Quanto ao comentário do homem, ele estranhamente se aplicava ao que sentia naquele momento. Era certo o que estava para fazer?
- Sei que estou sendo inoportuno, ou para simplificar, metido mesmo. Mas se me permite a pergunta, você está bem?
- O que quer dizer com isso? – O rapaz pareceu perturbado com a pergunta, esquecendo até mesmo de tentar elaborar uma resposta para rebater o comentário que o estranho fizera anteriormente.
- Bem, parece que está, digamos, indeciso sobre algo. Com uma dúvida corroendo por dentro. Não sei. Talvez seja impressão minha, ou apenas uma observação com base nesse pequena ruga que está fazendo acima dos olhos. Na minha terra dizem que é uma ruga de quem está matutando profundamente sobre alguma coisa.
Em um ato reflexo, antes mesmo que pudesse evitar, o jovem passou a mão na fronte, na exata parte que fica acima do nariz e entre as sobrancelhas, como se quisesse conferir se o que o estranho dizia fazia sentido, e acabou sentindo-se ridículo ao fazer aquilo, especialmente quando viu o sorriso no rosto do homem, não de zombaria, mas aquele mesmo sorriso de compreensão que vira instantes antes.
- Impressão sua. Estou apenas franzindo o cenho porque quero afastar o sono. - Disfarçou o rapaz, percebendo de imediato que aquela explicação não era lá muito convincente.
- Tudo bem. Mas se precisar conversar pode contar comigo. Sou um pouco tagarela, mas gosto de ouvir bastante. Na verdade, estou sempre de ouvidos atentos, a despeito do que algumas pessoas costumam dizer, então, se eu puder ajudar, estou à disposição.
- E por que eu falaria algo do que estou sentindo para um estranho no meio de uma rodoviária? Eu hein, sinceramente, você tem esse costume de sair por aí abordando estranhos?
- Calma rapaz, só quis ajudar, me desculpe se o ofendi. Mas mesmo assim, a proposta está valendo. Vou ficar aqui quieto com minhas meditações e não vou mais atrapalhar sua leitura.
O homem dirigiu ao jovem novamente aquele sorriso, não parecendo nem um pouco ofendido com a resposta arisca que recebera. Então cruzou as mãos enluvadas sobre a barriga, esticou as pernas e fechou os olhos, permanecendo daquele jeito durante os segundos que se sucederam. De seu lado, o rapaz ficara com a consciência pesada. Não tinha o costume de ser grosseiro com as pessoas, nem mesmo com estranhos que inoportunamente o abordavam do nada fazendo perguntas pessoais, e o modo como respondera o deixara incomodado.
Além disso, estranhamente começava a sentir vontade de conversar, especialmente depois que o homem lhe falara sobre as perguntas internas e as dúvidas e questionamentos que surgem quando se está indeciso sobre algo a se fazer. Não sabia como, mas repentinamente passara de um estado de completa falta de vontade de conversar para uma crescente necessidade de se abrir, o que não era de seu feitio sequer quando se tratava de falar com pessoas mais próximas, quanto mais com alguém que nunca vira na vida.
Olhou novamente para o estranho, que continuava com os olhos fechados e as mãos enluvadas cruzadas sobre a barriga. Parecia tranquilo, em paz, e por um instante desejou a tranquilidade que dele emanava. Afastou o olhar para o livro e tentou uma vez mais concentrar-se na página. Não conseguiu. Agora, além das perguntas que se assomavam em sua mente, ele sentia a vontade crescente de continuar com a conversa que momentos antes tentara repelir com tanta veemência.
Há muito sentia a necessidade de desabafar com alguém sobre as coisas que levava dentro do peito, mas era reservado demais, sempre guardando para si o que se referia aos seus anseios e desejos mais íntimos, e mesmo sofrendo com aquela decisão, preferira levar consigo o segredo de sua escolha. Que percebessem o resultado dela depois, se é que dariam por sua falta. Mas agora, com aquele estranho, algo se acendera dentro dele, e do nada sentia uma vontade cada vez maior de abrir-se com aquele inoportuno que chegara fazendo tantas perguntas e silenciara repentinamente.
- Não quis ser grosseiro. – Disse o jovem, finalmente cedendo ao anseio de falar. – Apenas não gosto quando as pessoas ficam fazendo... bem, perguntas pessoais.
- Também não quis ser intrometido. – Respondeu o estranho, sem alterar em nada a posição em que se encontrava. – Mas percebi que estava um pouco ansioso, como se guardasse algo dentro de si e quisesse livrar-se disso. Acho que me enganei.
A vontade que o rapaz teve foi de dizer que ele não se enganara em nada, mas não queria dar o braço a torcer tão rapidamente. Então observou o estranho por um momento, esperando que com aquela abertura ele passasse novamente a puxar conversa, mas o homem permaneceu incólume, sem dizer palavra, e agora o jovem pensava que o estado das coisas tinha se alterado, sendo ele a pessoa com desejo de conversar, enquanto que o outro parecia querer ficar sozinho em sua introspecção.
- Disse que está pegando o ônibus para encontrar seu pai e sua mãe. – Falou o jovem, cedendo uma vez mais àquele estranho impulso de conversar.
- Sim, sim. – O estranho finalmente abrira os olhos, e agora o fitava com aquele sorriso diferente. – Estou indo vê-los, apesar de sempre carrega-los comigo.
- Como assim?
- Força de expressão. Sempre os levo comigo no meu coração, então digo que sempre estão comigo. Mas estou indo vê-los pessoalmente. Amanhã é meu aniversário. Na verdade, daqui a pouco. – E apontou para o relógio da rodoviária, que mostrava que a meia noite se aproximava.
- Hum, certo. Que bom para você. – O jovem ficou calado por um momento, e lembrou-se de um conhecido que fazia aniversário no mesmo dia que o estranho, e que constantemente se queixava de aniversariar exatamente no dia de natal, já que acabava ganhando apenas um presente por ano, enquanto que os outros ganhavam dois.
- Obrigado. Uma pena que não tenha um bolo aqui para lhe dar uma fatia. Ou mesmo um sanduíche. Ou qualquer coisa. Da próxima vez vou ver outro horário para reservar uma passagem. Na véspera de natal, e ainda mais a essa hora, tudo por aqui fica fechado. Não dá pra comprar sequer um bombom.
- Não precisa. Na verdade, nem com muita fome eu estou.
- Dá pra perceber. E como eu disse antes, parece um pouco preocupado também. Mas não vou me meter e perguntar se quer falar sobre isso. Se quiser, podemos conversar sobre outro assunto, ou então ficarmos calados. O que preferir. Mas se me perguntar o que prefiro, já deve desconfiar que é a primeira opção, já que não sou muito de calar a boca.
- Está na cara assim? Que estou preocupado?
- Acho que não só na cara. – Respondeu o estranho, parecendo ler a mente do rapaz, que carregava no peito todas aquelas preocupações.
O jovem calou-se novamente, ponderando se deveria ou não atender o anseio que crescia em seu coração. Precisava colocar o que sentia para fora, conversar com alguém, desabafar, apesar de não ser do seu feitio, e no final, ser aconselhado para tentar sanar ao menos uma parte das dúvidas que o assolavam. Depois de pensar por alguns minutos, disse a si mesmo que já que estava ali, e que já começara a falar com aquele estranho, não custaria nada contar mais uma duas coisas a ele, afinal, não o conhecia, e estava de saída dali mesmo, que mal então poderia fazer aquilo?
- Me perguntou há pouco se eu estava viajando para ver meus pais. Na verdade, estou caindo fora daqui. Estou mesmo é me distanciando deles. – Se era para desabafar, que fosse então direto. – Na verdade, de um deles. Do meu pai. Minha mãe morreu faz pouco tempo.
- Sinto muito. – Disse o estranho. – Pelas duas coisas. Pela morte de sua mãe, e por estar se distanciando de seu pai. Posso perguntar o motivo? Sem querer ser intrometido, é claro.
- Cansaço. Estou simplesmente cansado de ser uma sombra para ele. Alguém que mal vê, mal percebe, e ignora constantemente. – A vontade de dizer tudo apenas crescia conforme o jovem falava, e ele já desistira de perguntar por que tinha tanta necessidade de se abrir com aquele estranho.
- É, confesso que é triste ser ignorado. – Falou o homem. – Sei bem como se sente.
- O seu pai também te ignora?
- Não, não. O meu pai me ama, e muito. Sempre tem uma palavra de conforto, um conselho, ou um direcionamento para dar. Falo das outras pessoas. Elas me ignoram constantemente.
- Invejo você. Pela forma como descreveu seu pai. Queria ter um assim.
“Ah, você tem. Nós temos”, pensou o estranho, sorrindo por dentro.
- Ele sempre te tratou assim? – Perguntou o homem.
- Não. Quer dizer... nunca fomos lá muito próximos. Ele sempre foi um pouco retraído, e quem fazia a ponte era minha mãe. Ela dizia que meu pai era tímido, que me amava, mas não sabia demonstrar como, e que tudo aquilo era apenas o jeitão de bicho do mato dele. Mas depois que ela morreu, nem isso tivemos mais, e hoje ele praticamente me ignora. Parecemos dois estranhos na mesma casa. Até trocamos algumas palavras, mas não há nenhuma amizade, nenhuma relação de pai para filho.
- Entendi. Me permita outra pergunta. Você acha que ele amava sua mãe?
- Se eu acho? O velho era louco por ela. Dava a vida por ela, e depois que ela morreu, ele ficou em frangalhos. Nós ficamos... – O rapaz se retraiu um pouco com a lembrança da mãe, e por um instante seu olhar ficou perdido no vazio, como se estivesse visitando alguma memória do passado. A memória de alguém que agora estava apenas lá, em um tempo que já se fora.
- E agora você está indo embora. Porque acha que não é nada mais que um estranho para ele.
- Sim. Acho que não passo disso. Acho que ele sempre amou apenas minha mãe, e que eu não fazia diferença nenhuma para ele, apesar do que ela dizia. E ontem tive a prova definitiva disso.
- E que prova foi essa?
- Você disse que seu aniversário é amanhã, quer dizer, logo mais. Pois bem, o meu foi ontem, e ele esqueceu completamente. Nenhum abraço, nenhum aperto de mão. Sequer uma lembrança. Nada. Que tipo de pai esquece o aniversário de um filho? Isso só prova que não passo de um estranho para ele.
- É, não é nada legal quando esquecem seu aniversário. As pessoas esquecem o meu todo ano. Na verdade, até lembram a data, mas esquecem de me dar os parabéns.
- Como assim? – O jovem parecia confuso. – Como sabem que eles lembram, se não te dão os parabéns.
- Apenas sei. – Respondeu o estranho. – Mas deixa pra lá. O que quis dizer é que sei como se sente.
- Seu pai é uma dessas pessoas que esquecem seu aniversário?
- Ah, não, não. Meu pai sempre lembra. Ele nunca esquece de mim. Uma vez até achei que ele tivesse esquecido, mas no fim de tudo, ele estava lá. – Nesse momento foi o estranho que pareceu estar com o olhar perdido no vazio, como se lembrasse de algo acontecido há muito, muito tempo.
- É, mas o meu não está lá nem no fim, nem no meio e nem no começo.
- Tem certeza?
- Absoluta.
- Nossa. Isso é muita certeza. Mas me permita perguntar uma vez mais. Me desculpe, é que gosto de perguntar bastante. Você já parou para pensar que ele gosta de você, que ele enxerga você, mas que, como sua mãe dizia, não consegue quebrar a barreira que existe entre os dois? Talvez isso tenha até piorado por causa do sofrimento pela morte dela.
- Não entendi.
- Vou explicar melhor. Você disse que ele sempre teve dificuldade de se entrosar mais, o que às vezes vem da criação ou do próprio jeito tímido de alguém, o que não quer dizer que esse alguém não te ame. Disse também que sua mãe era quem fazia o contato entre vocês, e que ambos eram loucos por ela. Talvez a situação seja diferente do que pensa. Seu pai te ama, mas não consegue se aproximar, porque sempre teve alguém que fizesse isso por ele, e agora está sofrendo demais para sequer conseguir uma aproximação. Não pensou nisso?
- Você por acaso é psicólogo? – Ironizou o rapaz.
- Não. Mas muitas pessoas dizem que sou. – Respondeu o estranho, com um ar divertido.
- Pois para mim isso é falatório de psicólogo. A verdade é que o velho não gosta de mim, e agora vou botar o pé na estrada. Sair por aí, ver o mundo, tentar me encontrar.
- Ah, botar o pé na estrada. Já fiz isso, com um grupo de amigos, há muito tempo atrás. – O estranho sorriu. Um sorriso de quem se lembrava de algo bom.
- Estava tentando se encontrar?
- Não, não. Sempre soube quem era e o que devia fazer, desde rapazinho. Também não estava me distanciando de ninguém, mas tentando me aproximar das pessoas. Deveria tentar fazer o mesmo com seu pai.
- Sem essa. – Disse o rapaz, fazendo um gesto de desdém com a mão. – Ali não tem jeito.
- Você já tentou?
O jovem ia falar algo, mas tão logo abriu a boca, não conseguiu colocar nenhum som para fora, porque não havia nada a ser dito. Naquele momento ele lembrou-se que depois que a mãe morrera não tentara nenhuma vez se aproximar do pai, e que assim como ele, se isolara em seu próprio sofrimento, não tentando um momento sequer puxar uma conversa mais aberta com o velho.
- E então? – Insistiu o estranho.
- Esquece. – Respondeu o jovem. - Mesmo que tentasse não adiantaria de nada.
- Como pode ter certeza, se ainda não tentou?
- Você acha que valeria à pena? Tentar algo com um pai que não apenas esquece o aniversário do único filho, mas que também não dá a mínima para o sumiço dele em plena véspera de natal? Olha isso... – E bateu no relógio com veemência. – São meia noite. É Natal, e sequer uma ligação ele me fez. Olha só. – E puxou o celular do bolso para mostrar ao estranho que tinha razão no que falava. Mas no momento em que olhou para o aparelho, fez uma expressão de espanto, e lembrou-se que quando saíra de casa desligara o telefone, irritado e chateado demais com as coisas para atender quem quer que fosse.
- Como quer que ele te ligue se o celular está desligado? – Falou o estranho, depois de observar o aparelho.
- Droga. Esqueci que tinha desligado.
- E por que não liga? Talvez assim encontre a certeza que tanto precisa.
O rapaz olhou para o estranho por um momento. Então resolveu fazer o que ele dizia, e ligou o aparelho. Assim que o celular foi ativado, o jovem se impressionou com a quantidade de ligações e mensagens que lotavam sua caixa de memória, a maioria do pai, e algumas dos amigos, dizendo que o velho tinha ligado para cada um deles, aparentemente preocupado, querendo saber onde ele estava.
Quando abriu as mensagens do pai, além das perguntas sobre o paradeiro dele, ou se estava bem ou não, havia também um pedido de desculpas, por ter esquecido seu aniversário, um pedido cheio de sinceridade, pois ali o homem revelava o que sentia, o sofrimento pelo que passava, e pedia perdão ao filho por não estar próximo como deveria. Por um momento os olhos do rapaz se encheram de lágrimas, mas ele não deixou que elas caíssem, com vergonha de chorar na frente do estranho.
- E aí? – Perguntou despretensiosamente o homem. O rapaz não disse nada, mas o estranho pareceu adivinhar o que se passava com ele, e continuou. – Quer um conselho, garoto? As pessoas não escutam muito os conselhos que dou, ou às vezes ouvem e fingem que não escutaram, mas mesmo assim continuo os dando. Meu conselho é que levante desse banco duro, pegue essa mochila e dê o fora daqui. Vá para casa. Seu pai te ama. Você o ama, e hoje é Natal, tempo de renascimento. Então viva o renascimento da relação entre vocês. Não quero ser pedante, mas acho que é um excelente conselho.
- É um excelente conselho. - Repetiu o jovem, enquanto lia novamente a mensagem do pai.
- Que bom que reconhece. Agora cai fora e vá para casa enquanto ainda é tempo. E não esqueça de se agasalhar, porque está o maior frio na rua.
- Obrigado. – Disse o rapaz, enquanto levantava e ajustava a mochila, surpreso em como uma conversa que tanto quisera evitar levara àquele resultado. E ergueu a mão para cumprimentar o estranho. – Esqueci de perguntar o seu nome.
- Mas olha, e eu não me apresentei. Onde estão os meus modos? – E tirou a luva de uma das mãos erguendo-a para apertar fortemente a do jovem. Um aperto cheio de vigor e acolhimento. – Meu nome é Emanuel. Muito prazer.
O rapaz sentiu uma onda de choque passar por seu corpo quando apertou a mão do estranho. Uma sensação de paz que nunca sentira em toda sua vida, e naquele momento teve a certeza de que a decisão correta a ser tomada era ir para casa. Estava tão absorto em seus sentimentos que não chegou a dar a devida atenção a algo que vira na mão do homem, agora sem a luva. Uma cicatriz, como se algo tivesse atravessado ela de um lado a outro.
- Obrigado. Mais uma vez. – Falou o rapaz, e virou-se, caminhando rapidamente, com uma crescente vontade de ver o pai.
- Por nada. – Respondeu o estranho, com aquele sorriso apaziguador no rosto, falando mais para si do que para o jovem, que já se distanciava. – É sempre bom renovar as coisas. É sempre bom renovar todas as coisas.
Quando já estava na rua, o rapaz lembrou-se que não dera os parabéns ao estranho. Já era 25 de dezembro. Era Natal, aniversário daquele homem, do estranho que tanto o ajudara a troco de nada, e não querendo ser mais uma das pessoas que não o parabenizavam por aquela data, correu de volta para o saguão, para dar-lhe as felicitações.
Mas ao chegar lá, o banco onde o homem estivera há pouco encontrava-se agora vazio, e não havia o menor sinal dele. Checou o relógio, e viu que ainda não estava no horário de chegada do ônibus, e assim, correu em direção à única pessoa que podia ter prestado atenção ao estranho que ali estivera, o faxineiro, já que o funcionário do guichê já perdera há muito a luta contra o sono, e agora dormia abertamente, com um ronco que podia ser ouvido à distância.
- Boa noite senhor. Pode me informar para onde foi o homem que estava comigo até agora há pouco ali no banco? – O faxineiro olhou espantado para o rapaz, e correu o olhar em direção ao banco, voltando a fitar o jovem, cheio de desconfiança.
- Garoto, por acaso está de sarro comigo?
- Não entendi.
- Não tinha ninguém ali naquele banco esse tempo todo. Só você, falando sozinho.
- Como assim não tinha ninguém? Tinha um homem ali sim. Alto, magro, barba rala, cabelo um pouco grande. Por acaso não viu? Ou está se fazendo de doido?
- Doido é você, moleque, que fica falando sozinho. Me espeite – Retorquiu o faxineiro, agarrando com mais força o esfregão e saindo de perto do rapaz. - Eu hein? Sai daqui, guri, antes que eu chame o segurança.
O rapaz ficou sem entender nada, olhando do faxineiro para o banco, perdido em meio ao saguão vazio. Ainda pensou em procurar o estranho, em ir ao banheiro para ver se estava lá, ou em perguntar ao funcionário do guichê, que roncava alto. Pensou até mesmo em esperar o ônibus, para ver se encontraria o homem embarcando, mas no fundo algo o dizia que o que deveria mesmo fazer era ir para casa.
Saiu então da rodoviária, não sem antes lançar um ou dois olhares para trás, na esperança de ver o estranho. Mas assim que estava a caminho de casa, algo o fez parar, com uma expressão de espanto no rosto. A mão do homem, a cicatriz que ali havia, a barba, o cabelo, o nome...
- Hoje é dia 25. – Disse a si mesmo, parado em meio à noite, com os flocos de neve acumulando-se em seu casaco. – Hoje é Natal. Seu aniversário. Será possível? Ou estou ficando louco?
Olhou uma vez mais para o saguão, onde apenas o faxineiro continuava a passar, solitário, o seu esfregão. Lembrou-se de como o homem falara de seu pai. Seu PAI, que sempre estava com Ele. Então sorriu, sentindo um calor crescendo dentro do peito, mesmo em meio ao frio, porque pela segunda vez naquela mesma noite ele teve a certeza de algo, uma certeza que surgira repentinamente, mas que se fixara definitivamente.
Não, o estranho não estava mais na rodoviária, e ao mesmo tempo estava. O estranho estava com ele. O estranho sempre estivera com ele.
- Emanuel. – Repetiu, sorrindo em meio à noite fria. – Emanuel. Nunca foi um estranho. Nunca. – E assim partiu em direção à sua casa, ouvindo o conselho daquele Homem, que poucas pessoas se deixavam ouvir. O conselho de alguém que o amava, para que fosse ao encontro de outra pessoa que também o amava. Começara o dia achando que não havia amor em sua vida. Agora sabia que havia, e um deles era muito maior que qualquer outro. Ali ele soube que uma vez mais fora salvo por aquele Homem.
Era Natal. Era aniversário de Emanuel, que gostava de ajudar sem receber nada em troca, que buscava as pessoas, mesmo quando elas o rejeitavam, que parava para conversar com elas, mesmo quando elas não queriam conversa, que continuava aconselhando, mesmo quando não era ouvido, que amava incondicionalmente, mesmo quando não era amado, que tem um PAI, que é PAI de todos nós.
Emanuel, que surgia do nada para ajudar, e que gostava de renovar todas as coisas.
Era dia em que o Salvador nascera... e era dia em que o Salvador fazia, e faz renascer. Era Natal.
Um Feliz Natal.
Sapiêncio
O dia estava particularmente belo, com um extenso tapete de azul claro e resplandecente estendendo-se no firmamento com esparsos toques de nuvens alvas em formato de imensos flocos de algodão passeando preguiçosamente aqui e acolá enquanto a luminosidade dourada de um sol fulgurante lançava seus agradáveis raios acalentadores na superfície do mundo.
Abaixo deles, o mundo fervilhava e a vida seguia o natural caminho que costumeiramente tomava, com as pessoas acordando e levantando-se para trabalhar, os animais saindo de seus ninhos e tocas para buscar algo que encheria seus estômagos e as flores desabrochando e brilhando com sua infinidade de matizes variadas que enriqueciam os olhos de seus admiradores.
Em meio àquilo, uma cidade, erguendo-se com suas torres de aço e concreto que ansiavam tocar o céu, com pessoas habitando, trabalhando, comprando ou mera e despretensiosamente passeando em seus interiores. Em meio à cidade, as pessoas, que iam daqui para ali, e dali para acolá, seguindo os planos que traçavam no raiar de cada dia, e que esperavam que se concretizassem, o que nem sempre acontecia. E ainda em meio a tudo aquilo mais, havia uma praça, larga e agradável praça, onde bichos e gentes se mesclavam às plantas para gozarem de alguns momentos de sossego... ou meramente paravam para olhar e falar da vida alheia.
A praça ficava em um bairro que poderia, antes de tudo, ser definido como relativamente calmo, dada sua localização no centro de uma grande cidade, e a intensidade da movimentação poderia em um piscar de olhos, ou piar de ave (e ali haviam muitas nos troncos e nos galhos de antigas árvores) mudar de um agradável calmo, para uma circulação intensa de pessoas.
Vista de cima poderia ser definida como um enorme retângulo com extremidades curvas, o que lhe tiraria a definição de retângulo, dando-lhe alguma outra que as pessoas costumeiramente não saberiam (e realmente não sabiam) dizer qual era. Vista de baixa era o próprio significado de encanto. Árvores antigas e frondosas espalhavam-se, fornecendo a sombra e frescor que eram característicos ao lugar, mesmo nos dias em que o sol resolvia levantar-se com mais vigor, arrancando o suor dos rostos e o arfar das bocas dos que estavam sob seus raios.
No chão, a grama dividia espaço com ladrilhos coloridos que formavam mosaicos com figuras de crianças brincando, animais divertindo-se e pais e mães sorrindo em meio a um dia de alegria, o que era o próprio retrato fiel que representava o dia a dia dos que ali passavam, havendo apenas a exceção das figuras das velhas mexeriqueiras que ali faziam ponto diariamente para colherem suas informações, imitando ávidos jornalistas antes da abertura das redações dos jornais onde trabalhavam.
Além das muretas que cercavam os nodosos e enormes troncos das frondosas árvores, perfeitamente cabíveis para um passante sentar e pôr-se admirar o ambiente que o circundava ou jogar um pouco de conversa fora, havia também diversos bancos de madeira, em várias tonalidades que ajudavam a colorir ainda mais a bela e acolhedora praça.
Mas nada dava mais cor àquela praça do que as flores que ali cresciam. Canteiros e mais canteiros repletos com os mais variados espécimes se espalhavam pelo lugar, colorindo o ambiente e perfumando o ar, alcançando e encantando a olhos e narizes dos passantes, ficantes e habitantes daquela bela praça, estes últimos não falavam, mas trinavam e gorjeavam sua doce música enquanto davam pulinhos pelo chão ou batiam as asas em busca de alimento ou de pequenos ramos que usariam para construir seus ninhos.
E como em toda praça que se preze, havia um carrinho com pipoca e outro com algodão doce. E como em toda praça que se preze, havia um botequim ou barzinho na calçada mais próxima, onde velhos senhores matavam o tempo tomando um café pingado ou um copo de cerveja gelada. E, claro, assim como em toda praça que se preze, havia também um mendigo, abordando os transeuntes para pedir uma esmola, um pouco de comida, ou pura e simplesmente para conversar sozinho deixando um tanto mais nervosos os que por ali passavam.
Mas aquela praça, além de ser mais bela e agradável que as demais, trazia consigo também uma peculiaridade, e era exatamente o mendigo que fazia dela o seu local de trabalho, de lazer ou meramente de estudos, já que, para muitos, o ato de falar sozinho não deixa de ser uma forma de externar seus pensamentos, e quem pensa, logo existe, falando sozinho ou não, o que é, obviamente, uma forma de aprender, de ensinar e, consequentemente, de estudar.
Para as pessoas que habitavam nas redondezas e que tinham o costume de frequentar a praça, ou mesmo para os transeuntes que passavam por ali diariamente, mas que já conheciam as particularidades do local, a presença daquele mendigo se tornara algo comum, de tão habituais eram suas aparições, e em dado momento ele passou a ser visto como mais um elemento integrante da atmosfera que circundava aquele lugar tão especial.
Parte disso se dava em razão de seu comportamento. Sempre educado, tratava bem as crianças, os idosos, e não desrespeitava ninguém, quem quer que fosse. Não bebia, apesar de alguns oferecimentos dos velhos frequentadores do botequim que ficava a um atravessar de rua de distância, e nem fumava, pelo que as mães e as babás que por ali passavam ficavam consideravelmente gratas.
Era limpo, sempre parecia estar asseado e, se não cheiroso, era ao menos neutro, e as roupas, apesar de velhas e gastas eram mantidas arrumadas, o que destoava da visão comum que costumeiramente se tem dos mendigos, um tanto que preconceituosa, mas ainda assim existente. Não era feio, mas também passava longe de ser bonito, lonjura que era ainda mais ampliada quando surgia com sua vasta cabeleira castanha desarranjada, e era exatamente nesses dias que ele se aprofundava em seus devaneios.
No que correspondia à sua idade, pouco se sabia, e alguns lhe davam trinta, já outros, quarenta, tudo dependendo de quão absorto ele estivesse no dia em que era observado.
Quanto ao nome, esse era um mistério tão grande quanto a identidade das pessoas imaginárias com quem conversava em seus debates, por vezes acalorados, por outras, cheios de ensinamentos, e por causa dessa característica recebera um apelido peculiar daqueles que o conheciam, uma alcunha que mesclava troça e ao mesmo tempo reconhecimento à bagagem de conhecimentos que ele trazia.
E havia algo mais sobre ele, algo que definitivamente o fazia destoar de todo e qualquer mendigo que aquelas pessoas já tivessem conhecido, o fato de não gostar de dinheiro. Sempre que pedia a alguém uma ajuda, logo que via o brilho de uma prata ou a cor de uma nota saindo do bolso da pessoa que abordava, ele de pronto recusava, advertindo calmamente que não busca o vil metal, mas apenas um prato de algo que pudesse forrar um pouco do vazio que carregava na barriga, e por isso, o ponto onde mais permanecia era junto ao botequim, onde podia ganhar um prato de comida pago por algum transeunte, ou mesmo cedido pelo dono, um velho barrigudo e um tanto que sisudo com quem travara um relacionamento que ultrapassava a mera cordialidade. E naquele belo fim de manhã era exatamente ali que perto ele se encontrava.
Seu João, o velho dono do botequim fazia o que gostava de fazer todas as manhãs naquele mesmo horário. Escorado no balcão, ele observava atentamente a folha de palavras cruzadas que tanto gostava de fazer, tentando desvendar qual seria a resposta que levaria ao preenchimento daquele novo desafio. No alto dos seus sessenta anos, era um senhor de trato calmo, observador, que gostava de ouvir mais do que falar e que possuía uma reserva um tanto que considerável de comentários sardônicos para os mais diversos temas, os quais usava apenas quando achava por bem fazê-lo.
A barriga, um tanto que protuberante, fazia volume na camisa de algodão, mostrando resistentes botões que suportavam o avanço interminável daquele abdome, e olhos atentos repousavam sob os óculos de aro fino, concentrados na revista, em uma linha composta por algumas letras, mas que de forma alguma lhe davam a mais remota pista de qual seria a resposta para aquela cruzada.
Coçou brevemente a careca, revestida apenas pelos lados de uma fina pelugem grisalha, como se com aquele gesto pudesse tirar da cabeça a resposta para o que buscava, quando repentinamente teve seu olhar atraído para uma figura que entrava em seu recinto. Um homem de terno feito à medida, carregando uma valise de couro e com o cabelo impecavelmente arrumado. “Advogado ou empresário”, pensou consigo Seu João, esquecendo-se momentaneamente da dúvida atroz que lhe assolava na cruzadinha.
O homem entrou no recinto, observando mesas e cadeiras, como se estivesse analisando o lugar, e carregando na face ainda jovem uma expressão que misturava desagrado com resiliência, como se não quisesse estar ali, mas precisasse. Seu João não gostou dele. Achou-o pedante, cheio de dedos e com cara de abusado, mas como não era muito de falar, guardou aquela opinião junto com as tantas outras que deixava depositadas em uma gaveta de sua mente com os dizeres “se for gerar rusga, não fale”.
- Bom dia. – Disse o jovem engomado e bem arrumado, ainda com os olhos cheios de julgamento correndo pelo lugar.
- Bom dia. – Respondeu Seu João, ainda com os olhos naquela quase indecifrável linha da palavra cruzada.
- Servem almoço aqui? – Perguntou o engomado.
- Sim. – Respondeu o dono, revelando que não era lá de muito falatório.
- Me recomendaram esse lugar. - Disse ele, ainda lançando pelos cantos aquele olhar desagradável. – Sou advogado, e tenho uma importância audiência logo mais, no fórum aqui perto. Como não tinha tempo de ir a um restaurante perguntei onde poderia me servir, e me falaram daqui. Disseram que a comida é boa... – E nesse momento a expressão que fez indicava que duvidava muito dessa informação. – e como estou com pressa, acabei vindo.
- As opções estão no cardápio. – Seu João ainda não retirara os olhos das cruzadas, e o tom de voz usado naquelas poucas palavras pareciam levar toda a informação que julgava suficiente passar para aquele jovem pedante. “Não gosto de você, mas vou lhe atender. Limite-se a pedir, e quando acabar pode sair”.
O jovem, que estava faminto, e que também não possuía lá muito interesse por aquele sessentão antipático, resolveu seguir o conselho que lhe chegou implicitamente, e pegou o cardápio que estava no balcão, encaminhando-se para uma das mesas. Ao chegar nela, limpou a cadeira (que não estava suja) com uma careta de desagrado, e passou um dos guardanapos no cardápio, que achou excessivamente oleoso. Já ajustado a um lugar que a ele não parecia se ajustar de forma alguma, ele passou a correr os olhos pelas opções de prato, lançando uma vez ou outra um olhar desconfiado ao velho, que continuava concentrado em sua jornada pela palavra misteriosa que não lhe surgia.
- Com sua licença, nobre e tão elegantemente vestido jovem, mas posso tomar um pouco dessa mercadoria que parece ter de sobra?
A voz surgiu atrás do rapaz, tão calma e afável quanto o era repentina, o que o fez virar-se bruscamente para a pessoa que era sua dona. Ao observar a figura curiosa que lhe falara, vestido em trajes simples que pouco se ajustavam ao seu corpo magro e um pouco desengonçado, o jovem fitou de cima abaixo aquele estranho que surgira do nada, e não conseguiu esconder o esgar de desagrado ao ver que se tratava de um mendigo (ao menos essa foi a impressão que teve).
- Mercadoria? Que mercadoria você quer? – Disse nervosamente, chegando mesmo a pensar que se tratava de um assalto.
- Ora, meu jovem, a que você parece possuir de sobra, é evidente. O tempo. Venho aqui pedir um pouco do seu tempo.
O jovem de terno bem passado e feito à medida olhou confuso para o estranho e depois voltou o olhar para o velho, que continuava concentrado na revista, parecendo não ter percebido a chegada do mendigo, mas na verdade plenamente ciente de sua presença ali, escondendo, ainda, um pequeno sorriso de satisfação por já antever o que viria a seguir. E como não obtinha a atenção do dono do boteco, o advogado voltou-se uma vez mais para o homem parado à sua frente.
- Não vê que estou ocupado? – Disse, com um certo autoritarismo na voz, como se quisesse deixar claro para o estranho que não estava gostando de sua presença ali.
- Mas qual? Vejo que está sentado olhando o cardápio. Se isso for uma ocupação, então ela se assemelha bastante com a minha. – Respondeu sorrindo o estranho, o que lhe dava a aparência de quem não possuía o juízo muito certo, impressão que era acentuada pelos floreios gestuais que fazia enquanto falava.
Uma expressão de nítido espanto, seguida de outra onde podia-se vislumbrar a quilômetros a revolta pelo atrevimento da resposta se formou no rosto do advogado, e ele olhou novamente para o dono do boteco, que em nada parecia ter mudado nos últimos minutos. Respirou fundo, fitou uma vez mais o estranho, e por suas vestimentas deduziu que era um pedinte que passara por ali para colher os frutos do trabalho alheio, sendo essa a opinião que tinha sobre tais pessoas. Resignado, além de revoltado, resolveu dar-se por vencido e perguntar o que o homem desejava, já antevendo o pedido de dinheiro e tentando lembrar-se se carregava alguns trocados naquele fim de manhã.
- Posso saber quem é você, seu nome e o que deseja afinal? Tenho uma audiência logo mais e não posso perder meu tempo. Preciso almoçar logo e ir embora.
- Quem sou não posso dizer, porque sequer descobri isso em todos os anos dessa minha vivência. Meu nome não posso lhe dar, porque já foi um presente dos meus pais, e como é a única herança que tenho deles, a considero valiosa demais para sair por aí entregando-a a estranhos, sem querer ofender, claro. Mas se quiser saber uma forma de me chamar, posso informar-lhe o apelido que recebi dessas doces e gentis pessoas que por aqui passam. Como me emprestaram, acho que posso emprestá-lo também, para que você o use a hora que quiser. Caso queira, pode me chamar de Sapiêncio.
O homem, que por um momento estivera confuso demais com aquela torrente de respostas, uma menos esclarecedora que a anterior, já estava para interromper o mendigo quando ouviu a alcunha pela qual o chamavam, e pasmo com aquele nome absurdo não pôde evitar de deixar escapar uma meia risada, que acabou soando quase como um soluço, mas não deixou de ser percebida pelo dono do apelido.
- Sapiêncio? – Repetiu ele, ainda espantado com o que ouvira. – Mas que tipo de nome é esse?
- Não é um nome, caro advogado. É um apelido, que como já disse, me foi emprestado por estas gentis pessoas. – E passou uma das mãos de um lado ao outro, como se estivesse mostrando ao homem aquelas pessoas. Pessoas imaginárias, foi o que deduziu, já que Sapiêncio apontava para onde não havia ninguém.
- Eu entendi que é um apelido, mas o que raios quer dizer isso?
- Nunca perguntei, não é de bom grado questionar os outros quando lhe emprestam algo, especialmente quando são pessoas tão boas. Aprendi isso com minha bisavó. Ou será que foi com minha avó? Não lembro agora, muita coisa na cabeça. Mas voltando ao assunto, ser polido não me impede de fazer deduções, e sendo assim, acabei deduzindo que é um misto de brincadeira e reconhecimento da parte deles. Reconhecimento porque muitos dizem que sou sábio, apesar de possuir a certeza de que a incerteza é o meu maior conhecimento. E brincadeira, bem, porque vossa senhoria há realmente de convir que é um nome deveras peculiar.
- É muito do ridículo, isso sim.
- Não o julgo, apenas uso. – Limitou-se a responder o estranho, com uma expressão que em nada mostrava se chegara ou não a ficar ofendido.
Na verdade, Sapiêncio gostava do apelido que ganhara dos frequentadores da praça, que mesclava a admiração de alguns com o nítido conhecimento do mendigo (apesar de o próprio sempre negar que possuísse qualquer conhecimento sobre qualquer tema), e a troça que vinha de outros, que consideravam o pedinte apenas mais um doido com ares de pensador. Mas para ele, tratava-se apenas de um nome carinhoso, usado por pessoas que gostavam dele, e por isso, usava-o sem importar-se com o real significado que tinha.
- Hum, ok, tudo bem. – Disse o advogado, para quem a graça do nome já deixara de ser interessante, querendo com bastante anseio voltar à escolha da refeição. - Agora me diga, Sapiêncio, o que deseja? Já disse que estou ocupado e gostaria que me dissesse logo o que quer.
- O que desejo é uma lista grande demais para ser dita em um tempo tão breve. – Respondeu Sapiêncio, depois de um ou dois segundos coçando a ponta do queixo com o polegar e o indicador se encontrando ao final do movimento, como se buscasse em algum recôndito de sua mente a resposta para o que o homem perguntara. – Mas para o momento, gostaria de uma ajuda, se me ajudar puderes, é claro.
- Ah, claro... – Limitou-se a dizer o homem, com uma expressão de quem já parecia saber o que o estranho queria, e levou então a mão ao bolso para procurar alguns trocados que o livrassem daquela presença incômoda.
- O que está fazendo? – Perguntou Sapiêncio, lançando ao homem um olhar analítico.
- Ora, pegando minha carteira. Não é dinheiro o que você quer?
- Sem querer ofender, meu jovem, mas não me recordo de ter feito tal pedido.
- Não? Ahn, bem, pensei que estivesse querendo dinheiro. – Apesar de tentar manter a pose, era visível que o rapaz ficara constrangido, o que arrancara de Seu João, a quem discretamente observava a tudo, um novo sorriso, mas desta vez este não se limitara a ficar por dentro, e dera um breve passeio pela boca do velho.
Sapiêncio voltou a coçar o queixo com aquele gesto que naturalmente indicava que alguém estava a pensar em algo, o que não era diferente com ele. Polegar e indicador iam e voltavam, separando-se conforme subiam pelo maxilar, e voltando a encontrar-se quando alcançavam a ponta do queixo proeminente, enquanto o mendigo lançava ao infinito um olhar perdido, de quem estava passeando nos campos dos pensamentos.
O jovem observava a tudo, envolto em um silêncio que a cada segundo parecia ficar mais incômodo, e ao ver aquela estranha figura, surgida do nada e querendo sabia-se lá o que, a fitar a parede do boteco como se pudesse enxergar além dela, chegou à única conclusão que sua mente conseguiu chegar, e arrematou, dizendo a si mesmo no íntimo de seus pensamentos. “É. Esse é doido”.
- Posso perguntar-lhe algo, meu jovem, abusando um pouco mais da mercadoria que possui em abundância? – Agora era Sapiêncio quem arrancava o rapaz do breve devaneio que este tivera. O moço de terno olhou então para o relógio, nitidamente aborrecido, mas ainda assim cedeu uma vez mais.
- Que seja breve. Preciso almoçar. – Limitou-se a dizer.
- Serei tão breve quanto espero que seja a dúvida que me assola. Me diga, meu amigo cheio de elegância, o que o levou a pensar que eu queria dinheiro?
O rapaz fitou Sapiêncio atônito, alternando entre aborrecido e constrangido. Era claro que pensara que ele queria dinheiro porque parecia um mendigo, e porque poucas pessoas surgem do nada para pedir algo em um boteco, incomodando os demais em pleno horário de almoço, o que era um ato costumeiramente feito por pedintes que queriam, ora bolas, dinheiro. Aquela resposta chegou à ponta da língua do homem de terno, mas ele pensou duas vezes antes de deixa-la sair e acabou guardando-a para si mesmo. “Se é doido, como tenho quase certeza que é, melhor não contrariar”, pensou consigo.
- Prefiro não dizer. – Respondeu ele.
- Não quero incomodá-lo, meu jovem, mas peço que me diga, assim, talvez da próxima vez eu possa mudar algo que tenha feito para não causar mais essa impressão.
O rapaz olhou para Seu João, como que para pedir ajuda, mas o olhar do velho ainda estava fixo na revista – ao menos naquele momento – e constrangido mas ao mesmo tempo aborrecido com aquela persistência incômoda que não lhe dava um segundo de paz para pedir o almoço, ele resolveu ser sincero. Doido ou não, já estava mais do que na hora de acabar com aquela conversa sem sentido.
- Bem, não quero ser indelicado, mas já que continua insistindo... – e deu ênfase à palavra para mostrar que já se sentia por demais incomodado – o que me levou a pensar que queria dinheiro é o fato, bem, de você parecer um pedinte.
- Um pedinte? Um mendigo, você quer dizer. – Sapiêncio parecia tão calmo como alguém que dá bom dia a um conhecido na rua, não demonstrando qualquer ofensa.
- Sim, um pedinte, um mendigo, alguém que pede dinheiro na rua às pessoas que passam.
- Hummm... – O murmúrio do mendigo ecoou levemente pelos ouvidos do advogado, que esperou que Sapiêncio se mostrasse ofendido com o apontamento, mas tudo o que fazia era murmurar enquanto parecia ter se perdido novamente em seus pensamentos (ou o que quer que aquilo fosse) ora coçando levemente o queixo como já o fizera tantas vezes desde que ali chegara, ora cutucando com a ponta do indicador o lábio inferior, minando com aquilo o restante da paciência do homem, que já pensava em fazer a audiência com a barriga roncando, a ter que permanecer ali sendo incomodado.
- E então, vai querer o dinheiro? – Falou o rapaz, com a voz repleta de impaciência.
- Na verdade, meu caro, eu não vim aqui com o intuito de pedir dinheiro, mas tão somente que me disponibilizasse um prato de comida, ou algo que pudesse preencher essa sensação de vazio. Mas como me destes com teu comentário uma nova sensação de vazio, desta vez na mente, sinto urgência em sanar esta última, antes daquela primeira.
“É doido mesmo”, pensou o rapaz, revirando os olhos e deixando a falta de paciência transparecer ao máximo. Olhou novamente para o dono do boteco e revoltou-se quando viu que continuava com aquela estúpida cara enquanto fitava a revista, sem dar a mínima para um cliente que era incomodado por um mendigo em pleno estabelecimento. Mas quando já estava a ponto de levantar-se para dizer umas verdades ao velho e sair dali com a cabeça fervendo e a barriga roncando, sua atenção foi novamente chamada por aquele que tanto o estava incomodando.
- Disseste que pensou que eu fosse um pedinte, um mendigo, para ser mais exato. Então te pergunto, e não tome como ofensa, mas apenas como um questionamento para preencher com a resposta o vazio na mente que acabaste por me mostrar. Não sois também um pedinte?
Aquela era a gota d’água. Sequer lembrava da última vez em que entrara em um boteco, e estava acostumado a frequentar os melhores restaurantes, só tendo ido ali pela falta de opção e pelo tamanho dos roncos que a barriga estava lhe enviando, e de repente era abordado dentro de um lugar que jamais escolheria em outras condições, por um mendigo impertinente e aparentemente maluco, enquanto o dono não fazia nada e permanecia com cara de estúpido tentando encontrar uma palavra que provavelmente nunca ouvira falar, e como ainda faltasse a cereja do bolo, aquele lunático surgido do nada o chamava de pedinte, logo ele, um jovem e já conhecido advogado promissor.
- Como é?! – Seu tom de voz subiu, assim como ele, que ergueu-se de pronto da mesa já intencionando dizer umas verdades ao mendigo. Doido ou não ele tinha passado da conta, e teria de ouvir poucas e boas.
- Calma, calma. – Sapiêncio erguia as mãos com dedos finos em sinal de paz”. – Calma, meu jovem, já disse que não quis ofendê-lo. Apenas fiz uma pergunta com base em uma dúvida que você me trouxe.
- Calma? Você me pede calma? A única coisa que eu vim fazer nessa espelunca... – e nesse momento falou propositalmente mais alto para que o dono do lugar ouvisse todas as letras, sílabas e fonemas do que dizia – foi forrar a barriga com alguma coisa, mas desde que sentei você não me deu um minuto de paz, me fazendo perguntas idiotas e incomodando a todo momento. No fim, me chama de mendigo e ainda quer que eu fique calmo? Por acaso tenho cara de mendigo, seu maluco?
Sapiêncio, ainda com as mãos erguidas em sinal de paz, preferiu não dizer de que o rapaz irritado tinha cara. “Certas coisas devem ser guardadas em uma pequena gaveta dentro da cabeça”, pensou consigo, e apesar de achar que a sinceridade era sempre uma convidada bem vinda, sabia também que determinadas pessoas não gostavam de algumas visitas, por mais bem vindas que elas fossem para as outras, e por isso resolveu ocultar o que realmente pensava da cara do rapaz de terno que vociferava à sua frente.
- A ira não fica bem no rosto de ninguém. – Disse Sapiêncio, ainda tentando acalmar o rapaz. – Isso era o que minha vó me dizia. Ou será que era minha mãe? “Quando avança a idade, fica turva a realidade”, essa era do meu avô, tenho certeza. Quando ficar mais velho vai entender o que quero dizer. Mas volto ao assunto. Peço desculpas se lhe ofendi, e muito mais se atrapalhei seu almoço. É que os pensamentos correm tanto nessa gasta cachola que as coisas acabam ficando confusas e perco o limite do bom senso. Você entende, não é? Ou talvez não entenda, enfim, é algo perfeitamente compreensível ao mesmo tempo em que é dificilmente assimilável...
Sapiêncio falava em uma sucessão de gestos que mais pareciam acrobacias coreografadas enquanto despejava aquela torrente de palavras que pareciam não ter sentido algum para o jovem advogado. Mas a coisa, ainda que tenha sido feita pelo mendigo sem planejamento prévio, acabou funcionando, pois deixou o rapaz tão confuso que o abalo causado pela incompreensão fez com que a raiva desviasse do alvo e tomasse outro caminho. Ao menos naquele momento.
- Mas cá estou eu uma vez mais fugindo do assunto como um colegial irresponsável foge de uma prova. – Continuou Sapiêncio. – Colegiais não deveriam fugir das provas. São pouco úteis, eu sei, essas tais avaliações, mas ainda assim estão lá, e se estão lá não devem ser ignoradas, como as vozes, ou melhor, as perguntas em nossas cabeças. Não acha? Mas que coisa, cá estou me perdendo em pensamentos novamente. Voltando ao que dizia, o que eu quis foi propor um questionamento com foco em um pensamento mais profundo.
- Me chamando de mendigo? – A raiva, que errara o alvo um segundo atrás parecia ter dado a volta para retornar ao caminho que tinha tomado antes da confusão causada pelo pedinte.
- Não o chamei de mendigo. Apenas perguntei se também não te consideravas um pedinte.
- Pedinte, mendigo, é tudo a mesma coisa. Ora bolas, eu não tenho que ficar aqui aturando isso. – O rapaz afastou bruscamente a cadeira, e quando já se preparava para sair dali, Sapiêncio perguntou, com o dedo magro erguido e uma expressão de aluno que não entendeu o que o professor acabou de falar:
- O que faz um advogado?
O jovem parou de repente, em parte ainda revoltado e em parte tentado a retornar e explanar para aquele mendigo um pouco da profissão que tanto o envaidecia. Era vaidoso, aquele jovem, e não perdia a oportunidade de exaltar, para quem quisesse ouvir, a relevância do que fazia. Ao mesmo tempo, aquela seria uma oportunidade para passar na cara de Sapiêncio um pouco de seu histórico e mostrar-lhe que era um profissional promissor, que em nada, nem sequer de longe, poderia ser comparado a um mendigo.
- Não entendi. – Fez-se de desentendido, a vaidade já suplantando a raiva.
- O que faz um advogado? – Insistiu Sapiêncio, fitando o rapaz com os olhos de quem realmente buscava esclarecimento para uma dúvida importante.
- Como assim o que faz um advogado? – O rapaz falava como se a pergunta fosse idiota e aquilo fosse a coisa mais óbvia do mundo. – Um advogado defende pessoas, ora bolas. Prepara ações, oferece recursos, busca os interesses de seus clientes, faz a defesa deles em juízo, garante que constituição seja respeitada, e isso só para falar de algumas responsabilidades.
Sapiêncio assistiu a toda a explicação com um sincero interesse no olhar, balançando afirmativamente a cabeça, com cara de abobalhado, e quando o jovem terminou de falar ele voltou a repetir o mesmo gesto que já fizera algumas vezes naquele curto período em que estivera ali, um tempo que para o advogado fora mais do que suficiente para estressar-se, e não gostou nada ao ver que o mendigo uma vez mais coçava o queixo enquanto os olhos fitavam sabia-se lá o que.
- E como ele faz isso? – Disse repentinamente o mendigo, tirando do advogado qualquer oportunidade de sair rapidamente dali.
- Como assim, como ele faz isso?
- Como ele, digo, vocês, advogados fazem essa defesa? – Sapiêncio agora fitava o homem com uma expressão interrogadora, parecendo de fato uma criança que gostaria de saber um segredo novo.
- Usando nosso conhecimento, é óbvio. O que aprendemos na academia e fora dela, no dia a dia de trabalho e à guisa de muito estudo.
- Mas usam um expediente para isso, certo, ou ao menos para uma das formas de exercer essa tão nobre função. Uma espécie de, como chamam? Ah, sim, petição.
- Sim. – O advogado parecia ter esquecido um pouco do incômodo causado pelo mendigo, e tinha de admitir que estava espantado em como o pedinte sabia tanto sobre a advocacia. Além disso, o elogio de Sapiêncio à sua profissão havia baixado momentaneamente suas defesas. – De fato também usamos as petições, para dar início às ações ou requerer o deferimento de algum outro pedido.
- Ah, eis o lugar onde eu queria chegar. – Disse o mendigo com um sorriso largo, e se fosse um desenho animado provavelmente seria ilustrado com a imagem de uma pequena lâmpada a brilhar acima de sua cabeça cheia de cabelos desarranjados.
- E que provavelmente é o lugar de onde quero sair. – O jovem revirou uma vez mais os olhos.
O advogado temeu uma nova onda de perguntas ou pensamentos estranhos que serviriam apenas para dar um nó em sua cabeça, e quando estava virando-se para tentar uma vez mais sair dali, teve sua atenção novamente chamada por uma pergunta do mendigo, uma pergunta que pareceu desarranja-lo, como o faz o argumento de alguém que mostra que seu ponto de vista, por mais absurdo que pareça, carregue ainda assim algum sentido.
- O que seria, meu jovem causídico, uma petição senão uma peça onde fazes um pedido? E não apenas a petição, mas um recurso em si é um expediente usando com o intuito de modificar uma decisão, e todos eles são, em rápida síntese, pedidos, certo? Assim, não me parece tão absurdo afirmar que vossa senhoria é um pedinte.
Nem Sapiêncio e nem o advogado perceberam, mas de seu canto no balcão, Seu João, o calado proprietário do boteco, sorrira com aquela observação, fazendo com que a boca, que antes assemelhava-se a uma linha inexpressiva, se modificasse no discreto arco de um sorriso, e dali ele se divertia internamente, interessado demais em como o jovem pedante resolveria aquela questão.
Se pedes. – Sapiêncio continuou. – Se requeres, se solicitas, se pugnas por algo, então não estais pedindo? E se pedes algo, não és, por resultado óbvio, um pedinte?
- É diferente. – Limitou-se a responder o advogado.
- Diferente como? – Insistiu Sapiêncio, com um olhar de sincera dúvida que fez com que o rapaz deixasse por um momento de pensar que ele estava a provoca-lo para pensar que aquele mendigo estava realmente querendo saber seu ponto de vista sobre aquele assunto.
- Diferente no sentido de que sou pago para isso. Não estou pedindo por pedir, mas fazendo o meu trabalho, o que é diferente de um desocupado que pede na rua.
- Mas o desocupado que pede na rua depende de um sim da pessoa a quem lhe solicita uma ajuda, e no seu ofício, dependes do sim de um juiz ou Tribunal, estando ambos, portanto, na pendência de uma resposta positiva de outra parte.
- Mas no pedido defendo um direito, exponho argumentos, lanço mão de conhecimentos e uso de uma estratégia. – Justificou o jovem, começando a ficar incomodado com os argumentos do mendigo.
- E no meu pedido defendo um direito, o meu direito de sobreviver. Exponho argumentos, dizendo “senhor, senhora, peço um pratinho de comida porque tenho fome”. – E fez uma divertida cara de autocomiseração. - Quer argumento melhor do que o de uma barriga roncando? – A barriga do jovem roncou, e ele percebeu que de fato aquele era um argumento forte.
- Além disso... – prosseguiu o mendigo. - Uso meus conhecimentos para saber a forma certa de pedir, sendo mais simpático com alguns e mais discreto com outros. – O advogado se perguntou por um instante se aquele doido tagarela de fato fora discreto alguma vez na vida. – E isso não deixa de ser uma estratégia. Não acha?
Sapiêncio encarou o homem com um olhar que aquele outro não soube definir o que significava. Em parte, parecia estar lhe desafiando a contestar tudo o que dissera, e de outra parte parecia estar pedindo que continuasse a expor seu ponto de vista, convidando-o a permanecer em um debate que aparentemente estava lhe agradando deveras.
Mas o rapaz não estava gostando nem um pouco da conversa, de um lado porque detestava ser contrariado, e muito menos ficar sem resposta em um confronto de ideias, especialmente quando o antagonista era um mendigo doido com pretensões de tornar-se filósofo, e de outro, porque assim como a cabeça estava vazia de respostas, a barriga estava vazia de comida, e tanto uma como a outra sensação não lhe eram nada agradáveis.
- E então? – Insistiu Sapiêncio, agora de braços cruzados e com a cabeça meio inclinada para o lado, como um cachorro em posição de tentar compreender algo que acontece ao seu redor. Se havia alguém insistente quando se tratava de perguntar coisas e mais coisas, doidas ou não, esse alguém era Sapiêncio. - O que me diz?
- Digo que você é doido, que isso aqui é uma espelunca com um dono que não preza nem um pouco por seus clientes, que estou com fome e que nunca em minha vida escutei tanta besteira como as que ouvi agora. – O jovem proferia seu desabafo alternando seu olhar entre o mendigo inquisidor e o dono do boteco, que mais parecia um objeto decorativo, pois sequer se dera ao trabalho de dirigir os olhos para o advogado.
Ao ver a completa falta de interesse do velho, o jovem, promissor e bem engomado advogado revoltou-se de uma vez, e com o rosto ficando rubro de irritação pegou de um lance a maleta de couro, olhou de cima abaixo Sapiêncio, que continuava com aquela expressão de cachorro confuso, e saiu bufando do boteco que escolhera para almoçar naquela agradável manhã, passando pela bela praça sem prestar atenção em nenhum de seus encantos.
Sapiêncio parecia perdido, e agora era ele quem alternava o olhar entre o jovem que, pisando duro já ia distante e o velho, que finalmente erguera seus olhos, encarando o mendigo à sua frente.
- Qual? – Perguntou Sapiêncio. – Por que toda essa irritação? – Falou com os braços abertos, como se não houvesse problema algum em atrapalhar o almoço de um estranho até que a raiva desse ultrapassasse a fome que sentia.
- Sapiêncio, sabe muito bem que gosto de você, e que sempre que vem aqui lhe dou um prato de comida sem que tenha a necessidade de pedir a algum dos meus clientes. – Falou o dono do boteco, finalmente saindo de sua fingida introspecção. – O que me leva a pensar que só começou essa conversa com esse mauricinho pedante para provocá-lo.
- Provocá-lo a pensar. – Disse Sapiêncio, com um meio sorriso, parecendo estar se divertindo com aquilo.
- Pois é, mas ainda assim provocar. E a única coisa que me impediu de chutar essa sua bunda murcha para fora do meu estabelecimento é que eu não gostei nada do comportamento do rapaz. Então da próxima vez que vier aqui para importunar algum cliente, desde que este seja bem vindo, é claro, fique avisado que sou eu quem vai fazer você pensar. Pensar em como dói um chute bem dado no meio do traseiro.
- A ira não fica bem no rosto de ninguém. – Sapiêncio, com o dedo magro erguido repetiu a mesma coisa que dissera ao jovem, e arriscou-se em outra rima.
A violência é vazia,
É pobre, não tem essência,
Sendo melhor companhia,
Quem preza pela paciência.
- Tenho um melhor para você. – Disse Seu João, apontando para Sapiêncio a caneta que tinha em mãos:
Saia da minha frente
Seja um cavalheiro
Antes que eu me irrite
E te chute esse ossudo traseiro
- Agora vá pegar seu prato na cozinha e dê o fora.
Sapiêncio ergueu as mãos em sinal de paz e projetou o lábio inferior para a frente, fazendo o que o pessoal das redondezas chamava de “beiço de quem se diz chateado”, mas quando estava a caminho da cozinha, Seu João o chamou novamente:
- Antes de ir, venha me ajudar com uma coisa. Já que gosta tanto de pensar, vou lhe dar algo que vem quebrando minha cabeça há algum tempo. – E apontou com a caneta para a linha em branco nas palavras cruzadas, com que estivera ocupado durante toda aquela discussão. – Me diga se sabe essa. “Nome pelo qual é popularmente conhecido o aparelho utilizado para indicar a direção do vento nos aeródromos, com seis letras”.
- Ora, essa é muito fácil Seu João. O nome é “biruta”. – E sacolejando o corpo magro, saiu falando sozinho enquanto ia em direção à cozinha.
O velho checou as letras e viu que todas batiam com a cruzada, mas antes de preencher o termo biruta, perguntou-se se esse não teria sido um apelido melhor para aquele mendigo maluco do que o que tinham lhe dado, e pela primeira vez naquela manhã ele riu abertamente, mostrando todos os dentes daquela velha boca.
Sapiêncio voltará posteriormente em outras histórias, para perturbar o juízo daqueles que se encontram com ele. Inclusive o seu.
A Janela
A sala estava fria, gelada, o que apenas ampliava seu desconforto em estar ali, bem como seu desejo de que tudo acabasse o mais rápido possível, e claro, da forma como ele esperava que terminasse. Os homens de uniforme verde e máscara que se revezavam falando baixo, quase aos cochichos enquanto cuidavam dos ajustes finais do que estavam para fazer em nada ajudavam para reduzir aquela incômoda sensação, assim como o temor e o vazio em sua barriga, que cresciam a cada minuto que passava, a cada instante em que a incerteza sobre o que estava por vir era exponencialmente ampliada.
Estendido na cama dura, e que por diversos outros motivos estava longe de ser uma das mais confortáveis em que já havia deitado, ele sentia o coração palpitar para logo em seguida reduzir drasticamente a velocidade, trazendo-lhe a sensação de queda a cada instante e aumentando a atmosfera fria e nada acolhedora do lugar onde estava.
Ao lembrar-se do órgão que batia em seu peito uma onda de medo lhe invadiu, como se as bruscas freadas e acelerações que estavam ocorrendo em sua caixa torácica fossem agravar ainda mais a condição do seu já gasto coração, que era justamente a principal razão de ele encontrar-se estendido naquela mesa de cirurgia, em uma sala fria e estéril, repleta de médicos e enfermeiros que iam daqui para lá, silenciosos e concentrados demais para dirigir-lhe um olhar que fosse, e que pudesse lhe dar um mínimo de conforto em um momento como aquele.
No alto de seus cinquenta e tantos anos ele acabara de sofrer um infarto, e o exame revelara que o tempo de abuso de bebida, cigarro, noitadas e trabalho tinham cobrado seu preço, devastando, e não de uma forma romântica, o coração que batia em seu peito. “Cirurgia imediata”, dissera o médico enquanto ele ainda se recuperava do ataque na cama do hospital, não lhe dando tempo sequer para assimilar a notícia do que o acometera.
Após saber do ataque sofrido, fora de imediato avisado de que teria de preparar-se para uma operação de horas, em que lhe serrariam o peito, enfiariam mãos e objetos em seu corpo e mexeriam em seu interior para tentar consertar o que anos de abusos tinham quebrado, enquanto ele estaria ali, deitado, apagado, com tubos nas veias e sequer uma roupa de baixo para cobrir-lhe a intimidade.
Logo ele, tão dono de si e de sua vida, tão independente, até mesmo da esposa e dos filhos, de quem se distanciara com o tempo, estava agora à mercê de outros, sem sequer poder observar o que faziam, sem possuir controle de nada do que ocorreria. Mas o pior de tudo era saber que a coisa toda poderia dar errado, e que dali, da mesa de operação, ele poderia partir direto para um buraco embaixo do solo sem sequer dar-se conta do que tinha acontecido. Nunca, em todos os seus anos, ele tinha se sentido tão exposto, tão frágil, tão vulnerável e indefeso frente a uma situação como se sentia naquele momento.
A movimentação na sala aumentou, e ele percebeu que algo estava mudando. As pessoas de batas e máscaras repentinamente tinham lhe dado atenção, e uma delas lhe explicou o procedimento que seria adotado a seguir. Não soube dizer se foi pela apreensão ou pela cobertura no rosto que deixava a voz da mulher abafada, mas não entendeu nada do que lhe foi dito.
Então uma sensação de torpor, de leveza, de queda e ao mesmo tempo de flutuação lhe tomaram, e vislumbrou quando aquela mesma mulher de voz abafada colocou algo em seu rosto, algo igualmente frio, como tudo naquela sala, uma máscara, talvez. Não soube dizer, e nem soube distinguir mais nada do que viu quando tudo passou a ficar embaçado, embaralhado, e a forte luz que incomodava seus olhos se tornou o último ponto distinguível em todo aquele mosaico de imagens turvas que se seguiu.
Então veio a escuridão, e com ela a sensação de estar sendo puxado, carregado por algo ou alguém enquanto os sons ainda perceptíveis se tornavam ecos cada vez mais distantes. Lera certa vez, em algum lugar que já não conseguia lembrar, que o tempo no mundo dos sonhos passava mais devagar do que na terra da realidade, e que uma imagem, som ou pensamento passado em alguns segundos representavam horas no planeta dos acordados.
Perguntou-se então se naquela escuridão em que flutuava já haviam se passado horas, minutos ou segundos, e quanto tempo já tinha corrido lá fora, onde mexiam dentro dele como se estivessem trocando as peças velhas e gastas de um motor de carro. Enquanto se fazia aquela pergunta, foi invadido por uma nova onda de dúvida, trazida pelos ecos que ainda podia ouvir à distância, abafados e longínquos, e que repentinamente tinham se transformado em vozes cheias de apreensão.
Antes mesmo que pudesse ter a oportunidade de se perguntar uma segunda vez o que estava acontecendo, sentiu um puxão, forte e incisivo, diferente da sensação de estar sendo levemente carregado que o invadira quando tudo se transformara em um borrão seguido de uma tela escura. Era como se de um leve balançar de rede em uma tarde preguiçosa na varanda ele tivesse sido atirado em um violento furacão em um dia cinzento e tempestuoso, virado de cima para baixo, dos lados e ao avesso enquanto a escuridão parecia tornar-se cada vez mais fechada e a sensação de localização era obliterada por completo.
As vozes, os ecos preocupados tinham ficado mudos, silenciados por algo que ele não sabia o que era, e não soube dizer onde estava nem para onde era levado naquela velocidade cada vez mais vertiginosa, que ampliada pela escuridão absurdamente dominante lhe tolhiam por completo de qualquer forma de percepção que pudesse ter.
A imagem de alguém despencando em um precipício escuro lhe veio à mente confusa e aturdida, mas ao invés de caindo, ele sentia que viajava à frente em uma velocidade alucinante, lançado em uma jornada que parecia não ter mais fim. Uma vez mais lembrou-se do que lera, sobre o mundo dos sonhos ser mais lento que a realidade, e perguntou-se por quanto tempo aquela viagem duraria, temendo que a percepção do sonho lhe desse a sensação de uma jornada que iria durar anos.
Então, quando a confusão reinava e o escuro engolia seus pensamentos, não lhe dando qualquer norte para as perguntas que surgiam tão rapidamente quanto ele era carregado naquele precipício horizontal, uma luz surgiu, a princípio fraca, débil e vacilante, como uma vela em meio a uma noite tocada pela ventania. Mas depois ela cresceu, lenta e gradativamente, se tornando mais forte conforme ele avançava, trazendo iluminação àquela escuridão que de dominante passava a ser erradicada, como o sol afasta as sombras quando surge no limite do mundo lançando seus raios onde as sombras reinavam.
A luz, que a princípio era débil, cresceu e cresceu, se tornou mais forte, dominante, até se mostrar quase insuportável aos seus olhos, e pela segunda vez naquele mesmo dia ele sentiu sua vista ficar baça, turva, impedindo-o de distinguir o que havia adiante, e ao contrário da escuridão que se formara quando ele apagara na mesa de cirurgia, agora era um enorme clarão que invadia seus olhos, sua mente, seu espírito, até que uma vez mais ele perdeu a consciência do que havia ao redor, e caiu em um sonho dentro de outro sonho.
Mas antes que pudesse ter tempo para ser tomado pela noção de que caíra em um novo estado de letargia, ele abriu os olhos e finalmente conseguiu distinguir algo que não fosse uma escuridão quase palpável ou uma luminosidade ofuscante.
Seu olfato foi tocado por um odor quase neutro, levemente perceptível. Um cheiro de coisas antigas, velhas, guardadas e empoeiradas. O cheiro de um cômodo que ficara fechado por muito tempo. Aos ouvidos, nada chegou. Nenhum som, nenhum ruído, o lugar onde estava era tomado por um silêncio expansivo, quase palpável, que chegava a reverberar em seus tímpanos.
A visão, inicialmente ainda turva pela excessiva luminosidade que chegara aos seus olhos no fim da jornada vertiginosa que fizera momentos antes, ajustou-se lentamente, e aos poucos ele conseguiu distinguir o que havia ao seu redor, mas diante da percepção de onde estava, o choque que sentiu foi maior do que a sensação de vertigem que o tomara repentinamente na viagem que há pouco havia se sucedido.
Não sabia dizer como, explicar o porque ou sequer mensurar o significado de tudo aquilo, mas de uma sala de cirurgia fria e tomada por pessoas cobertas por máscaras e capotes ele passara repentinamente a um cômodo inteiramente estranho, do qual não tinha qualquer lembrança de ter estado, e nem consciência de que voluntariamente seguira um caminho para chegar até ali.
A despeito de toda a diferença, o lugar em que estava tinha uma única semelhança com a sala onde estivera deitado na maca à espera de que instrumentos afiados penetrassem em sua carne anestesiada e invadissem seu corpo inerte. Era igualmente frio e sem vida. Paredes cinzentas o cercavam em um cômodo estreito e levemente iluminado por uma luz inteiramente artificial, um luminosidade opaca, estéril, semelhante à gerada por luzes fluorescentes de um antigo prédio. Mas apesar de tentar, ele não conseguiu distinguir qualquer lâmpada naquele local, não identificando a fonte da frágil claridade que por ali se espalhava.
Confuso ele fitou o chão, e seu olhos perceberam o piso de mármore branco, igualmente gélido, igualmente desprovido de calor, aconchego... vida. Correu novamente os olhos pelas paredes. Eram lisas, completamente lisas, sem marcas, sem ranhuras, e se conectavam nas esquinas formando um espaçoso, porém vazio retângulo. Cinza. Completamente cinza, como um dia parado e sem luz de uma tarde nublada e chuvosa. Inexpressiva.
Enquanto corria os olhos pelo lugar, ao fazer uma volta completa e retornar para o ponto de partida ele foi tomado de susto pela mudança que se operara no intervalo de um segundo. Onde antes estava vazio, onde antes havia apenas o chão de mármore branco como a neve havia agora um banco de pedra, feio, amorfo e aparentando ser completamente desconfortável. Uma pergunta passou rapidamente por sua cabeça, a dúvida de se haveria alguém no mundo que sentiria-se confortável sentando-se em algo como aquilo.
Enquanto tentava sanar não apenas aquela questão, mas também todas as outras, e a principal, de como fora parar ali, o homem sentiu um leve toque de uma brisa gélida passando brevemente por sua nuca. Virou-se rapidamente para tentar encontrar a fonte daquele vento, e pela primeira vez deu por si de que o lugar onde estava não possuía portas ou janelas, mas apenas paredes, como um cubo cinzento e desolado.
Não viu nada além do que já enxergara antes, e agora o medo se juntava à sensação desagradável trazida pela dúvida que o aplacava. Que lugar era aquele? Como fora parar ali? E o principal, como sairia de um local que não parecia ter entradas ou saídas? Voltou a olhar para o banco amorfo e desconfortável e ao alcançar o lugar com os olhos sufocou um grito com o susto que o atacou.
No banco, que segundos antes estivera vazio, havia agora uma senhora, uma mulher já muito avançada em anos, curvada e pequena, como se o tempo tivesse consumido toda a vida que um dia estivera naquele corpo visivelmente gasto e cansado. O coração acelerado lhe trouxe a percepção de um novo medo, o de que seu problema cardíaco voltasse a se revelar e o músculo que batia em seu peito parasse repentinamente, como já fizera dias antes.
Mas como poderia se preocupar com o coração se sequer sabia onde estava, como lá fora parar, como sairia dali e como uma velha do nada se materializara bem diante de seus olhos em um lugar completamente estranho que ele nunca vira em toda sua vida, nem mesmo em sonhos. Então uma nova onde de choque lhe tomou, e pela primeira vez uma ideia que ainda não passara por seus pensamentos chegou tão forte e repentina como a claridade do início da manhã. Teria ele morrido?
Momentos antes estivera em uma sala de cirurgia, às portas de ter o corpo rasgado para tentar consertar seu quebrado e desgastado coração, e quando tudo ficara claro, depois escuro, e depois ambos, ele sentira-se sendo carregado por uma imensidão em uma queda que na verdade não era queda, mas que ainda assim trazia a sensação de despencamento, em uma vertiginosa jornada por uma escuridão que culminara em seu aparecimento naquele estranho e desconfortável cômodo. E agora aquela mulher. Estaria ele morto? Ou seria tudo um sonho?
Mas parecia tão real. Nunca estivera em um devaneio ou sonho em que se sentisse completamente acordado, dono de todas as suas sensações e atitudes, como estava naquele momento, mas para tudo havia uma primeira vez, e também uma última, e o pensamento da dúvida de estar ou não vivo voltou a lhe aplacar, somando-se às inúmeras questões que surgiam em sua cabeça confusa e conturbada.
Então ele percebeu algo novo, algo que não estava ali um piscar de olhos antes. Um quadro, suspenso na parede cinzenta, exatamente diante dos olhos da velha que se materializara do nada. Mas a imagem na moldura parecia destoar de tudo o que havia ali. Não era triste, nem cinzenta, nem fria, mas parecia carregar uma variedade de matizes que em um primeiro momento lhe trouxe a nostalgia de um acalento, como um sentimento acolhedor que há muito ele não sentia.
Envolto por aquela aura de um passado que voltava à tona ele não percebeu que a velha senhora que antes estivera fitando a parede como se nada mais no mundo houvesse, agora dirigia-lhe um olhar analítico, como se fosse ele a coisa mais estranha naquela sala, o que não deixava de ser verdade, uma vez que nunca estivera ali, e tinha certeza de não fazer e de nunca ter feito parte daquele lugar.
Confuso demais para sentir-se impressionado, dada a sequência de surpresas que se sucedera naquele curto intervalo de tempo, ele não se espantou, ao menos o bastante para acelerar o alquebrado coração que carregava no peito, quando percebeu o olhar estudioso da velha cravado nele a observa-lo como se ele fosse um raro espécime repentinamente encontrado, e passou a também observa-la.
Os cabelos de um branco tão claro quanto o mármore que havia sob seus pés estavam cuidadosamente presos em um coque, como aqueles que só as velhas senhoras que andam mundo afora sabem fazer. A pele ainda continha um pouco do viço que provavelmente tivera em excesso um dia, mas agora estava tomada quase em sua plenitude pelas rugas desenhadas pelo tempo em sua incansável passagem.
A boca era fina, quase outra linha misturada às já formadas em sua face pelas rugas, e não parecia carregar o conforto de um sorriso ou o esgar de uma carranca de desagrado, externando para o observador uma expressão que não podia, ao menos naquele momento, ser traduzida. As mãos eram nodosas, finas e com algumas manchas de idade aqui e acolá, acusando que aquele artista chamado tempo fizera ali também sua pintura. O corpo era esbelto, com ombros levemente curvados, e estava coberto por um sóbrio vestido escuro que a ele amoldava-se tão bem que parecia que a mulher já havia nascido com aquela vestimenta.
Mas o que mais chamava a atenção do homem eram os olhos da senhora. Calmos, analíticos, frios, quase sem vida, escuros como uma noite sem estrelas, e igualmente belos como tal. Fitavam-no sem desviar dos dele um momento sequer, parecendo enxergar mais do que a simples superfície de seu ser, e adentrando em locais tão profundos que talvez nem mesmo ele conhecesse.
Ficaram naquele estado por um bom tempo, observando-se mutuamente, ele, aparentemente hipnotizado e preso por aquele olhar cheio de profundidade via o que havia por fora, ela, fixando seu corpo e sua alma com aqueles globos escuros e cheios de segredos, parecendo enxergar toda a plenitude do que ele carregava por dentro, e quando parecia que anos haviam se passado desde que seus olhares haviam se encontrando, a mulher desviou os olhos, voltando a observar a moldura colorida suspensa na parede cinzenta.
- Quem é você? – Perguntou ele, escolhendo a primeira das inúmeras questões que tinha para serem respondidas.
- Eu sou o que você vê. – Limitou-se a responder a velha, numa voz ao mesmo tempo doce e amedrontadora.
- Eu vejo uma senhora sentada, olhando para uma parede. – Disse ele, sentindo que as palavras fluíam sem medo ou receio de sua boca, a despeito de pouco conhecer da velha e muito menos da situação que se desenrolava.
- Então é isso que eu sou. – Voltou a falar a mulher. – Ao menos aos seus olhos, que veem de forma tão limitada.
- E o que eles deveriam ver? – Quis saber, incomodado com a crítica recebida de alguém que mal conhecia. Detestava ser criticado por quem quer que fosse, mesmo se soubesse que de fato estava errado em algo.
- Muita coisa. Tanta coisa que poderia levar o tempo de uma eternidade para lhe dizer.
O homem sentiu um ímpeto de responder à altura àquela que já considerava uma velha insolente. Não estava acostumado a ser respondido daquela forma, fosse por empregados, fosse por familiares, e muito menos por estranhos a quem não tinha dado liberdade alguma para tanto, mas sabia também que havia um mistério a ser resolvido ali, e guardou a reprimenda para um outro momento, se acaso o tivesse.
- Já que parece saber tanto das coisas, pode me dizer o que estou fazendo aqui? – Perguntou, não sem incutir uma dose de sarcasmo às palavras dirigidas à mulher.
- Está me observando. Ou sua visão é tão limitada que sequer percebe o que faz, no momento em que o faz?
Novo golpe, nova lesão na vaidade daquele homem que não estava acostumado a ser desrespeitado daquela forma. Mas a necessidade de saber, de entender o que estava acontecendo suplantava o orgulho que clamava por uma resposta que calasse a impertinência da mulher, e agindo de forma diferente da que normalmente faria, ele se conteve e prosseguiu:
- Acho que não entendeu o que eu quis dizer. O que quero saber é o que estou fazendo aqui, como vim parar nesse lugar, e o mais importante, como saio daqui?
- Pensei que fosse senhor da sua vida, que não precisasse de ninguém, e que assim possuiria todas as respostas para todas as perguntas que aparecessem na sua frente.
A voz da senhora não parecia trazer qualquer emoção ou algum outro traço que denotasse uma provocação da parte dela, mas ainda assim perturbou o homem, porque retratava linha por linha, letra por letra a frase que ele dizia sempre que alguém contestava seus métodos e suas resoluções, especialmente quando a contestação vinha de alguém próximo, como a sua esposa ou seus filhos.
Na verdade, fora exatamente para a esposa que dissera aquilo quando decidira que não queria que ninguém ficasse com ele no quarto do hospital na noite anterior à cirurgia. Na oportunidade, dissera a ela que era forte o suficiente para encarar a situação, e que não era um inválido, não precisando, portanto, da ajuda de quem quer que fosse. A lembrança e o espanto da repetição daquelas palavras lhe trouxeram uma nova onde de impaciência, acompanhada de uma raiva crescente que o fizeram agir como costumeiramente fazia quando se sentia daquela forma.
- Escute aqui, não sei quem é e nem de onde veio, e o pouco de interesse que tinha no assunto já foi pelo ralo por causa da sua impertinência e de seus comentários idiotas. O que sei é que sou um homem ocupado, e da última vez que lembro de estar com os olhos abertos estava em um lugar completamente diferente do que estou agora, então, se não puder me dizer como volto para esse lugar, peço que desapareça com a mesma rapidez com que chegou aqui, quem sabe assim você acabe me prestando dois favores, um deles me livrando da sua companhia inútil, e o outro me mostrando onde fica a saída.
- Ocupado, ocupado. Sempre ocupado. Acho que essa é a ladainha que as pessoas que convivem com você mais escutam no dia a dia. Não sei como elas ainda aguentam esse discurso repetido, esse disco arranhado, esse decoreba digno de um papagaio no poleiro. Deveria aprender palavras diferentes, já que se julga tão inteligente. E a propósito, se fosse esperto como pensa ser, saberia que essa aqui não é a realidade com a qual está acostumado, e que por isso não pode voltar ao lugar onde estava. Ou esqueceu que estava prestes a ser aberto como uma lata de sardinha antes de perder a consciência e chegar aqui?
Naquele momento a velha mulher voltou a fita-lo, mas daquela vez os olhos escuros pareceram por um instante estarem vazios dentro de suas órbitas, como se os globos oculares tivessem sumido, deixando apenas as depressões onde antes tinham estado. O homem deu um passo para trás, aterrorizado com aquela súbita mudança no rosto da senhora, e mais ainda pelas palavras que tinham saído de sua boca, mas por estar aturdido demais, não conseguiu concatenar a com b, e tudo o que pôde fazer foi emudecer diante de todo aquele quadro bizarro que se descortinava à sua frente.
- Ainda sem palavras? Algo raro, pelo visto, especialmente vindo de alguém que sempre tinha opinião formada sobre tudo, e julgamentos já feitos para proferir sobre a vida de outras pessoas.
- Quem é você? – Perguntou ele, quando achou forças para tanto.
- Quem sou eu? Prefere ligar um ponto ao outro ou acha melhor que eu explique? Talvez a primeira opção, já que você sempre foi dono de todas as certezas.
- Da forma como estou agora não tenho condições de ligar pontos, e muito menos de manter certezas. – Respondeu ele, cheio de temor no peito e na voz.
- Um pingo de humildade em um poço de arrogância. Mas vejam só como as coisas podem mudar. – A mulher voltara a fita-lo com o olhar analítico de antes, pelo que ele agradeceu internamente. Qualquer coisa era melhor que aquela visão aterradora de órbitas vazias em um rosto enrugado. – Então você prefere que eu explique.
- Então eu prefiro que você explique. – Respondeu, com a voz vacilante.
- Acreditaria, em meio a toda a descrença que permeia sua vida, que sou a morte que veio ao seu encontro?
As palavras foram ditas com a calma de quem despretensiosamente profere um bom dia a um conhecido que encontrou na rua, e não houve na voz da mulher, ou mesmo nos segundos que se sucederam, nada de sobrenatural que saltasse aos olhos e que causasse temor em quem ali estivesse. Mas a forma como aquilo foi dito, a naturalidade, o olhar calmo e impassível da velha e todas as circunstâncias que caracterizavam tudo o que havia acontecido desde sua estranha viagem feita da sala de cirurgia para sabe-se lá onde, trouxeram ao homem uma sensação de temor mesclada ao turbilhão de confusão que o atacava, e pela segunda vez desde que aquela conversa tivera início, ele perdera momentaneamente a capacidade de falar.
A velha, como se nada tivesse acontecido, como se suas palavras não possuíssem o menor condão de causar estremecimento no ser de quem quer que fosse, voltou-se novamente para a moldura na parede, e permaneceu a fita-la, com algo que parecia ser um sorriso no rosto, como se a imagem lhe trouxesse algum agrado ou sensação cômoda.
- Gosto da sua lembrança. – Disse ela, com a mesma calma perturbadora na voz. – Traz uma sensação de paz, de completude, por mais efêmera que seja.
O homem, ainda aturdido com o que ouvira instantes antes, fitou também a moldura na parede, e pela primeira vez desde que chegara ali conseguiu de fato identificar a imagem que nela estava. Era uma lembrança antiga, de uma viagem que fizera anos e anos antes, quando os filhos ainda eram pequenos, quando o casamento ainda parecia um lugar de acalento ao invés de uma prisão, quando seus dias eram movidos por algo mais que orgulho e ganância.
No retrato, um jovem homem deitava em uma simples espreguiçadeira junto à esposa na beira de uma praia ensolarada, enquanto os filhos pequenos brincavam distraidamente na frente de um calmo e iluminado mar cor de esmeralda. Por diversas vezes aquela fora a lembrança que ele usara como gatilho para ativar a calma nos momentos de estresse pelos quais passava. Era o lugar que visitava em seu íntimo para relembrar um momento de felicidade plena, um refúgio das coisas que o incomodavam e o perturbavam de alguma forma.
Mas com o tempo ele passara a visitar cada vez menos aquela lembrança dentro de sua mente ocupada demais com números que precisavam crescer mais e mais em sua conta bancária, e enquanto o dinheiro aumentava, a memória daquele lugar diminuía, até tornar-se o que a mulher observava agora. Um pequeno quadro em meio a uma parede cinzenta.
- Não consigo... não consigo compreender nada disso. – A voz saía forçada, vacilante, cheia de medo e de dúvida. – Minutos atrás eu estava deitado em uma mesa de cirurgia, e de repente tudo virou um borrão confuso entre o claro e o escuro. Depois aquela sensação vertiginosa de queda e de velocidade, até que quando abri os olhos estava aqui. Então me aparece você, se materializando do nada, com uma conversa estranha e sem sentido algum, e agora... agora pode ver uma imagem que estava dentro de minha mente, uma lembrança que era minha, e não sua, mas que ainda assim você teve acesso. Diga-me, estou morto ou apenas sonhando? É realmente quem diz ser?
- Está entra a morte, a vida e o sonho. Está a meio caminho de tudo, e ao mesmo tempo no final de algo.
- PODE POR FAVOR FALAR COMO UMA PESSOA NORMAL?! – A angústia e o medo eram extravasados pela raiva causada pela dúvida, pela incerteza do que vivia, e agora ele punha tudo para fora em um grito cheio de temor, que saía ao mesmo tempo como uma reprimenda e um pedido de ajuda.
- Não sou uma pessoa normal, já disse. Mas se quer que fale de uma forma que passe a entender melhor, posso fazê-lo. Já que gosta tanto de dinheiro, usarei a linguagem que aprecia. Pense em mim como uma credora, a quem você deve uma vultosa soma. Chega então o momento do vencimento da dívida que possui comigo, e venho exercer meu direito de cobrança para receber a quantia com todos os juros que a ela são aplicáveis, e não há como se furtar a esse pagamento. Não há terceiros a quem recorrer, não há fiador e muito menos caução, mas apenas nós dois, credor e devedor, eu e você.
- E o pagamento de que fala é minha vida. – Era uma afirmação, mas dita com a intenção de questionar por um homem que agora apresentava uma tez tão branca quanto o chão de mármore sobre o qual suas pernas trêmulas se apoiavam.
- Ou o que restou dela. – Respondeu a mulher, enquanto continuava a fitar o quadro. – Sabe, é realmente uma imagem muito bonita. Não consigo entender como deixou que se tornasse tão pequena, esquecida em um cômodo cinzento e desagradável como esse.
- O que quer dizer com isso?
- O que você vê? – Questionou a mulher.
- Como assim o que vejo?
- O que você vê? – Insistiu.
O homem soltou os braços e um suspiro choroso, lançando a ela um olhar de quem clamava por piedade ou por um norte para sair daquilo que ele já não sabia se era um sonho, um pesadelo, um devaneio ou a realidade. Permaneceu olhando para ela, e como não vislumbrava qualquer sinal de que a senhora fosse lhe dar alguma luz a mais do que a pouca que já tinha, ele não viu outra solução além de continuar aquele diálogo estranho e, diante de seus olhos, sem sentido algum.
- Tudo bem... – Disse, em um misto de palavras com um quase inaudível suspiro de resignação. – Tudo bem. O que eu vejo... o que eu vejo. – Tentava entender o significado por detrás da pergunta da mulher. Estaria ela querendo saber o que via de fato com os olhos do corpo, ou falava por enigmas para saber o que ele enxergava além dos órgãos físicos? O que ele vislumbrava além das paredes que cercam a realidade, e isso supondo que aquilo fosse a realidade. Resolveu então seguir o caminho mais simples. – O que eu vejo é uma sala estranha, fria, inóspita, com paredes cinzentas e nem um pouco acolhedora, com o assento mais esquisito que já vi na vida, e que parece ser tão confortável quando uma pedra cheia de pontas. Ah, e não posso esquecer da minha lembrança dentro de uma moldura, e de você, seja lá quem for... supondo que realmente exista.
A mulher virou-se para ele, lançando-lhe novamente aquele estranho olhar cheio de anos e de sabedoria, mas também de altivez e gravidade, só que havia algo diferente daquela vez, algo que ele não enxergara das outras vezes em que ela se dera ao trabalho de virar-se em sua direção e fita-lo. Havia agora um sorriso, e por mais estranho que parecesse, era um sorriso acolhedor.
- Uma resposta aceitável. Não totalmente correta. Mas aceitável.
- Então por favor me dê a resposta correta, se não for pedir demais. Que lugar é esse que vejo, e quem é você, a quem também vejo?
- A segunda pergunta foi primeiro respondida por meio de um questionamento que lhe fiz. – Disse ela, voltando a olhar o quadro.
- Certo, então devo acreditar que você é a morte. – Havia descrença e cansaço na voz dele. – Tudo bem, se eu disser que acredito, você responderá minha pergunta?
- Sua pergunta será respondida independentemente de sua crença, pode ficar tranquilo... supondo que seja capaz disso. – E ao terminar a frase ela deu um novo sorriso, mas ainda virada para a parede. – Sim, eu sou a morte. Sim, eu vim busca-lo, e isso também esclarece o porque de ter dormindo em uma mesa de cirurgia e ter acordado aqui.
- Então estou morto?! – A pergunta saiu de sua boca em uma voz entrecortada e cheia de apreensão.
- Sim... e não. – E voltou a dar-lhe aquele olhar cheio de seriedade. – Digamos que está no meio, entre o fim e o começo.
- O fim e o começo de que?
- Do que há de vir com certeza, e daquilo que ainda pode vir a ser. – Falou, sem parecer se importar muito com a confusão que suas palavras geravam no mente conturbada de seu interlocutor.
- E onde estou? – Quis saber, desistindo de insistir na pergunta que fizera anteriormente por temer receber uma resposta que fosse deixa-lo ainda mais confuso do que já estava.
- Está na sua vida... ou melhor, em uma representação do que ele é, ou era.
- E o que minha vida tem a ver com uma sala pequena, cinza e nem um pouco acolhedora?
- Tudo. Isso aqui é uma representação fiel, que retrata de uma forma precisa a vida que estava vivendo, e confesso uma coisa, se me permite... esse é um lugar que até mesmo a morte acha desolador, e olha que já vi de tudo em minhas andanças.
A senhora então virou-se por completo para ele, fitando-o da mesma forma que o fizera antes, mas agora ele podia vê-la por inteiro, e não apenas de lado, como das vezes anteriores, e estranhamente ela parecia mais jovem. As rugas que antes se aprofundavam em sua face pareciam estar sumindo uma a uma, bem diante de sua vista, e corpo, antes frágil e curvado, ganhou mais volume e postura embaixo do vestido escuro que o cobria. Agora já não era mais uma velha, mas uma mulher no auge de sua juventude, bela, porém mantendo a seriedade e sobriedade que cercara sua versão anterior.
- Deixe-me explicar melhor. A sala que vê, a sala que o cerca, o cômodo onde não enxerga portas ou janelas, mas apenas paredes cinzas e sem vida é o que se tornou sua existência. Uma coisa pequena, apertada, desconfortável, gélida, sem cor, com paredes nuas e desprovidas de lembranças, exceto por uma, que se torna cada vez menor, para onde você olha sentado no desconforto do trono que criou para si mesmo, como um desejo cada vez mais longínquo de visitar um lugar onde um dia esteve, e que ainda lhe traz alguma luz, algumas cores em uma paisagem sóbria e estéril. Eis a representação do que se tornaram os seus dias.
“Você criou esse espaço, para se refugiar de qualquer sentimento, e aqui se trancou, não colocando sequer portas ou janelas que lhe possibilitassem sair ou que permitissem que alguém o enxergasse do lado de fora. Assim, seus filhos tentam te olhar, mas não conseguem te ver, porque está trancado aqui. Sua esposa tenta entrar, mas não pode, porque não existe uma porta de acesso, e a lembrança que você ainda mantém diminui a cada momento, perdendo-se nesse mundo cinza e desolado.
Aqui você se tortura, olhando para o que realmente teve de valor um dia, enquanto que paradoxalmente valoriza coisas cuja existência é irrelevante. É isso o que você é, uma sombra cinzenta do homem que podia ter sido, uma sala fria e fechada, sem cor e sem vida, de onde não sai, e que também não permite que ninguém entre. Alguém que trancou o coração por tanto tempo que ele mesmo desistiu de bater, e foi falhando, até leva-lo à mesa de cirurgia de onde carrega sua última lembrança. Esse, meu amigo, é o lugar onde está, e isso é o que se tornou sua vida.”
O homem permaneceu calado, sentindo o gosto de fel de cada palavra que fora dita pela mulher à sua frente, revisitando cada lembrança que as frases por ela proferidas lhe traziam à mente, e sentindo a dor que elas lhe causavam quando admitia que a senhora que se proclamara como a morte tinha razão. Construíra um patrimônio, mas destruíra uma vida, se afastando de todos que o amavam, daquilo que realmente importava, do que de fato podia ser valorizado, trocando tudo aquilo por coisas cujo valor era efêmero, aparente, fantasioso.
Uma realidade por uma ilusão, essa fora a barganha insensata que fizera, e o pior de tudo é que sempre soubera disso, e era aquela lembrança que agora repousava diminuta na enorme parede cinzenta, e que ainda lhe dava a percepção do erro que cometera. Mas assim como a memória diminuía e o espaço sem cor aumentava, o amor em seu coração também se reduzia dia após dia, e de tão vazio e sem propósito, aquele mesmo coração, como para lembrar-lhe do equívoco cometido, abandonara a ele também, entregando-o à morte, que agora parecia ser a única que ainda o queria por perto, e mesmo assim, como cumprimento de uma obrigação.
Quis chorar, mas estava tão duro e frio que as lágrimas se negaram a dar-lhe a honra de sua presença. Quis gritar, mas a tristeza era maior que a revolta, e sua voz morreu antes mesmo de nascer em sua garganta. Quis amar, mas já não tinha coração, porque ele parara na fria mesa de cirurgia, onde fora parar depois de viver uma vida gélida e sem amor. Por um momento ele riu por dentro da ironia de tudo aquilo. “Justiça poética”, pensou consigo, “passei uma vida abandonando meu coração, e agora foi ele quem me abandonou”.
Olhou para a mulher, que o encarava com uma expressão que atestava que ela sabia precisamente o que se passava em sua mente. Sentiu raiva dela, e depois de si mesmo, sentiu vontade de pedir por misericórdia, por uma nova oportunidade, mas achou que não adiantaria de nada. Sentiu vontade de voltar no tempo e desfazer tudo, derrubando tijolo por tijolo daquela sala para libertar-se e viver o que tivera a oportunidade de viver na foto emoldurada na parede.
Mas então deixou-se abandonar, esquecendo aqueles pensamentos diante da certeza, da única certeza que permeia a existência do homem. Se a morte viera encontra-lo, ela não voltaria de mãos vazias, e por isso teria que seguir a senda que ela lhe indicasse, carregando consigo as correntes com o peso dos erros que cometera em vida.
- Vai desistir sem nem ao menos dar-se a chance de tentar? – Perguntou a antes velha, e agora jovem senhora sentada diante dele. – Vai abandonar-se uma segunda vez, como já tinha feito anteriormente, desistindo de tomar o caminho contrário novamente? Vai permitir que a lembrança nessa parede se torne apenas isso? Uma imagem desbotada criando teias de aranha em um canto esquecido e desolado?
- E o que posso então fazer, agora que já cheguei ao fim do caminho? – Era uma pergunta, mas também um apelo o que ele fazia.
- Nunca disse que chegara ao fim do caminho. Disse apenas que estava no meio de algo, que podia ser o fim de um nada ou o início de um tudo. – Respondeu a morte, que agora já não parecia tão fria aos olhos dele.
- A morte dá segundas chances? – Seus olhos agora mostravam, ainda que distantes, duas pequenas centelhas de esperança.
- Não, a morte não dá segundas chances... – E após uma pausa que pareceu roubar o pouco de esperança que o homem ainda tinha. – Mas ninguém disse que sua primeira chance chegou ao fim.
O homem ergueu o olhar, um brilho de esperança crescendo nele, enquanto seu interior era invadido por uma onda de ansiedade que o tomava a cada segundo que passava.
- Então de fato não estou morto?
- Você está morto em vida, porque escolheu assim estar, mas a mudança desse estado não depende de mim, e sim de você.
- Então posso sair daqui? – Perguntou, cheio de ansiedade. – Como?
- Você construiu isso, e quem melhor que o arquiteto para saber todos os detalhes do prédio que levantou? Mas antes que vá... – E nesse momento fez uma pausa que pareceu durar uma eternidade. – Lembre-se, ainda tem sua primeira chance, mas não terá um segunda, então aproveite-a fazendo a coisa certa.
O homem correu os olhos pelo lugar, procurando uma vez mais uma porta, uma janela, uma fresta, por mínima que fosse, que lhe possibilitasse sair dali, mas não encontrava nada, o que apenas aumentava sua frustração. Então, repentinamente algo chamou sua atenção, algo que estivera ali desde que ele chegara. Parou e fitou o quadro com a imagem de sua lembrança, e naquele momento prestou mais atenção à imagem, até que vislumbrou o que não tinha visto antes. Não era um quadro, não era uma foto... era uma janela.
Olhou então para o desconfortável banco onde a mulher estivera, mas para seu espanto agora ele estava vazio. Não havia ninguém ali, não havia a senhora velha ou a mulher jovem. Não havia mais banco, não havia mais chão de mármore, não havia mais parede cinzenta, não havia mais ele. Tudo ficou enevoado novamente, e depois mesclou-se em uma confusão de imagens reunidas em um borrão.
Sentiu então seu corpo sendo empurrado, sendo erguido, sendo puxado, sendo carregado, sendo jogado naquele borrão, e uma nova sensação de despencamento o tomou. Voou e voou, ou caiu e caiu, já não sabia dizer, até que a velocidade se tornou grande demais para que pudesse perceber o que quer que fosse. Então ele sentiu-se leve, sem substância, sem peso, sem matéria, e deixou-se flutuar e flutuar...
E sentiu a pele arrepiar-se com o frio que o rodeava, e um peso no peito somado a uma sensação de que levara uma grande pancada no local. A boca estava seca, a voz arranhada e sem força, o corpo fraco e dolorido. Fez uma careta quando abriu os olhos e uma confusão de imagens se formou diante deles. A luz os machucava, e demorou até que conseguisse, à custa de algum esforço, fixar as imagens e distingui-las com a precisão que buscava.
Um quarto, um sofá, uma porta, uma janela, e paredes, todas brancas, nenhuma cinzenta. Nenhuma mulher velha e ao mesmo tempo jovem a fitar a imagem de uma lembrança, nenhum chão de mármore, nenhum banco desconfortável, apenas o bom e velho quarto de hospital, igual aos que já vira, àqueles nos quais estivera visitando alguém. Igual ao que ficara internado quando sofrera o ataque cardíaco.
Então percebeu que estava em um quarto de hospital, com um enorme curativo na caixa torácica, com tubos nas mãos e nos braços, e com uma fome como poucas vezes sentira na vida. Não, não estava morto, sua primeira chance ainda não terminara, e uma onda de alívio e gratidão o tomou. Sorriu, e perguntou-se quando tinha sido a última vez que sorrira verdadeiramente por algo. Então sentiu uma mão tocando a sua, e depois outras duas, segurando o pulso do outro lado.
A esposa estava a um lado da cama, os filhos, do outro, e todos o fitavam com olhares esperançosos. Sentiu vontade de falar, havia muito a dizer, havia muito a compartilhar, e muitos pedidos de desculpas a serem feitos. Havia ainda, como a morte lhe dissera, uma coisa certa a ser feita. Mas diante de todas as palavras que surgiram em sua mente para serem despejadas mundo afora, preferiu as que se referiam a um dia perdido em um passado que ficara guardado em sua mente. Um dia que deixara para trás, e que agora sabia que poderia reviver, se assim o quisesse, por vezes e vezes e mais vezes. Um dia que estivera em um quadro, uma foto, uma moldura, uma janela, uma... saída.
- E então? – Perguntou ele, com a voz ainda frágil e entrecortada. O que acham de irmos à praia?
E sorriu, achando graça da expressão dos demais. E sorriu, feliz porque podia fazer aquilo novamente.
A Ronda (Parte I)
O corpo cansado, dolorido e indisposto era um sinail de que ainda não se adequara à rotina imposta pelo novo trabalho que já exercia havia algumas semanas. Na verdade, nem o corpo e nem à mente tinham ainda se adaptado às mudanças que tinham ocorrido em sua vida, repentinas demais para serem assimiladas em tão pouco tempo.
Sempre tivera uma vida confortável, com carro do ano e dinheiro acessível, tudo provido pelo pai, que sempre trabalhara exaustivamente para manter o padrão ao qual tinham se acostumado, e a exaustão fora tamanha que o coração do homem não aguentara, e ele morrera repentinamente.
Afora o choque da perda, Júlio tivera de lidar também com a descoberta de que o status que mantinham exigia mais do que o trabalho do pai podia dar, e as dívidas tinham se acumulado no meio do caminho, crescendo como uma bola de neve que despenca ladeira abaixo até atingir o algo, não dando sequer o mais breve tempo para que a vítima possa se preparar para o impacto.
E assim, em um átimo de tempo, Júlio passara de um jovem relativamente rico, aluno de medicina e com o luxo sempre acessível, para Júlio, rapaz sem posses, herdeiro apenas de dívidas e dos parcos ensinamentos que o pai deixara para ele nas poucas oportunidades em que dava atenção ao filho. Sem dinheiro e sem recursos, ele tivera de valer-se das amizades para seguir em frente.
Já estava perto demais de se formar para largar o curso, mas a faculdade era cara, o que o fizera apelar para o dono da instituição, que tinha uma antiga amizade, mais baseada em negócios, com seu velho pai. O homem, que parecia ter um coração mais atencioso que o seu velho, acabou por conceder-lhe uma bolsa para que pudesse concluir o curso.
Mas tinha de sobreviver fora da faculdade. Precisava de um lugar para morar, já que a enorme casa em que vivia tivera de ser vendida para pagar as contas deixadas. Também precisava comer, se vestir, se locomover, e para isso precisava de dinheiro, e ao contrário do que aprendera desde criança, a vida agora lhe ensinava que dinheiro não caía do céu.
Sempre fora bom em fazer amigos e também em mantê-los, sendo um jovem de fácil trato e sempre com um sorriso no rosto, e uma vez mais se valeu das amizades, agora de um colega de faculdade, para conseguir um emprego no hospital psiquiátrico que pertencia ao pai do amigo. Mas como não sabia fazer nada que não fosse estudar, já que nunca precisara trabalhar, a única coisa que tinha lhe sobrado era uma vaga como segurança da instituição, e como tinha um porte físico relativamente avantajado, acabou por conseguir o emprego.
O trabalho consistia em passar o fim da noite e o período da madrugada na instituição, fazendo rondas de hora em hora e prestando atenção a todo e qualquer movimento que fugisse à normalidade do local. O fácil era não ter que lidar com ninguém, fazendo apenas a vistoria em intervalos de tempo. O difícil seria conciliar esse mesmo tempo para estudar e dormir, já que passava os dias na faculdade e as madrugadas no trabalho. A única solução era dosar o sono da melhor forma possível, e era isso que vinha fazendo desde então, o que não significava que o organismo tivesse se adequado àquela rotina.
Mas havia outra dificuldade. Os demais funcionários do local não gostavam dele, e o consideravam mais um mauricinho – apesar de agora tão pobre quanto eles – que conseguira um emprego fácil, assim como tudo o mais que tivera na vida, e isso, nem seu charme pessoal combinado à facilidade de fazer amizades tinha dado jeito. Não houvera outra solução que não fosse fazer seu serviço e acostumar-se com a antipatia dos demais.
Mas havia um funcionário do qual ele gostava, e cujo sentimento lhe tinha sido recíproco. Seu nome era João, um senhor já na iminência de se aposentar, ao menos era o que tinha imaginado, pela aparência do homem, que pelo visto tinha a mesma idade que seu falecido pai. Só que aquele senhor era diferente. Simpático, simples e atencioso, sempre com um sorriso agradável nos lábios, ele fora o único que direcionara a Júlio uma palavra de amizade, e assim, todas as noites, especificamente na primeira hora da madrugada, eles se encontravam no corredor do primeiro andar, momento em que o velho funcionário estava passando o esfregão pelo chão impecavelmente limpo, e trocavam algumas palavras em uma conversa amistosa.
Júlio passara a gostar consideravelmente de João naquelas poucas semanas em que trabalhava ali, e chegara mesmo a imaginar como seria se seu velho pai fosse um pouco parecido com aquele simpático e tranquilo faxineiro, que além de uma palavra amiga, tinha uma voz agradável demais, que ecoava por aquele corredor vazio, enchendo de paz o coração do rapaz.
- Está na hora do passeio, meu jovem? – Perguntou João, quando Júlio se preparava para mais uma ronda.
- Hora de esticar um pouco as canelas e ver o movimento. – Respondeu Júlio, cumprimentando o velho, que lhe respondeu apenas com um aceno de cabeça, enquanto cantarolava a melodia costumeira de todas as noites. Certa vez o jovem perguntara a ele que música era aquela, que parecia ser tão bonita, e João limitou-se a dizer que o rapaz pesquisasse, e quando descobrisse qual era, poderia até mesmo lhe pagar um café na cantina do hospital.
Quando tinham se conhecido, o faxineiro não apertara a mão do jovem, mas explicou de imediato que deixara de fazê-lo não por antipatia, mas porque não queria sujar a mão do rapaz. A despeito dos protestos de Júlio, o velho insistira naquilo, e ele se acostumara a cumprimenta-lo com um aceno, que era de pronto respondido com aquele agradável sorriso.
- Super movimentando. – Falou João, dando uma piscadela de olho divertida para seu interlocutor. – Afora um velho faxineiro cansado e de olhos doloridos, acredito que não verá mais nada por aí. Bem, assim espero...
Aquelas últimas palavras foram ditas em um tom diferente do que Júlio se acostumara a ouvir na voz do homem naquelas últimas semanas. Era como se houvesse preocupação ali, como uma mensagem velada com algum significado que ele não sabia qual era. Aquilo trouxe a Júlio uma lembrança. Algo que nos últimos dias ele intencionara falar com o velho, única pessoa próxima dele ali, mas sempre que tinha a oportunidade para fazê-lo, fugia pela tangente, movido em grande parte por uma característica que herdara do pai, um quase que completo ceticismo.
- E eu deveria ver algo mais? – Perguntou, demonstrando um súbito interesse que não passou desapercebido pelo faxineiro.
- Você por acaso viu algo mais? – A resposta em forma de pergunta pegou Júlio de surpresa, especialmente por ter vindo seguida de um olhar atento e perscrutador de João, como se o homem soubesse algo que se passava em algum lugar da mente do rapaz.
- O que mais eu veria em uma das alas mais tranquilas do hospital? – Quis saber o jovem, falando por um lado com sinceridade, e por outro tergiversando. Realmente fora designado para o setor onde estavam os pacientes mais calmos, o que ocorrera por sua total falta de experiência naquele tipo de trabalho, mas uma vez mais procurava escapar do assunto, já que a visão da qual ele falava não se referia às pessoas que trabalhavam ou que estavam internadas ali.
- Essa ala nem sempre foi a mais tranquila do hospital. – Comentou vagamente o velho, enquanto voltava o olhar distraidamente para o esfregão que passava no chão já limpo. – Arrisco dizer que nunca chegou a ser... – E interrompeu-se subitamente, voltando a cantarolar aquela canção antiga, na voz que tanto agradava a Júlio.
- Nunca chegou a ser? Como assim? O que quer dizer com isso? – A curiosidade vinha estampada na voz de Júlio, misturada, ao fundo, com uma distante preocupação que se revelava discretamente.
- Conversas para outra hora, rapaz. Conversas para outro momento. Certos assuntos não devem ser tratados em determinados horários... ou certos locais. – Disse aquilo ainda fitando distraidamente o esfregão que movia lentamente, como se estivesse revisitando uma antiga lembrança, e por um instante, ainda que breve, tocou o peito, no lugar em que fica o coração, como se a massagear para afastar alguma dor que estivesse sentindo.
De outro lado, Júlio sentiu crescer dentro de si um sentimento de incômodo, algo que já vinha sentindo havia alguns dias, decorrente justamente do assunto sobre o qual tanto queria falar, mas sempre evitava. O modo misterioso com o qual João falara trouxera de volta aquela estranha e perturbadora sensação, e agora ela crescia a tal ponto que a vontade de falar era maior que o receio em parecer bobo ao tocar naquele tema.
- O que quer dizer com isso? Do que está falando, afinal? Fale a verdade, viu algo de diferente por aqui? Algo de... anormal?
- Estamos em um hospício, garoto. Geralmente o que se vê por aqui foge à definição de normalidade que a sociedade nos ensina.
- Não desconverse novamente. Sabe muito bem do que estou falando quando digo anormal. Quero saber se viu, ouviu, ou mesmo se sentiu algo que normalmente não se depararia em um dia comum.
João parou repentinamente de cantarolar e de esfregar o chão, e lançou a Júlio um olhar completamente diferente de todos os que já tinha lhe lançado desde que o rapaz passara a trabalhar ali. Eram olhos duros, frios, cheios de algo que parecia anteceder um aviso, um conselho, uma orientação voltada a corrigir um erro, ou a evitar que ele acontecesse.
- A pergunta, pelo visto, não é se vi, ouvi, ou senti algo, garoto, mas se você viu, ouviu, ou sentiu. – E fitou Júlio ainda mais seriamente, como se o estivesse tentando despi-lo até mesmo da própria pele e alcançando lugares escondidos nos cantos mais profundos de sua alma.
- E o que eu deveria ver? Ou mesmo sentir ou ouvir? – Perguntou nervosamente, com o nítido interesse de mudar de assunto, como se o velho tivesse de fato enxergado além do que ele permitia. – Quis saber apenas para puxar assunto. A única coisa que enxergo ou com a qual me deparo aqui todas as noites é com esse esfregão mais velho que a fome que você carrega para cima e para baixo. Sinceramente, o diretor do hospital não poderia comprar um material mais novo para você trabalhar?
Júlio não queria denotar nervosismo em sua voz, que saiu mais trêmula do que ele planejara que saísse, sabendo de imediato que não fora nada convincente naquele excesso de confiança encenado para o faxineiro. Aquilo o incomodou demais, chegando a irritá-lo, e de imediato lembrou-se das reprimendas do pai na época em que fora uma criança com medo, que perdera a mãe muito cedo e que tivera de crescer com um pai duro, frio e que se preocupava mais com o trabalho do que com o que o filho sentia.
“Deixe de bobagem”, dizia o velho. “Por acaso estou criando um maricas? Uma mulherzinha que se treme toda e vem chorando à primeira sombra que enxerga? Já falei que essas coisas que vê são fruto da sua imaginação. Se estudasse mais ou se brincasse com os garotos na rua deixaria essa estupidez de lado. Agora vamos, deixe de idiotice que não me mato de trabalhar para criar uma menina medrosa. Seja homem e esqueça essas besteiras!”.
Nunca esquecera aquela reprimenda, e com o tempo passou a usá-la para afastar as sensações que sentia quando estava sozinho no escuro do seu quarto, no meio da noite, e parecia ouvir passos no piso de madeira dos corredores de sua casa, ou mesmo a ver sombras se movendo, passando languidamente pela porta de seu quarto, como se algo estivesse à espreita para pegá-lo ao menor sinal de distração.
Com o tempo, aquelas sensações tinham sumido, e nunca mais voltaram a lhe preocupar. Até o dia em que conseguira aquele emprego. Tudo começara na primeira semana de trabalho, quando levantara para fazer a ronda. Em uma certa noite, na terceira, pelo que lembrava, passara a sentir como se alguém estivesse o observando. Enquanto caminhava pelos corredores vazios Júlio se virava esporadicamente, tentando visualizar alguém. Algum funcionário que estivesse em seu setor, ou mesmo um paciente que tivesse aberto, sabe-se lá como, a porta de seu quarto, e tivesse passado a pregar-lhe uma peça, como se brincando de polícia e ladrão.
Mas sempre que se virava, tudo o que via era o corredor vazio e silencioso, e a sensação parecia sumir tão rapidamente quanto tinha aparecido. Fora exatamente no dia seguinte a esse primeiro sentimento que conhecera João, o qual não tinha visto por ali nas três noites anteriores, e chegara a cogitar se não fora o velho que estivera a espia-lo de longe, mas nunca perguntara a ele nada sobre aquilo, ou sobre qualquer coisa envolvendo o tema. Pelo menos até aquele momento. Porém, naquela noite não conseguira escapar de fazê-lo, principalmente porque a sensação havia crescido ainda mais nas últimas semanas. Crescido a ponto de por vezes ele chegar a pensar que alguma mão surgiria do nada e...
- Planeta terra para a base. Houston, nós temos um problema. – Disse o velho em tom de chacota, tirando Júlio do devaneio no qual se metera. – Avisem que um astronauta foi engolido pelo vácuo e agora está vagando no universo dos pensamentos. Alguém mande uma nave para trazê-lo de volta.
Júlio piscou os olhos e percebeu que estivera perdido em seus próprios pensamentos e lembranças, vagando por um campo que o tragara momentaneamente, e tentou retomar o fio da meada, procurando lembrar-se sobre o que estavam falando, e em que parte daquele assunto perdido eles tinham parado.
- Já estou acostumado com o material com o qual trabalho. – Falou João, ajudando-o sem saber a lembrar-se onde o assunto tinha parado. – E se quis dizer que minha imagem é perturbadora, meu jovem, não posso fazer nada. Minha mãe me dizia que eu era um garoto bonito, mas mães são mães, e além disso, a idade não tem melhorado muito meu visual, portanto, tudo o que posso oferecer é a pele enrugada de um velho curvado com um esfregão na mão. – E ao dizer aquilo, parou para pensar um instante. – Quer saber? Acho que concordo com você, agora que pensei bem, é uma imagem bem perturbadora mesmo.
- Não falei de você. E também não vi coisa alguma por aqui, como disse antes. – Voltou a desconversar Júlio, sem achar graça no que o velho dissera. – Não acredito nessas besteiras. É tudo fruto de cabeças ociosas de quem não tem nada melhor para fazer com seu tempo. – Por um momento, o modo como falou soou tão parecido com o jeito do pai, que chegou até mesmo a pensar que fora seu velho quem dissera aquilo, e não ele.
- Então se não acredita, por que pergunta se já vi algo?
- A mente nos prega peças. – Tergiversou Júlio, uma vez mais. – Cansaço, estresse, até mesmo... bem, alguns problemas mentais.
- Está dizendo que se eu tiver visto algo, tenho algum problema mental garoto? Se sim, fico contente de já estar por aqui. Me poupa o trabalho de ir até o hospital para ser internado. – Sorriu brevemente para Júlio, e continuou a passar o esfregão no piso.
- Pode ser. Ou talvez esteja apenas cansado demais, trabalhando até de madrugada, e acaba vendo ou sentindo coisas... em determinado momento. – O jovem disse as palavras e entrou em uma espécie de divagação, como se visitasse um pensamento que o preocupasse. João o observou atentamente, um olhar analítico, perscrutador, como o que tinha dado antes, tentando identificar o que se passava na mente do rapaz.
- Diga-me, Júlio, e não tenha medo de parecer, digamos, uma pessoa com uma imaginação fértil, como seu pai costumava falar para você na sua infância. Por acaso viu algo nesses corredores? E se não viu, chegou a sentir?
A seriedade pouco característica no olhar e na voz de João o tiraram de prumo, e fizeram com que um arrepio leve, porém incômodo, corresse por seu corpo, trazendo-lhe um mal estar que não estivera ali um segundo antes, e mais do que em qualquer outro momento, Júlio sentiu uma vontade quase que incontrolável de pôr um fim àquela conversa, o que era incomum, visto que adorava dialogar com o velho faxineiro.
- Descreva esse algo.
- A impressão de estar sendo observado. De que olhos, surgidos não se sabe de onde, estão a fita-lo de algum lugar que você não vê. De que alguma presença passa crescer às suas costas enquanto você caminha pelos corredores silenciosos, chegando ao insuportável ponto de achar que mais cedo ou mais tarde uma mão gélida tocará seu ombro com dedos ossudos, arrancando de seu peito o próprio calor da vida. Arrancando de seu corpo a própria alma, e que ao virar-se você se deparará com uma visão aterradora demais até mesmo para ser imaginada, mas quando se vira, não enxerga nada além do mesmo corredor vazio e silencioso. Só que a sensação não vai embora. Não até sair daqui. Esse é o sentir ao qual me referi, garoto.
Júlio sentiu uma onda levemente gelada a lhe percorrer lentamente o corpo enquanto João fazia aquela descrição, e quando o homem do esfregão a terminou e ficou a fita-lo à espera de que dissesse algo, o rapaz não conseguiu fazer nada mais do que tentar engolir a saliva para trazer um pouco de umidade à garganta que secara repentinamente com o que acabara de ouvir. Júlio não sabia se tinha ficado com mais medo da descrição em si, ou da fidelidade da mesma para com o que ele realmente vinha sentindo enquanto caminhava por aqueles silenciosos corredores naquelas solitárias madrugadas de vigília.
- Conversas para outra hora, meu amigo. – Disse ele, repetindo as palavras que João lhe dirigira quando o assunto viera à tona, com a nítida vontade de encerrar aquele diálogo. Então fitou o relógio e encontrou a deixa para pôr fim à conversa que tinha passado de agradável para consideravelmente incômoda. – Agora tenho que ir. Tenho uma ronda a fazer.
- Como queira, rapaz. Como queira. Minha hora também chegou, e se eu passar mais um pouco esse velho esfregão nesse piso, vou acabar abrindo um buraco no chão, e buracos geralmente não são coisas agradáveis.
João deu-lhe um sorriso, aquele já conhecido sorriso agradável, que o acalmava, e por um momento Júlio sentiu novamente a vontade de ficar ali com o velho, que apesar de ter conhecido havia poucas semanas já lhe parecia um amigo de longa data. Acenou para ele, recebendo de volta um gesto semelhante, e evitando novamente de apertar a mão do faxineiro por um desejo que tinha sido externado por este último, virou-se e seguiu em direção à sua ronda. Mas antes que pudesse andar alguns metros, ouviu o chamado do funcionário, e olhou para ele, para ver do que se tratava.
- Diga-me, garoto. Sua ronda por acaso passa pelo subsolo? – A pergunta foi feita de um jeito que fazia parecer com que o faxineiro não se importasse muito com ela, mas o tom de sua voz externava exatamente o contrário.
- Não. Vai no máximo até o térreo e à porta de entrada, onde me deparo com aquele outro segurança que parece não gostar de mim nem um pouco. Mas não pelo subsolo.
- Bom, muito bom. – Novamente a coisa era dita como se não importasse para o velho, mas sua voz levava ao coração de Júlio uma impressão totalmente diferente. – Melhor assim.
- Boa noite João. Aliás, um bom dia. Já passamos da meia noite.
- Minha hora de ir, rapaz. E tenha também um excelente dia. E uma ótima ronda.
João recolheu o esfregão e o colocou em um velho balde de metal, fazendo com que Júlio se perguntasse o porque de o hospital ainda usar um material tão velho como aquele, algo que parecia ter saído de décadas passadas. Acenou novamente para o homem e partiu, caminhando pelo corredor de piso impecavelmente brilhante. Mas depois de andar alguns metros, duas coisas lhe vieram à mente. A primeira delas era que não lembrava de forma alguma de ter dito ao faxineiro o que seu falecido pai lhe dizia quando era pequeno, de que visões e algo do tipo eram coisa de pessoas de mente desocupada.
E a outra, era de que nos últimos dias vinha sentindo em seu íntimo uma vontade cada vez mais de visitar o subsolo daquela ala, especialmente quando chegava ao térreo e se deparava com a enorme porta dupla de metal que dava acesso ao local. Era naquela parte do prédio que tinha passado a sentir com uma intensidade cada vez maior a sensação de que alguém o observava, de que havia alguém... ou algo à espreita. Virou-se e olhou para trás, sentindo a vontade de perguntar ao velho como ele sabia dessas coisas, mas João já não estava ali, e o corredor parecia tão vazio quanto sempre estivera.
Silêncio, um mundo em silêncio. Nem mesmo os mocassins brancos de solado de borracha de Júlio faziam barulho quando tocavam no piso quase que espelhado, e o silêncio era tudo o que reinava no local. A ausência de qualquer som chegava a tornar-se pesada, quase tangível, como uma nuvem de fumaça que se tornava espessa demais diante dos olhos, e aquele estado perturbador de coisas apenas ampliava a sensação descrita com tanta exatidão por João momentos antes, que tanto o assustara, que tão gélido sentimento lhe trouxera.
Júlio caminhou pelos andares superiores, checando quartos, vendo através das pequenas janelas das portas os pacientes que dormiam, ou que permaneciam acordados lidando com suas próprias batalhas travadas em suas mentes. Andou por corredores, escadas e demais recintos, fazendo a ronda que repetia havia semanas, desde o dia em que fora contratado, seguindo as recomendações que lhe tinham sido passadas pelo sisudo chefe de segurança, sobre o que fazer e para onde ir.
Mas naquela noite ele recebera uma nova recomendação. Uma que indicava, ainda que de forma velada, o local para onde não deveria se dirigir. O porão, situado no subsolo do prédio, não fazia parte de suas rondas, sendo frequentado apenas pelos funcionários responsáveis por aquela área, ao menos era o que ele pensava, mas noite após noite ele passava diante das pesadas portas de ferro que davam acesso ao lugar, e era exatamente ali, naquele ponto, que a sensação de estar sendo observado era exponencialmente ampliada.
Era lá que o sentimento de que repentinamente alguém vindo do nada lhe tocaria o ombro por detrás, gelando-lhe os ossos e a própria alma, crescia até se tornar quase insuportável. E ao mesmo tempo era o lugar pelo qual sentia um estranho tipo de atração, como se as portas o chamasse sedutoramente, dizendo-lhe que o segredo para o que buscava estava atrás delas, ainda que ele não soubesse de fato o que realmente buscava naqueles dias.
Do limite do corredor do primeiro andar, Júlio abriu a porta de metal que dava acesso à escada, e tentando parecer despreocupado – no fundo não sabia se para si mesmo ou para alguém – desceu os degraus até o térreo. Lentamente, como se fosse algum foragido ou como se estivesse se escondendo de alguém – ou algo - abriu a porta apenas pelo espaço suficiente de uma fresta, pelo qual espiou, deparando-se com a mesma visão que tivera nos andares de cima.
O corredor era igualmente vazio, o piso igualmente brilhante, e o silêncio igualmente ensurdecedor. De diferente havia apenas a saída que se destacava à distância, aproximadamente a cinquenta metros de onde estava, e a ausência de portas no mesmo número que havia nos outros pavimentos, o que atestava que ali no térreo, à exceção de uma entrada que dava para o almoxarife, do próprio acesso da escada e da saída, não haviam mais cômodos abrigando pacientes. Mas claro, havia também a porta convidativa. A pesada porta dupla de metal que dava para o subsolo.
“Bom. Bom. Melhor assim”. As palavras de João surgiram novamente no silêncio de sua mente, misteriosas e ao mesmo tempo perturbadoras. Causando-lhe medo e simultaneamente atiçando sua curiosidade a um ponto quase que insuportável. Júlio atravessou o acesso à escada e olhou brevemente para os dois lados do corredor. Caminhou então até à porta de entrada do prédio, e ali saudou com um breve aceno de cabeça o segurança que dava plantão naquela área, recebendo o mesmo gesto em resposta.
“Nada de brechas para um papo rápido aqui”, pensou consigo. Aparentemente apenas João lhe dedicava alguma simpatia. Ainda era o novato, o riquinho de berço de ouro antipatizado pelos demais, e sabia que dificilmente desenvolveria amizades ou mesmo alguma proximidade mais cordial com algum de seus colegas. Resolveu então voltar. Terminara sua ronda, de qualquer forma, e tinha muita coisa para estudar e mais um tanto para cochilar até o fim de seu turno.
Mas assim que virou-se seus olhos foram instantaneamente atraídos para a porta dupla. Naquele momento, o silêncio pareceu pesar tanto que por um instante Júlio pensou que podia ouvir a própria ausência de som sussurrando em seus ouvidos. Lembrou-se então das outras vezes em que estivera no térreo, lugar em que a sensação de estar sendo observado sempre aumentava consideravelmente. Mas naquela noite o que sentiu foi algo diferente. Não como se alguém o olhasse de algum lugar oculto, mas como se alguém o convidasse... talvez para esse mesmo lugar.
Balançou a cabeça, como o faz alguém que quer afastar o sono ou alguma distração que prende por completo a atenção, e voltou o pensamento para os assuntos que teria para estudar na próxima hora, antes da ronda seguinte, e com isso em mente caminhou até o acesso à escada para voltar ao andar onde ficava seu repouso, mas assim que tocou na maçaneta sua atenção foi novamente atraída pela porta dupla, e sentiu algo novo crescer dentro de si.
Se havia algo que podia ser dito sobre Júlio, além de facilidade em fazer amizades, era que a curiosidade sempre fora uma de suas maiores características, por vezes até mesmo um defeito, e agora aquela vontade de investigar voltava a aflorar em seu âmago. “Bom. Bom. Melhor assim”, as palavras cheias de mistério de João voltaram a bater às portas de sua mente, como um convite ao bom senso. “Vá estudar, cara”, soou outra voz, a sua própria, dentro de sua cabeça, e ele se pôs a pesar os dois convites que lhe eram feitos naquele momento.
Depois de um curto tempo naquela indecisão solitária no meio de um corredor vazio, Júlio fitou o relógio, viu que ainda tinha alguns minutos, e que perder alguns a mais não atrapalhariam em nada, e repetindo o que já tinha feito tantas e tantas outras vezes, sucumbiu ao chamado da curiosidade que ecoava em sua mente, deixando de lado a porta da escada para ir em direção à que dava acesso ao subsolo.
Enquanto caminhava em direção à porta sentiu um misto de sensações, que envolvia o desejo por ir até o local e ao mesmo tempo um repúdio por aquele mesmo canto, como se metade sua quisesse ir até lá, enquanto a outra metade pedia insistentemente para que desse meia volta e saísse dali. Imediatamente lembrou-se dos tantos e tantos filmes de terror que assistira, nos quais sempre chamava de burros os personagens que tomavam o exato caminho em que o vilão ou o monstro estavam à espreita, como se seguir aquela senda fosse a coisa mais estúpida do mundo, mas ainda assim eles o faziam.
“Dê meia volta, seu idiota”, as palavras soaram em sua mente, e por um momento ele pensou ter reconhecido a voz de João em sua própria cabeça, mas logo afastou o pensamento, não vendo lógica alguma naquilo. A briga se seguiu, a discussão entra as duas partes de si mesmo, uma querendo ir, a outra pedindo desesperadamente para voltar. Venceu a primeira. A curiosidade sempre fora maior que seu medo, e ele nunca tinha parado no caminho que decidira seguir para descobrir algo, o que lhe rendera alguns problemas na vida.
Mas nunca tinha parado, e aquela não seria a primeira vez. Além disso, que mal teria em visitar o subsolo de um hospício em funcionamento? No máximo ele encontraria corredores vazios, provavelmente menos limpos que os superiores, e se muito levaria uma bronca de algum outro segurança que estivesse no local ou que o visse fora do trajeto de sua ronda diária.
“Isso é o que pensa”. A voz soou novamente, e dessa vez Júlio olhou para os lados e para trás, como se não a tivesse ouvido dentro de sua cabeça, mas fora dela, e naquele momento teve quase certeza que tinha escutado João falando, e não sua própria consciência. “Besteira”, pensou, e sem permitir espaço a qualquer indecisão, levou a mão à porta dupla de ferro que parecia chama-lo com insistência cada vez maior.
Mas assim que a tocou sentiu uma espécie de mal estar subindo por seu corpo com a rapidez e a brevidade de um arrepio sentido no meio de uma noite solitária. Algo estranho. Algo frio. Algo desagradável, como se a porta estivesse viva, e ao mesmo tempo... morta. Em suas aulas de medicina já tocara em alguns cadáveres, e nunca se sentira bem fazendo aquilo. Agora, tocando aquele pesado instrumento de ferro, era como se estivesse sentindo a textura fria de um corpo sem vida.
Afastando o desagrado com um esgar na boca, ele fez uma breve careta e puxou com força a porta, ouvindo o rangido característico de dobradiças que já tinham visto muitos anos se passarem desde o dia em que foram instaladas. Assim que o fez sentiu um vento frio tocando-lhe o rosto, e o cheiro típico de lugares fechados lhe atingiu as narinas. À sua frente, escuridão.
Pegou a lanterna que carregava pendurada junto ao cinto, acendeu e deu uma rápida olhada até onde o facho de luz levava alguma claridade, e depois de nada ver que valesse à pena sua atenção, Júlio buscou nas paredes ao lado algum interruptor, encontrando um posicionado imediatamente à direita do local onde estava. Acendeu-o, e luzes piscaram por todo o lugar, a princípio vacilantes, e depois ganhando força até encherem o local de uma luminosidade fria e branca.
Luzes antigas. Lâmpadas fluorescentes daquelas que quase já não eram usadas, espalhando uma claridade opaca e estéril pelo lugar, acompanhada pelo zumbido distante causado pela passagem de energia. Era como se elas falassem. Era como se sussurrassem em seus ouvidos. Júlio correu a vista pelo lugar, constatando que era tudo o que exatamente tinha imaginado momentos antes. Um curto corredor semelhante aos demais, com piso mais áspero e menos limpo que os outros.
Mas ao fundo, algo chamou sua atenção. Uma placa, velha, manchada, com uma seta que parecia ter sido vermelha um dia, mas que já perdera sua cor o suficiente para ficar opaca. Apontava para a esquerda, e de onde estava ele pôde ler as palavras parcialmente descascadas que indicavam “Porão”. Um frio cortante subiu-lhe novamente pelo corpo, e Júlio virou-se o mais rápido que conseguiu, sentindo novamente aquela sensação de que havia alguém a espiá-lo de perto. De muito perto. Mas assim como das outras vezes, não havia nada ali. Ninguém, além dele mesmo.
Virou-se novamente e fitou a placa. Em sua mente surgiu o pensamento de que não precisava ir além de onde estava. Já passara pela porta e matara a curiosidade, vendo nada mais que outro corredor praticamente idêntico aos demais. Agora podia dar meia-volta e agarrar-se aos livros antes que tivesse de fazer a próxima ronda pelo prédio.
Mas o chamado que antes estivera na porta agora parecia vir do fim do corredor, da placa opaca, da escadaria que se estendia para além da parede levando ao porão, esse sim o lugar pela qual sua curiosidade tinha sido aguçada na conversa com João. “Bom. Bom. Melhor assim”, ele dissera, assim que Júlio respondera que sua ronda não passava por ali. Desde então um comichão tinha surgido na mente do rapaz, crescendo conforme ele se aproximava do térreo, da porta dupla, e agora, dali.
Apenas alguns metros o separavam do lugar que tanto aguçava sua curiosidade, e ele se perguntava o que valia mais à pena, dar meia volta e retornar aos estudos, ou seguir por apenas algum tempo e dar uma breve olhada no local que agora lhe parecia tão misterioso. “Ora, o que tem a perder? É só uma olhadinha.” Aquelas palavras foram cantadas na mente de Júlio, e ao mesmo tempo que se assemelhavam à sua própria voz, pareciam também inteiramente estranhas, e de alguma forma... cheias de malícia.
Mas ainda assim eram atrativas, sedutoras e de alguma forma coerentes. Por que todo aquele temor? Todas aquelas dúvidas? Afinal, não acreditava naquele tipo de coisa, não via nada demais no sobrenatural além de fantasias de mentes ociosas, e nunca tivera qualquer prova da existência de espíritos ou coisas do tipo. Assim fora ensinado pelo pai, que sempre dizia, “depois que você morrer, nada mais haverá para ver”.
O pensamento lhe trouxe tristeza, por agora acreditar que o pai se tornara parte de um nada, de algo que nunca mais seria visto ou ouvido, mas também lhe encorajou a continuar, e lhe deu forças para desdenhar tudo o que vinha lhe servindo de freio a partir do momento em que deixara João para trás, desde a sensação estranha de que alguém o seguia ou observava, até o desagrado e o mal estar que sentira ao tocar na porta de ferro.
Sem pensar mais em qualquer coisa, pendurou a lanterna na cintura e seguiu em frente, caminhando em direção à seta opaca que indicava as escadas para o subsolo, sendo acompanhado apenas pelo zumbido preguiçoso das lâmpadas fluorescentes que lançavam sua luz pálida e fria sobre sua cabeça e sobre o corredor vazio.
Passou pela seta e pisou no primeiro degrau, parando por um momento para olhar para trás. Por um instante pensou ter ouvido a voz de João dizendo para não seguir aquele caminho, mas logo descartou a ideia ao não ver nada nem ninguém ali. Decidido, desceu as escadas, voltando a pegar a lanterna após alguns lances, para iluminar o local que fora uma vez mais engolido pela escuridão.
Quando chegou perto do último lance foi atingido por um cheiro forte e nauseante, que o fez parar repentinamente, levando as mãos ao nariz ofendido. Cheiro de mofo, de coisas velhas, guardadas há muito, cheias de bolor, poeira e teias de aranha, e com um toque, ainda que distante, de decomposição. Um odor típico de porões, mas muito, muito mais concentrado, chegando até mesmo a ser opressivo.
Júlio tentou respirar em meio a todo aquele forte odor, e chegou a sentir a garganta arder, juntamente aos olhos, o que associou de imediato à poeira que devia estar se espalhando pelo ar. Afastou-se dois degraus, tomou fôlego, e depois de alguns segundos cogitando se deveria ou não seguir em frente, decidiu por continuar. Já chegara até ali, não custava nada dar uma ou duas olhadas. O máximo que poderia acontecer seria alguma alergia que o faria espirrar por um tempo. Nada que não passasse em meia ou uma hora.
Pegou um lenço que levava no bolso de trás da calça e apertou junto ao nariz, depois desceu o restante dos lances. Para além do cheiro forte, a escuridão que havia ali era tão densa que dava a impressão de que poderia até mesmo ser tocada. Júlio apertou os olhos lacrimejantes, tentando enxergar melhor o que era alcançado pelo facho de luz de sua lanterna, e o que viu não foi nada mais que sujeira, entulho, bagunça e um sem número de objetos espalhados de forma desordenada pelo local.
Por um momento se perguntou o que o diretor do hospital acharia da displicência da equipe de limpeza com aquele lugar. Certo que porões não eram a parte mais atrativa das casas ou dos prédios, mas isso não impedia que esses locais fossem deixados de uma forma apresentável, e não abandonados e imundos, como aquele estava.
Convencido de que não havia mais nada a fazer ali, Júlio voltou-se para subir a escada novamente, e nesse momento sentiu seu sangue gelar nas veias ao ter um vislumbre ao seu lado de uma forma que parecia estar perto demais de seu rosto. Deu um salto para trás e sufocou um grito, para logo em seguida praguejar, irritado e ao mesmo tempo amedrontado, ao constatar que não era nada mais que um velho cabideiro de piso, daqueles com vários ganchos para pendurar roupas. O objeto era praticamente da sua altura, e grande o bastante para ser confundido, de relance e em meio a um lugar mal iluminado, com uma pessoa.
Já mais aliviado, e depois de empurrar irritado o cabideiro, que de tão pesado mal saiu do lugar, Júlio moveu-se novamente em direção à escada, mas uma vez mais seus sentidos de alerta foram alçados ao extremo quando ouviu ao longe um ruído que o fez virar-se com uma rapidez que sequer imaginava que seria capaz de alcançar.
Jogou o mais rápido que conseguiu a luz da lanterna no local em que achou que viera o som que ouvira, seus sentidos todos em alerta e a garganta repentinamente seca como reação, e uma paralisia parcial pareceu percorrer todo seu corpo, levando a uma perturbadora sensação de torpor misturada ao medo ao ver que havia alguém ali. Uma pessoa parada, de costas, a um canto da parede que ficava a metros de onde ele estava.
(Continua)
A Ronda (Parte II)
(Continuação)
Júlio teria gritado, se o espanto lhe permitisse que alguma voz saísse de seu corpo, mas tudo o que sentiu foi um berro de susto percorrendo o caminho até sua boca e se deparando com uma barreira invisível de pavor que fez com o grito voltasse para dentro dele, embaralhando-se com a miscelânea de sentimentos que tumultuavam sua percepção naquele momento.
Levou instantaneamente uma das mãos à cintura, em busca do rádio comunicador, e tentou segurar a lanterna com a outra, que trêmula, sacudia levemente o feixe de luz que tentava focar naquela imagem perturbadora. Na boca, quilos e quilos de areia pareciam ter sido despejados, e pela primeira vez na vida o jovem teve a impressão que seu corpo tinha deixado de produzir saliva, pois não havia nada ali a engolir, a não ser o medo e o espanto.
- Q-q-quem é você? – Disse reticente, assim que conseguiu reunir algum controle para fazer com que as palavras finalmente saíssem de sua boca.
Do outro lado, não houve resposta. Apenas a imagem que de costas para ele parecia estar com o rosto e o corpo encostados à parede, como uma criança que é posta de castigo em um ponto específico por ter feito algo de errado. Júlio, agora um pouco mais senhor de seus próprios atos, apertou os olhos e segurou com mais força a lanterna, tentando fazer com que o facho de luz parasse de tremer.
Ao prestar mais atenção, ele percebeu que se tratava de uma mulher, com longos cabelos escuros que se estendiam até a cintura. Pareciam sujos e desgrenhados, mas naquele local, tudo parecia sujo e fora de ordem. Percebeu então que ela usava o uniforme que era dado aos pacientes que ali ficavam internados, e o medo que sentia recuou um pouco ao concluir que devia se tratar de alguma interna que tinha se evadido sem que alguém percebesse.
Por um instante um novo medo surgiu em sua mente, mas aquele referia-se ao temor de que aquela paciente estivesse internada em seu andar, e que de algum modo ele tivesse deixado escapar a atenção o suficiente para que ela tivesse se evadido de seu quarto, indo parar, sabia-se lá porque, naquele porão imundo e perturbador. Imediatamente retirou a mão do rádio comunicador, desistindo da ideia de chamar reforço.
Não queria nenhuma mancha em um trabalho de que tanto precisava, e no qual estava havia apenas poucas semanas, e tentaria resolver tudo sozinho. Além disso, todos diziam que os pacientes daquela ala eram os mais calmos, e achou que aquela mulher não lhe traria maiores problemas. Usaria um pouco do tato que possuía e que tanto facilitava sua vida quando se tratava de agradar pessoas e fazer amizades, ao menos fora daquele hospital.
- Alô. – A voz agora saía com um pouco mais de firmeza, e o corpo, antes gélido, já permitia que um pouco mais de calor se fizesse presente. – Moça... senhora. Não pode ficar aqui. Tem que voltar ao seu quarto. Está muito tarde e precisa descansar. – Tentou imprimir suavidade na forma como falava, usando o tom mais calmo que conseguiu externar, mas não recebeu resposta alguma da estranha figura que permanecia de pé do outro lado do porão.
Então, repentinamente pareceu reparar em algo. Ela não falou, mas seu corpo pareceu se mover. Não se virou e nem caminhou em direção a qualquer lado, mas permaneceu de pé, movendo-se levemente, a princípio para frente e para trás, depois para os lados, e por último em leves círculos. A imagem voltou a trazer incômodo a Júlio, que sentiu algo perturbador crescendo em seu peito ao vislumbrar aquele movimento, que parecia mais uma estranha dança xamânica, como se a mulher estivesse em algum tipo de estranho transe.
- Senhora, por gentileza, peço que venha comigo para que possamos subir. Não podemos ficar aqui. - A perturbação com aquele estranho movimento aumentou em Júlio, o que fez com que ficasse um pouco mais impaciente, mas ainda assim controlou o tom de voz para não causar qualquer reação mais agressiva por parte da mulher, afinal, estava em um hospital psiquiátrico, e não sabia como poderia agir uma pessoa nas condições em que aquela paciente estava.
A movimentação, a estranha dança que a mulher fazia aumentou de velocidade, e Júlio sentiu uma gélida onda subindo por suas costas. Ao mesmo tempo, pensou ter vislumbrado algo com sua visão periférica. Algo que estava ao seu lado, mas apesar da apreensão, não tirou os olhos da mulher que se mexia de forma estranha, calculando que o que achara ter percebido não era nada mais que o cabideiro que o surpreendera minutos antes.
Cansado com a ausência de resposta, com aquela dança estranha e perturbadora, e com o ar fétido e pesado daquele porão imundo, Júlio deixou que a impaciência suplantasse o medo, e caminhou lentamente em direção à mulher, alternando o foco entre o local onde ela estava, e os entulhos que haviam no chão, dos quais tentava desviar-se da melhor maneira possível.
Repentinamente parou, ao perceber que a mulher cessara o movimento e erguera os braços lentamente em direção aos cabelos, que de mais perto pareciam ainda mais imundos do que tinham dado a impressão de ser à distância. Agora ela sacudia a cabeleira suja de uma forma estranha, como se coçasse e ao mesmo tempo assanhasse aquela cascata de fios. Júlio não soube dizer se a pele da mulher, vista àquela proximidade, era de fato acinzentada ou se tudo era apenas uma ilusão causada pela poeira do lugar mesclada à pouca luz que ali havia. Resolveu então fazer uma última tentativa, antes de ter de apelar para uma abordagem mais incisiva.
- Senhora... moça, veja bem, não podemos ficar aqui. Temos de subir. Você precisa voltar ao quarto e descansar. Já é tarde, e amanhã precisa estar descansada.
- Não vou subir. - Um sussurro, a princípio quase inaudível, saiu da mulher. - E nem você vai subir. Meu quarto é aqui, há muito tempo, e será, por muito tempo em diante. Não há descanso, seu moleque insolente. Não há repouso e nem haverá, para mim ou para você. Não há amanhã. Aqui, o amanhã morreu. Aqui... você já morreu! Aqui, você é meu!
Ao ouvir aquelas palavras Júlio sentiu cada poro de sua pele arrepiar-se formando pequenas bolotas enquanto seu corpo inteiro gelava, parecendo ser tomado por uma forte mão gélida que parecia carregar em si o próprio mal. Aquela voz. A voz era perturbadora, obscura, verdadeiramente assustadora. Parecia um misto de gravação em fita cassete tocada em câmera lenta com alguém que fumara milhões de maços de cigarro durante toda a vida até que as cordas vocais fossem inteiramente corroídas. Era um sussurro arranhando mesclado a algo lento, grave e pérfido.
De outro lado, o rapaz voltou a sentir aquela sensação que tinha crescido com o passar dos dias. A de que havia alguém ali, atrás dele, chegando lentamente, erguendo uma mão para tocar-lhe o braço, o ombro, talvez até mesmo a alma, e sem pensar duas vezes virou-se para o local, correndo o facho de luz pelo ambiente e temendo o que veria, mas temendo ainda mais ficar parado e nada ver até que fosse tarde demais.
Nada. Nada ali além do escuro debilmente afastado pelo facho da lanterna e do entulho espalhado pelo chão. Apressado, Júlio lançou novamente a luz em direção ao lugar onde a mulher estava junto à parede, sentindo o sangue gelar novamente e uma torrente de choque passar-lhe pelo corpo arrepiando cada poro de sua pele ao ver que ela já não estava mais lá.
Mas não teve muito tempo para assimilar o medo, pois outra sensação o atacou quando sentiu um cheiro pútrido violando despudoradamente suas narinas, um cheiro que vinha de seu lado, e tão logo apontou para a sua direita a luz da lanterna, seu cérebro, seu corpo, seu ser inteiro foi violentamente chacoalhado com o que viu.
Um rosto, ou o que tinha restado de um rosto, sustentando algo que emulava de forma doentia algo que parecia um sorriso, o sorriso mais hediondo que já vira em toda sua vida. A pele era leitosa e murcha, e algo dentro dela mexia-se, como se milhões de vermes passeassem por dentro daquela camada, devorando-a por dentro.
A boca era aterradora, e sorria para ele, abrindo-se em um buraco negro e assustador, tomado por parcos dentes podres, de um negrume mais escuro que uma noite sem lua ou estrelas. De dentro dela um fedor pútrido de decomposição escapava, espalhando-se pelo ambiente e revirando seu estômago do avesso. No pescoço, uma grande fenda se abria, como um buraco aberto sorrindo para ele de forma horrenda. Da fenda, uma gosma fedorenta e nauseabunda escapava, espalhando-se pelo corpo magro e sujando a farda imunda que se assemelhava à dos outros pacientes. Mas o pior de tudo eram os olhos...
Nas órbitas profundas duas esferas leitosas pareciam flutuar, arregaladas, grandes e cinzentas como versões deturpadas e degeneradas de luas sem vida. Olhavam para ele com desejo, com gana, como se estivessem famintas por sugar dele algo mais que seu corpo. Como se quisessem devorar o mais profundo de seu âmago, como se quisessem apossar-se de sua alma.
- Não vamos subir, garoto. Vamos descer... fundo e mais fundo, dentro da escuridão. Fundo e mais fundo, e quanto mais baixo formos, mais você será meu... você e sua almaaaaaaaaaaaaa...
A voz hedionda pareceu arrancar todo o calor de seu corpo, e por um momento ele achou que a alma abandonava sua carne, deixando-a ali para apodrecer junto a todo o entulho daquele porão. Para apodrecer na escuridão. Júlio não conseguiu gritar, não conseguiu mover-se, não conseguiu sequer piscar os olhos, por mais horrenda que fosse aquela visão. Tudo o que ele conseguia fazer era segurar a lanterna em direção àquele rosto aterrador, com medo de que se desviasse a luz, o escuro tomaria tudo, e ele fosse engolido para algum lugar do qual jamais poderia sair.
Mas não precisou desviar o objeto do rosto horroroso que o fitava, pois repentinamente a luz falhou e tudo ficou escuro. Uma escuridão se abateu por todo o lugar, que o privou de qualquer sinal, o mínimo que fosse, deixando-o desnorteado e sem qualquer orientação. Apesar de já não ver a coisa horrenda que o assustara até o último pedaço de seu ser, ele ainda podia senti-la ali, e não soube decidir o que era pior, se ter aquela visão aterrorizante, ou se não vê-la, mas saber que ela estava bem ao seu lado.
Como se para responder aquele pergunta, a voz hedionda sussurrou uma vez mais no seu ouvido, bem perto, bem ao seu lado, quase encostando os lábios rachados e pútridos em sua orelha:
- Meeeeeu... Você agora é meeeeeeeeuuuuuuuuu...
O som se perdeu no terror de seu coração, e a força de suas pernas cedeu de vez quando ele sentiu um braço gélido e áspero a lhe envolver o pescoço, dando-lhe o vislumbre de uma enorme serpente agarrando sua vítima para logo em seguida devorá-la. Naquele instante, a única coisa que conseguiu fazer além de ser tomado pelo horror foi rezar para que aquilo fosse um sonho, um pesadelo horrível do qual acordaria suado e gritando, cheio de medo e pavor, mas ainda assim livre.
E assim ele rezou, esquecendo do ceticismo que aprendera do pai, esquecendo da descrença que permeava cada passo que dava, rejeitando a própria rejeição que tinha à existência de Algo ou Alguém Maior. E enquanto rezava sentiu um corpo esquelético colando-se ao seu. O corpo daquela monstruosidade que jamais esperara encontrar, em um encontro que não imaginou nem nos seus piores pensamentos.
Naquele instante sentiu o braço apertando-se sobre seu pescoço, o fedor imundo do hálito tomando-lhe por inteiro o nariz, e o contato daquela pele eliminando todo e qualquer calor de seu corpo, e teve a sensação de que caía nas trevas. Mas exatamente quando o escuro parecia engolir toda sua mente e capacidade de percepção, ele ouviu uma vez, a princípio baixa e distante, mas ainda assim acalentadora, uma voz que trazia um fio de esperança a uma realidade de desespero.
- Foi longe demais no passeio, garoto. Espero que lembre disso na próxima vez em que sentir o impulso.
E repentinamente sentiu que uma mão vinha de trás. Mas não a mão fria e aterradora que tantas vezes imaginara que se aproximava naqueles corredores vazios. Aquela era quente, reconfortante, e forte. Um toque de calor do dia em meio ao frio da escuridão. A mão tocou seu ombro, e automaticamente ele sentiu o braço áspero e gélido que agarrava seu pescoço vacilar em sua força.
- NÃÃÃÃÃOOOOOOOOOOOOOO!!! – A voz hedionda berrou em um urro que parecia carregar todo o horror e desespero da existência. – VOCÊ! VOCÊ DE NOVO! NÃÃÃÃÃOOOOO! VÁ EMBORA SEU MALDITO. ELE É MEU!
A despeito do horror que o berro lhe trouxe, o toque daquela mão acalentadora pareceu lhe dizer que não havia mais razão para medo, e conforme o braço afrouxou o aperto em seu pescoço, ele sentiu-se levado para outra direção, como se fosse uma folha ao sabor do vento. O braço gélido o soltou, o hálito pútrido sumiu de suas narinas, o corpo grotesco que colara junto ao seu desapareceu, e cada vez mais distante o som daquela voz áspera e cortante foi sumindo, como se arrastado de volta para a escuridão aterradora que se escondia nos lugares mais ocultos do mundo.
Conforme ele era levado, uma sensação de torpor o tomava, como se flutuasse e flutuasse, levado por algo ou alguém que ele não sabia dizer o que era, para um lugar que ele desconhecia. Então caiu, e sentiu um frio percorrer-lhe a espinha e apossar-se por inteiro de sua barriga, subindo conforme ele caía e caía, e a única coisa que veio em sua mente foi como tudo aquilo se assemelhava à sensação de despencamento que sentia quando estava prestes a acordar de um pesadelo em que se mergulha em um precipício.
Com aquilo na mente, ele caiu, caiu e caiu, sendo tomado de uma vez pela quase que total ausência de consciência ou percepção...
Júlio caiu e sentiu sob suas costas o chão duro e frio enquanto o baque da cadeira se chocando ao solo chegou aos seus ouvidos. Totalmente desnorteado ele teve um rápido vislumbre de calças e sapatos brancos girando no ar e balançando-se debilmente, como se fossem fantoches sem um mestre dos bonecos para controlá-los.
Então percebeu que do chão ele fitava os próprios pés e pernas estendendo-se no ar, que ao seu lado estava a cadeira em que costumava sentar-se no repouso nas últimas semanas para dedicar um pouco de tempo ao estudo nos intervalos das rondas, e que à sua frente estava a mesa que usava para ler e fazer suas anotações. Instintivamente levou as mãos ao pescoço, e à exceção da dor causada pelo choque com o solo, não sentiu o contato de nenhum braço frio, ou de qualquer mão acalentadora.
Sentou-se em reflexo, apalpando pernas, braços, tronco, para ver se de fato se localizava na realidade ou em algum sonho maluco, e a conclusão à qual acabou chegando após alguns momentos entre a clareza e o devaneio foi que provavelmente pegara no sono estudando e tivera um dos piores, senão o pior pesadelo de toda sua vida.
Repentinamente teve o vislumbre de alguém ao seu lado, uma sombra, surgida do nada, e daquela vez conseguiu dar um berro que pareceu ecoar pelos corredores, afastando-se desajeitadamente com o traseiro ainda no chão, e chutando o ar com os pés que descontrolados acompanhavam o movimento do corpo. Mas não foi uma visão aterradora, como a do pesadelo, a que teve naquele momento.
Parado diante dele estava um homem, de estatura semelhante à sua, mas que aparentava ter ao menos trinta anos a mais que ele. A visão não lhe trouxe o pavor do pesadelo, mas não deixou de causar medo nele, um medo diferente, porque ali estava o chefe da segurança do hospital, responsável por fiscalizar se os demais empregados estavam fazendo o serviço direito.
- Pegou no sono, novato? – Perguntou ele, em uma voz grossa e cheia de autoridade. Então fitou o relógio, ergueu uma sobrancelha, e voltou a falar. – Não deveria estar fazendo sua ronda agora? – E bateu duas vezes no vidro do relógio, como se a mostrar-lhe as horas.
- Eu... eu... eu... – Júlio não conseguia concatenar nada para falar algo que valesse a pena ser dito.
- Você pegou no sono, garoto, e em serviço. Agora levante o rabo desse chão e vá fazer o seu trabalho.
- Mas... foi tudo tão... tão real. – As lembranças surgiam com força cada vez maior em sua mente, em imagens rápidas e sucessivas, e repentinamente Júlio sentiu que a coisa que vira estava atrás dele, o que fez com que desse um salto e se levantasse, virando-se para a parede que está em suas costas.
- Do que está falando, rapaz? – Falou o chefe, com uma expressão preocupada a surgir em seu rosto.
- Da coisa, do porão. A porta... a mão. Tudo pareceu tão real. Eu estava fazendo a ronda e fui investigar. Até falei com João antes, e ele parecia saber que eu não deveria ir até lá...
- Falou com quem?! – Perguntou bruscamente o chefe, como se tivesse sido atingido por um tapa.
- Com João, ora. O faxineiro que sempre encerra o turno quando estou começando o meu. – Júlio falou como se explicasse a uma criança a coisa mais óbvia do mundo, mas preocupou-se ao perceber que a reprovação que vira no rosto de seu chefe modificou-se em um olhar extremamente duro, que parecia conter até mesmo um pouco de raiva.
- Isso por acaso é algum tipo de piada, garoto? Porque se for eu já lhe alerto, não tem a mínima graça. Posso tolerar um ou outro subordinado que eventualmente pegue no sono no meio do serviço, isso eu posso deixar passar, mas desrespeito é algo que suporto, então me responda, está de piadinha comigo?
- C.. como assim. Não! – Júlio mesclava surpresa e indignação. – Que piada? Onde há piada no que falei? Apenas disse que estava começando minha ronda, quando parei para falar com João, o faxineiro e...
- CALE-SE! – Berrou o chefe, com a tez ficando brevemente avermelhada e os olhos cheios de indignação. – Saia, garoto. Está dispensado por hoje. Vá para casa e pense bem no que fez. Amanhã decidirei o que fazer com você.
Júlio ainda tentou argumentar, mas o olhar duro de seu chefe foi claro o suficiente para dizer-lhe que deveria ficar calado. Completamente desnorteado com tudo, ele apenas aquiesceu, e saiu tropegamente, recolhendo os livros em uma mochila e deixando em cima de sua mesa o crachá, o rádio comunicador e a lanterna que carregava. Na tarde seguinte ele voltou ao hospital, e um tanto sem jeito adentrou na sala de seu chefe, que do outro lado do birô o fitava de forma dura e impassível.
- Quando chegou aqui, rapaz, não gostei de você, isso eu confesso. Fora o porte físico eu não vi motivo algum para que desempenhasse uma função que requer responsabilidade e dedicação, coisa que faço aqui há mais de trinta anos, desde que tinha sua idade. Mas mesmo não gostando de você, ainda assim fiquei admirado com sua dedicação aos estudos e até mesmo ao trabalho, sempre fazendo as rondas na hora certa, como me informavam os demais seguranças que o viam nos outros andares. Mas o pouco desse respeito foi pelo ralo ontem com essa sua gaiatice surgida do nada, e isso eu não posso tolerar, por isso, estou aqui apenas comunicando que vou solicitar sua demissão junto ao dono do hospital, e assim que ele souber o que fez, não vai levar em consideração a amizade que tem com o filho dele. Não depois dessa sua piada de mau gosto.
- Mas que piada de mau gosto? Eu ainda não entendo. – A expressão de Júlio era tão verdadeiramente confusa que por um momento o chefe ficou inclinado a achar que era honesta, mas logo recompôs-se.
- Ora bolas, rapaz, não insulte minha inteligência. Não sei como soube dessa história, mas usa-la para fazer piadinhas, ainda mais com o envolvimento que tenho com isso tudo... ah, garoto, esse tipo de coisa eu não posso admitir.
- Mas... – Júlio queria falar, mas a expressão dura do homem à sua frente fez com que desistisse. Naquele momento pensou que a antipatia que os demais funcionários sentiam por ele se estendia ao chefe de segurança, e que o desejo de vê-lo fora dali podia influenciar todo tipo de conduta, até mesmo uma história absurda sobre um comportamento desrespeitoso que ele tivera com o chefe, e do qual ele sequer sabia do que se tratava. “Escolha suas lutas”, lembrou-se de um velho ditado que ouvira certa vez, e achou melhor guardar a argumentação para tentar convencer o pai do amigo, e isso se tivesse a chance de argumentar com ele o que quer que fosse.
- Peço desculpas, chefe, se fiz algo que o chateou além de ter pego no sono no meio do serviço. – Disse ele, sendo sincero em cada palavra, e já antevendo a possibilidade de não conseguir convencer o dono do hospital a mantê-lo no emprego. – O que quer que eu tenha feito que o tenha chateado tanto, garanto que não tive a intenção de fazer. – E quando já estava na porta, virou-se novamente para o homem no birô e disse-lhe, depois de lembrar-se de algo. – Se eu realmente for demitido e não puder voltar mais, pode me fazer só um favor? Em nome do respeito que disse que chegou a ter por mim?
- Não prometo nada. – Limitou-se a dizer o chefe, com a dureza impressa tanto na voz quanto no olhar.
- Se encontrar com João por aí, diga que descobri qual é a música que ele fica cantarolando enquanto passa aquele esfregão tosco no corredor. É “Like a bridge over troubled water”, de Paul Simon. Ele disse que me pagaria um café se eu descobrisse. Acho que vai ficar para a próxima. – E saiu pela porta, sem ver que deixara para trás um homem com um olhar atônito e com a pele tão branca como a neve. Um homem que parecia ter visto um fantasma.
No dia seguinte Júlio espantou-se com um telefonema do chefe de segurança, convocando-o a novamente comparecer em seu gabinete. Ao chegar lá, naquela tarde, o homem o perguntara novamente sobre o faxineiro do corredor, e o rapaz lhe dissera tudo, como se as conversas que tinham entre suas rondas fossem a coisa mais natural do mundo. Chegou mesmo a reconhecer João em uma antiga foto de arquivo que o homem lhe mostrou.
Naquela tarde Júlio soube, pelo chefe de segurança, que de fato havia um faxineiro com o nome João trabalhando ali, ou melhor, que houvera. Um homem que exercera aquela função naqueles mesmos corredores, mas que já não o fazia há mais de trinta anos. Naquela tarde, ele soube que aquele faxineiro morrera três décadas antes, como herói, ao salvar um rapaz mais ou menos da sua idade de uma paciente que surtara e perdera o controle.
- Aquele rapaz era eu. – Disse o chefe, com a voz vacilante e o olhar perdido, como se estivesse viajando através das lembranças. – Eu era apenas um novato, como você. Mas naquele tempo, ao contrário de hoje, essa era a pior ala do hospital. A que ficavam internados os piores pacientes. Os mais violentos. E havia aquela garota. Jovem, bonita, mas completamente desnorteada. Estava aqui porque tinha matado e esquartejado a própria família, e dissera que as vozes a tinham dito para fazer aquilo. O Juiz decidiu que ela era louca, e com razão, determinando que ficasse aqui, sob custódia do Estado.
“Quando a vi pela primeira vez cheguei a ficar com pena. Tão jovem e bonita, uma vida toda desperdiçada. Mas logo fiquei perturbado, porque a despeito de parecer calma, havia algo estranho nela. Algo que não era... bem, que não era desse mundo. Quando ficava parada ela fazia movimentos circulares, algo estranho e, sinceramente, que me dava calafrios. E os olhos dela... garoto, aqueles olhos gelariam o coração mais corajoso. Pareciam duas luas pálidas flutuando em um céu escuro. Ao menos era essa a impressão que dava”.
Enquanto falava, o chefe percebeu que a cor parecia desaparecer do rosto de Júlio, mas atribuiu isso à história que estava contando, e não ao que o rapaz vira no porão daquele prédio.
- Naquele tempo havia também um senhor. – Continuou ele. – Um faxineiro que ficava no turno da madrugada. João, era seu nome. Já estava um tanto que velho, e eu logo calculei que em breve se aposentaria. Ele faxinava calmamente o corredor, e enquanto o fazia, cantarolava uma música da qual eu gostava muito, tanto da melodia, quanto da letra.
- “Like a bridge over troubled water” – Interrompeu Júlio, sentindo o calor desaparecer quase que inteiramente de seu corpo.
- Isso. Era essa a música, e ele tinha uma voz bela e reconfortante. Tanto para cantar quanto para conversar. Sempre nos encontrávamos nesse corredor, porque quando meu turno estava começando, o dele estava terminando, e papeávamos por um tempo, até cada um seguir seu caminho. Mas uma noite... bem, uma noite aquela moça conseguiu escapar do quarto. Até hoje não sabemos como, e feriu dois funcionários da manutenção antes de correr e se esconder no porão. No caminho ela quebrou o vidro que guardava a mangueira de incêndio, e pegou um caco enorme, guardando-o dentro de sua roupa.
“Eu era apenas um novato, com mais porte físico do que experiência, e querendo mostrar serviço não esperei por reforço e desci. No caminho, João, com uma expressão preocupada, me pediu para não ir até lá. Mas não o ouvi. Quando cheguei ao porão, a moça estava lá, de costas para mim, encostada à parede, fazendo aqueles movimentos estranhos que tanto me perturbavam. Quando a vi, presumi que a deteria facilmente, por causa da aparente fragilidade dela, mas com minha afobação não percebi que uma de suas mãos estava oculta. Assim que cheguei perto ela virou-se e me pegou, encostando aquele caco de vidro enorme no meu pescoço.
Fiquei petrificado na hora, e ao mesmo tempo impressionado com a força dela. Tentei me desvencilhar, mas quanto mais o fazia, mais o seu braço me segurava, e o vidro era apertado em meu pescoço. Ela então virou-se, levando-me junto para a parede onde estivera, dizendo que não havia saída para mim, e que eu desceria para sempre com ela. Mas o que nenhum de nós dois tínhamos visto, era o faxineiro que me seguira e ficara escondido na escada do porão. João.
Andando silenciosamente, ele se aproximara mais e mais, e quando eu achei que a garota ia enterrar o caco de vidro em meu pescoço, senti a mão de João roçava por trás em meu ombro enquanto agarrava o braço dela e puxava. A moça virou-se assustada, soltando meu pescoço, e imediatamente enterrou o caco no peito de João. O pobre velho deu alguns passos para trás, e desabou com o sangue jorrando da sua ferida. A garota então veio para cima de mim novamente, mas quando chegou perto, consegui me desvencilhar e dei um soco em seu rosto, que a jogou longe, e ela estatelou-se no chão, aparentemente desacordada.
Corri então para ajudar meu amigo, o homem que me salvara, mas parecia ser tarde demais. O vidro atingira o coração, e tudo o que consegui foi enxergar a expressão cheia de calma do velho, e ouvir suas últimas palavras. “Foi longe demais garoto. Longe demais”. Então ouvi um berro horrendo, que parecia vindo de algum lugar escuro do além, e quando olhei para trás vi algo que jamais esquecerei em toda a minha vida. A garota estava de pé, os dentes quebrados por causa do meu soco, mostrados ferozmente em uma carranca assustadora. Pensei que ela viria de novo pra cima de mim, mas para meu espanto, ela pegou o caco de vidro e passou com uma força descomunal no pescoço, cortando a própria garganta tão fundo que o local do corte pareceu ter formado uma enorme boca sustentando um sorriso hediondo.
Nunca mais entrei naquele porão. E passo sempre por aquela porta de acesso fazendo uma oração. Uma pela alma daquela moça, e outra pela alma do meu amigo, que se sacrificou para salvar minha vida. Por isso fiquei tão indignado quando me disse aquilo. Por isso fiquei tão revoltado quando falou sobre João”.
Dois homens. Dois homens com físicos avantajados e com suas próprias histórias de vida, divididas por um intervalo de três décadas. Dois homens de olhares petrificados e peles pálidas, assustados demais com o que haviam acabado de descobrir. Dois homens, que em pouco tempo sairiam daquele hospital para nunca mais voltarem.
Júlio trabalhou ali por mais alguns meses, até conseguir concluir a faculdade. Formou-se, fez residência e tornou-se médico. O chefe de segurança trabalhou por mais alguns meses, até se aposentar. Nenhum dos dois homens chegou a voltar àquele hospital. Nenhum daqueles dois homens voltou a ver João novamente. Mas seguiram suas vidas guardando a lembrança de um velho de olhar calmo e coração corajoso.
E hospital continuou ali. Com seus funcionários, com seus seguranças fazendo as rondas diurnas e noturnas. E alguns deles, que trabalhavam no turno da noite, poderiam dizer, se perguntados, que quando passavam pela porta dupla que dava acesso ao porão, pareciam ouvir um chamado. Algo quase forte demais para ser resistido.
E até quando resistiriam... bem, ninguém sabia dizer.
Alimento
O sol irradiava por todo o lugar, forte, agressivo, impiedoso, lançando por toda a extensão um calor causticante que fustigava aqueles que se atreviam a invadir aquela paisagem imunda e desolada, tomada de sujeira, entulho, restos de coisas descartadas por quem já as achava inúteis para suas próprias vidas, e até mesmo invólucros putrefatos que um dia haviam abrigado eles mesmos a vida de alguém.
A visão era aterradora para quem ainda não tivera a vista maculada por aquele território de restos, e o cheiro trazia uma mistura azeda e ocre que invadia as narinas dos incautos, dando-lhes repentinas e quase que incontroláveis ânsias de vômitos ao sentirem aquela miscelânea de odores imundos e putrefatos que se espalhavam pelo lugar sem dar um só momento de sossego.
À distância, monstros de metal surgiam e partiam em uma movimentação incessante, vomitando de suas carcaças de aço o espurco que dominava o lugar, lotando-o da imundície que se espalhava a perder de vista. No alto, nuvens negras de urubus revoavam em uma dança sórdida onde aqueles animais rodeavam e rodeavam pacientemente até enxergarem com seus olhares apurados a carcaça de algum bicho morto, que devorariam com uma avidez assombrosa.
Poeira, calor, mormaço, restos, entulho e podridão misturadas em uma miscelânea que formava um quadro doentio e deprimente, mas não pior do que a visão que se tinha quando as sombras que passeavam pelo lugar podiam ser vislumbradas naquela desolação. Sombras vacilantes, raquíticas e quase invisíveis quando enxergadas à distância.
Sombras que formavam elas mesmas outras sombras quando atingidas pelo sol causticante. Sombras de pessoas que tinham sido esquecidas, deixadas ao abandono, empurradas para a margem até caírem naquele precipício de lixo e decomposição. Indivíduos que vagavam lentamente, buscando encontrar serventia no que outros tinham descartado por não possuir para eles qualquer uso que lhes satisfizesse.
Velhos, adultos e crianças que caminhavam cautelosamente por montanhas de entulho, virando e revirando plástico, vidro, papel, e até mesmo cadáveres de animais para encontrarem algo que pudesse ser vendido por alguns parcos trocados, ou mesmo alguma coisa que ainda pudesse ser aproveitada como comida para forrar o abismo que os dias formavam em seus estômagos encolhidos e vazios.
Vistos à distância pareciam a repetição de uma mesma imagem, reproduzida em uma contínua sucessão de vultos raquíticos e desgastados. Vistos de perto, mostravam características distintas, que só podiam ser enxergadas à custa de um esforço de quem os vislumbrava, para que pudesse ser enxergado o que havia por baixo da sujeira acumulada sobre seus corpos.
Em meio há tantos, três caminhavam em conjunto, perto uns dos outros, idênticos e ao mesmo tempo distintos. Semelhantes na casca de sujeira que os cobria, mas diferentes no que havia por baixo dela. À frente, maior em altura mas não em peso ia a que parecia mais velha, magra, coberta de poeira, com uma roupa puída e gasta que mal era suficiente para cobrir seu corpo com ossos de sobra e carne de menos. Os olhos opacos passeavam de ponto a ponto, inquietos, perscrutadores, treinados para encontrar em meio ao que estava morto algo que pudesse manter a vida.
Um pouco atrás se vislumbrava uma versão daquela mesma mulher, mas em menor tamanho. Igualmente suja, igualmente abatida, magra, frágil, trôpega, caminhando atrás da primeira como uma sombra, repetindo seus movimentos, mas sem a consciência da primeira, jovem demais para entender o que fazia, nova demais para compreender o que se passava ao seu redor, caminhava atrás da maior como o fazem os filhos que confiam naturalmente nos pais.
Um pouco mais distante das duas um jovem, um pouco mais velho que a menina, vasculhava o entulho com a cautela que aprendera em sua ainda curta vivência. Olhava cuidadosamente por entre os objetos descartados, movendo-os lentamente, evitando pregos, vidros, farpas e até mesmo animais que ali se ocultavam para buscar, assim como eles, algo que lhes enchesse a barriga.
Seus olhos concentrados refletiam o olhar da mãe que ia adiante. Olhos treinados, de caçador, de rastreador de algo que lhes pudesse ser útil, fosse para ganhar dinheiro, fosse para conseguir comida. No rosto uma expressão que enxergada por baixo da sujeira acumulada denotava uma infância que caminhava para a perdição, suplantada por uma experiência que a duras penas fora obrigado a ter, a experiência de batalhar diariamente pela vida. Pulava a fase da inocência, assim como pulava de um monte para outro do lixo que se espalhava, para em ambos os casos chegar ao mesmo resultado, restos e vazio.
Nem ele, nem a irmã, em sua tenra idade e plena inocência sabiam o que eram os luxos em que muitos dos que jogavam fora aquela fonte de sobrevivência viviam. Em suas mentes focadas apenas no chegar ao dia seguinte não se passava nem de forma remota uma ideia, mesmo que distante, de que no mundo haviam pessoas com tanto a acumular que podiam dar-se ao luxo de livrar-se do que possuíam.
A menina distraía-se com o que encontrava, exercendo o restante da oportunidade que teria de fazer algo que se aproximasse de uma brincadeira, ao passo que o garoto já nem a isso se permitia mais, e seguia sua caça diária naquela selva de detritos, somando-se às demais sombras que caminhavam naquele lixão, esquecidos, jogados à margem, deixados à própria sorte para que vivessem como animais.
Acordavam com a primeira luz da manhã, com as barrigas gritando por auxílio, com os corpos pedindo ansiosamente por algo que lhes desse alguma força, e de pronto se dirigiam ao lixão, à espera dos monstros de metal que cuspiriam fora o que outros em melhor situação tinham dispensado. Uma vez lá, passavam ali o dia, virando e revirando coisas, fosse sob um sol fustigante, fosse sob chuva ou qualquer outra intempérie. Não havia pausa quando o ato de parar podia importar na própria morte por inanição.
Naquele dia não era diferente. O menino levantara, acordado de um sono escuro e sem sonhos pela mão raquítica da mãe, que o sacudia em aviso de que a busca pela sobrevivência teria início uma vez mais. O corpo ainda cansado e fraco reclamava, pedindo por mais descanso. Mas pedia também por força e comida, e ficar deitado não lhe traria nada daquilo. Descansar não era uma opção. Não quando a sobrevivência se mostrava como uma obrigação.
E agora estavam ali, repetindo a experiência diária de lutar para sobreviver. As horas se passaram, o sol ficou à pino, queimando suas peles sujas e cabeças repletas de cabelos desgrenhados, e depois tomou seu rumo em direção à caminhada final. Lentamente a tarde chegou ao fim, assim como chegavam ao fim suas forças. Tinham parado para comer apenas algumas sobras que haviam encontrado dentro de alguns sacos despejados. Uma comida que sequer sabiam dizer se estava ou não podre, já que tinham se acostumado a comer o que conseguiam encontrar, e seu paladares já haviam se adequado àquele tipo de alimento.
Mas o pouco que comeram não tinha sido o suficiente. Nunca era, e agora suas barrigas continuavam a se manifestar, deixando as crianças tristes e a mãe irritada. De saco em mãos ela anunciou que já haviam recolhido o suficiente para tentar obter alguns trocados que poderiam ser convertidos em algo para lhes manter vivos por mais um dia. A menina repetiu o que fizera durante todo o dia, virou-se e seguiu a mãe, como uma pequena sombra da mulher que ia à sua frente.
O garoto, resignado com mais um fim de dia, virou-se para fazer o mesmo, mas assim que o fez seus olhos foram imediatamente aprisionados por algo. Adiante, em meio a todo aquele lixo, a toda aquela imundície, ele pôde ver algo que destoava de tudo o que se alocava ao seu redor. Atraído pelo objeto destoante, o menino caminhou até ele, a princípio desconfiado, depois curioso, até que chegou ao local e lentamente ergueu a mão em direção ao que via, como se desconfiasse que assim que o tocasse, o objeto sumiria, como uma miragem, como um sonho, como a ilusão do que nunca estivera ali.
Mas o menino o tocou, com as pontas dos dedos sentiu a textura do que encontrara, fascinado com sua aparência, extasiado com o que via. Passou as mãos sujas e encarquilhadas por sua superfície, como se ainda tentasse verificar que o que enxergava era verdadeiro, até que envolveu o objeto e o ergueu, sentindo o peso do mesmo.
Já tinha visto livros antes, revistas, restos rasgados que tinham sido jogados ali, mas não sabia ainda o segredo das letras, e desconfiava que jamais saberia, e por isso nunca se interessara por ir além do que os olhos viam. Mas aquele era diferente. Sua capa, seu formato. Era mais bonito do que todos os que já vira, e parecia estar completo. Amassado, sim, sujo, também, mas completo. Não via nele, ao menos a princípio, nenhuma página rasgada, e aquilo o encantou ainda mais.
Em sua curta vida aprendera que a comida era mais valiosa do que objetos que atraíssem o seu desejo, e por isso sequer restos de brinquedos recolhia para levar para o pequeno barraco onde tentava descansar dos dias extenuantes passados naquelas cordilheiras de lixo, mas naquele dia ele abriu uma exceção. Pegou o livro e o levou, carregando-o em uma das mãos enquanto que com a outra levava o saco de entulho que tentaria vender.
Alcançou a mãe, que com seus olhos treinados viu o objeto em sua mão, repreendendo-o pela aparente inutilidade do mesmo. Palavras não alimentavam. Não ali, onde o corpo clamava por comida, e a mente obedecia unicamente aos anseios do corpo. Mas era mãe, e como tal amava aqueles que pusera no mundo. O garoto tinha o direito de ter algo, mesmo que fosse para se distrair momentaneamente. Talvez aquilo o ajudasse a enganar o estômago. A mente podia iludir o corpo quando este gritava alto demais em busca de algo, e por isso não insistiu para que o filho se livrasse do objeto, por mais inútil que parecesse a ela.
O fim do dia chegou, como o fora antes, e como talvez o seria em um eventual amanhã, se o sol nascesse para eles. Naquela noite o garoto dormiu uma vez mais com suas três companheiras. A mãe, a irmã e a fome, essa última que lhe era a mais próxima de todas. Mas ali, no silêncio da escuridão do simples barraco, ele sentiu uma força nova, uma que emanava do objeto que encontrara no lixo. Dormiu abraçado a ele, sentindo um conforto ao qual não estava acostumado, e diferente do que acontecia em seus curtos e esporádicos descansos, ele sonhou.
O dia seguinte veio, e o menino saiu uma vez mais em sua caçada, deixando escondido no barraco o objeto encontrado, que permaneceu em sua mente durante todo o dia. E assim ocorreu dali em diante. De dia, a busca por alimento, à noite, a busca pelo entendimento do segredo contido naquelas páginas de letras que ele ainda não conhecia, mas sentia a vontade crescente de a elas ser apresentado. Meses se passaram, e até mesmo anos, até que aos poucos as coisas melhoraram.
Um dia lhe surgiu a oportunidade de conhecer as letras. Uma escola, pequena simples, de paredes rachadas e telhado esburacado, mas ainda assim uma escola, e o melhor de tudo, com uma pessoa que sabia os segredos que ele queria desvendar. A fome do garoto cresceu, mas não a do corpo, e sim a da mente, e esforçava-se noite após noite para manter-se acordado na sala de terra batida onde a professora lhe ensinava pacientemente o significado daqueles pequenos símbolos que até pouco tempo antes lhe tinham sido estranhos.
E todas as noites, assim que saía de lá, à luz de um poste na ruela onde ficava seu barraco, o menino pegava o livro que um dia encontrara, e extasiado o lia, emocionado por finalmente entender o que havia ali, e o que ali havia era muito. Noite após noite ele aprendeu, e o que se espalhava naquelas páginas era alimento não apenas para sua mente, mas também para sua alma, e sempre que terminava sua leitura ele olhava para o céu, em busca de algo, de um novo segredo que lhe havia sido mostrado.
Os anos passaram, e a fome de conhecimento do menino cresceu, assim como seu corpo. Tornou-se um homem, trabalhou, estudou, e da mesma forma como caçava o alimento do corpo nas montanhas de entulho, ele passou a caçar o saber pelos caminhos do mundo. Galgou degraus, estudou, enriqueceu o conhecimento, fez cursos, os concluiu, encontrou outros livros e os devorou a todos com uma avidez pouco vista antes. Mas todas as noites reservava um tempo para ler as palavras do livro que um dia encontrara no lixo, e que nunca deixara de lhe acompanhar.
O garoto sujo e maltrapilho, a sombra que enfrentava a fome e uma paisagem desolada de lixo e entulho enfrentou a vida, e se tornou um homem simples, mas cheio de saber. Terminou os estudos, fez faculdade, formou-se, dedicou-se, ganhou bolsas e se tornou um profissional. Com sua dedicação virou médico, ajudou a mãe e a irmã, que seguindo seu exemplo também se dedicara aos estudos. Ganhou dinheiro, passou a viver bem, mas sem nunca esquecer de sua origem humilde, e sem nunca esquecer das coisas que lera naquele livro que o acompanhava desde o dia em que fora encontrado.
Um dia, em seu consultório bem cuidado ele recebeu uma paciente, simples, sem condição de pagá-lo, algo que ele reservava alguns dias da semana para fazer tentando ajudar os mais necessitados, os que assim como ele tinham sido esquecidos pelo restante da sociedade. A mulher sentou-se à sua frente, fascinada com a beleza do lugar, olhando a decoração, os móveis bonitos e bem colocados, a forma como tudo parecia se encaixar ali, exceto por um detalhe.
Na mesa de granito do médico, um objeto velho e gasto parecia ocupar um lugar central. A mulher o fitou, curiosa com aquilo, e com a simplicidade de quem busca saber das coisas, perguntou que livro velho e gasto era aquele, e porque o doutor o deixava em um lugar de tanto destaque, já que destoava de toda a beleza que ali havia.
- Esse livro. – respondeu ele. – Possui uma beleza única, que não está fora, mas sim dentro, como a de todos nós. Esse livro me mostrou não apenas o segredo das palavras, mas também o da vida. Me foi dado como um presente, em um lugar onde não havia esperança de um amanhã, mas me mostrou que sempre pode haver esperança, desde que sigamos o que está ali dentro. Quando meu corpo gritava por alimento, esse livro alimentou minha alma, e essa foi a dádiva maior que recebi.
- E que livro é esse, doutor?
- Esse livro, minha amiga, é a Bíblia, e levo e o levarei sempre comigo, na mão, mas principalmente dentro do coração, porque a fome do espírito é infinitamente maior que a do corpo, e ela só pode ser saciada com o que está escrito ali dentro. Esse livro me mostrou vida onde só havia restos, e esperança onde só havia desolação, e mesmo que um dia ele se desfaça materialmente, eu o levarei comigo na alma. Esse livro e o que há nele, senhora, é o que há de mais belo nessa sala, porque não existe nada mais bonito do que aquilo que vem de DEUS, não importa onde esteja, se em um lixão ou em uma ilha paradisíaca.
Esse sim, foi o alimento que me salvou.
Novo de novo
O dia fora cheio, repleto do trabalho extenuante que sugara cada uma de suas forças até não restar pouco mais do que o suficiente para que ele pudesse arrastar-se por um longo caminho até sua casa, onde teria o sonhado e merecido descanso.
O trajeto era longo, demorado, exaustivo, com um trânsito caótico e conturbado que não parecia sequer sair do lugar. Um fim de dia perfeito para potencializar o cansaço que ele já sentia, e que aumentava ainda mais a cada momento em que ele lembrava que as tarefas não tinham cessado com o fim do expediente. Havia mais, muito mais a ser feito em casa. Ele saíra do trabalho, mas o trabalho não saíra dele.
Chegou em casa com o cansaço gritando em cada fibra dos seus músculos, que imploravam por um banho quente seguido de uma cama macia, onde desejava dormir por meses, talvez até anos para retirar de suas costas o peso das preocupações e responsabilidades. Contas para pagar, despesas, produtividade, sobrevivência da empresa, obrigações, obrigações... obrigações.
Parecia que esses pensamentos tinham passado a ocupar na integralidade o espaço em sua mente, não sobrando tempo para mais nada. Ele sequer lembrava a última vez que em tivera a cabeça livre de preocupações para ser permeada por outra coisa que não fossem aquelas cobranças do mundo. Não lembrava nem mesmo de um tempo onde aquilo não tinha existido em sua vida.
Entrou em casa sentindo um mundo inteiro amarrado em cada uma das pernas, e outro ainda pesando sobre seus ombros doloridos. Olhou ao redor, para a casa com decoração luxuosa que mantinha à guisa de muito esforço. Daquele esforço que lhe sugava diariamente e consumia cada uma das já parcas reservas de energia que a muito custo ele conseguia manter.
O preço de uma vida relativamente confortável, ao menos visualmente, porque conforto era uma palavra que ele não conhecia há bastante tempo. Um estranho para ele, tal qual o era a pessoa que fora um dia, um alguém que ainda conseguia dar um significado a mais aos dias que não fosse ganhar dinheiro para manter o status, e que aproveitava o que cada um deles trazia, senão ao máximo, ao menos de forma suficiente. Não podia sequer sentir saudade daquela vida de antes, já que quase não mantinha lembrança dela.
Jogou a maleta no sofá enorme que combinava com a decoração da sala, mas que nem mesmo de longe tinha o conforto do estofado simples da velha casa em que vivera em um tempo que parecia ter se passado em outra vida. Jogou-se na poltrona, praticamente desabando sobre ela com o peso do corpo e das preocupações que carregava acorrentadas a ele todos os dias, e apoiou a cabeça em uma das mãos, como que para segurar a carga que havia ali dentro. Queria um minuto, um momento de paz antes de continuar o trabalho que sabia ainda ter pela frente.
Apenas um tempo em que pudesse desopilar a mente daquelas obrigações, aproveitando o silêncio que ali se abatia naquele momento. Mas tão logo conseguiu distrair-se um pouco a ponto de retirar da cabeça uma parte das preocupações, uma algazarra chegou aos seus ouvidos, crescente, aumentando segundo a segundo até tornar-se quase que insuportável.
Confuso e ao mesmo tempo irritado com aquela interrupção brusca e impertinente ele levantou-se da poltrona, sentindo o corpo reclamar do esforço empreendido com o gesto, o que serviu apenas de estímulo para que sua raiva crescesse, e caminhou até a porta seguindo o som a fim de encontrar a fonte de toda aquela algazarra que surgira repentinamente para arrancá-lo de seu descanso de uma forma tão brusca.
Seguiu o ruído insistente, que foi aumentando, crescendo, se multiplicando, dividindo-se em várias vertentes que ele identificou como vozes. Uma, duas, três, até não mais conseguir distinguir quantas mais. Vozes que falavam alto, que gritavam, que riam e se mesclavam em uma miscelânea que tornava praticamente impossível a compreensão do que era falado.
O som o atraiu, levando-o pela sala em crescente irritação, passando por corredores até chegar à cozinha e à porta que dava para o quintal espaçoso da casa confortável que comprara com tanto esforço, e lá ele constatou o que já desconfiava ser o ruído insistente que lhe tolhera o merecido momento de sossego que se dera. Garotos, meninos, crianças.
No gramado do quintal espaçoso seu filho corria com os amigos atrás de uma bola em uma carreira desenfreada para um lado e para outro, que parecia não ter como foco alcançar a esfera que rolava ao sabor da vontade deles, mas tão somente correr até que o ar faltasse e a exaustão os alcançasse. Naquela louca movimentação eles riam, gritavam, se provocavam, pilheravam um com o outro como se em suas vidas não houvesse mais nada a fazer do que aquilo, e como se aquelas ações fossem tão necessárias quanto o próprio ar que respiravam.
Aquilo o irritou. Não deveria o garoto estar estudando? Fazendo as tarefas para tirar boas notas, crescer em inteligência para entrar em uma faculdade e se tornar um adulto bem sucedido como ele? As palavras de repreensão chegaram com fúria quase incontrolável à sua boca, mas se perderam tão logo a alcançaram, e ele não disse nada. Algo o impedia.
Tentou de novo. Já tinha um discurso pronto para proferir, dizendo ao filho que aquilo não o levaria a nada, e que se continuasse daquela forma não seria nada na vida. Novo bloqueio. Algo dentro dele dizia para não falar nada, pelo simples fato de que ele não tinha razão alguma no que queria dizer. Olhou para o relógio, como que para justificar o discurso de repreensão, apenas para ver que a tarde já chegava ao fim, e que pelo que conhecia do filho e de sua disciplina, as tarefas já teriam sido feitas e o estudo do dia já teria sido tomado.
Os gritos chegaram aos seus ouvidos com mais intensidade, e ele abriu novamente a boca para proferir uma nova reclamação, mas aquela mesma voz que surgira em seu interior disse novamente que permanecesse calado. Era sexta-feira, o filho era apenas uma criança, e tinha todo o direito de brincar, de aproveitar, de divertir-se. Aquele pensamento o fez encher-se uma nova onda de raiva. “E eu não?”. Perguntou a si mesmo.
“Também não tenho o direito de me divertir? De relaxar? De descansar ou me entreter? Ou devo apenas trabalhar, trabalhar e trabalhar, como se o nascer do dia seguinte dependesse apenas disso?”
“E quem disse que você não pode?”, ouviu a voz ecoar no silêncio de seus pensamentos, respondendo à própria pergunta que fizera. “Quem criou essa lei de que o descanso e a diversão lhe são vedados? Quem, senão você mesmo? E se você criou essa regra, tem também poder para derruba-la, para livrar-se dela e das amarras que lançou em sua própria vida.”
“É fácil falar, é fácil dizer que posso parar e relaxar em uma rede deixando tudo de lado. Mas e quem vai pagar as contas? Quem vai manter o estilo de vida que temos? Minha esposa não consegue segurar tudo com o que ganha, e se a empresa deixar de produzir, o dinheiro vai pelo ralo, junto com tudo o que conquistei. Não, não posso parar.”
“Então se não pode parar de trabalhar, pare de reclamar. Se não pode dar um descanso a si mesmo, deixe ao menos que os outros tenham o deles, como o seu filho, que apenas brinca e se diverte, como toda pessoa, em qualquer idade, tem o direito de fazer. Como você mesmo fez um dia, não lembra? Pode culpa-lo por isso? Deve culpa-lo por isso? Por fazer o que você mesmo se recusar a realizar?”
O pensamento o fez lembrar da época em que fora ele mesmo um menino correndo de pés descalços, gritando de alegria com os amigos de sua infância, e aquilo trouxe alívio à raiva que sentira, que veio acompanhado de um breve e leve sorriso à expressão cansada, um sorriso que denotava uma recordação que ele achava que sequer possuía mais. Se enterrara tanto em trabalho e preocupações que havia esquecido como a vida podia ser agradável, deixando de lado até mesmo as lembranças da época em que seus dias tinham sido daquele jeito.
A nítida consciência de que estava errado em suas queixas lhe trouxe um sentimento de arrependimento, em parte por ter pensado em repreender o filho, mas em sua maioria pelo estilo de vida que vinha adotando, e pelos grilhões que lançara sobre a própria liberdade.
Olhou então para a roupa que usava. Para a gravata que se estendia por seu peito, dando-lhe a sensação de uma coleira a prender-lhe o pescoço com uma pressão sufocante. Fitou o relógio de pulso, vistoso, chamativo, caro, mas que a seus olhos pareceu uma algema no pulso, tolhendo-lhe a liberdade e o tornando um escravo do tempo, que sempre parecia estar contra ele.
Um objeto que deixara de ser uma forma de informar-lhe sobre o tempo, para tornar-se um arauto que anunciava continuamente que aquele era um recurso que ele já não possuía.
Olhou para as calças de tecido fino, as que sempre usava no trabalho, caras e bonitas, mas que também lhe davam a sensação de estar preso, o sentimento de ser aquilo uma farda, semelhante à usada por quem cumpria pena em uma prisão, e por um momento tentou lembrar-se de quando tinha feito uso de algo que o fizesse sentir-se confortável.
E por fim lançou os olhos sobre os sapatos de couro lustrado e vistoso, que brilhavam à luz daquele fim de tarde. Calçados desejados por qualquer um que os visse de fora, mas que pareciam impedi-lo de ir para onde desejava ir. Para o merecido descanso, para a tão desejada diversão, para o momento de lazer pelos quais seu corpo e sua alma imploravam.
Pensou em como seria bom livrar-se deles e correr livre, como aqueles meninos faziam diante de seus olhos cansados. E por que não fazê-lo? Era dono da chave da própria prisão, e podia abri-la com a mesma facilidade com a qual a tinha fechado. Tentou uma vez mais contra argumentar aquele pensamento, trazendo de volta a justificativa da necessidade de provisão, mas soube que estava errado antes mesmo de começar. “Não é o garoto que merece uma repreensão”, a voz soou em sua mente, “é você mesmo”.
“Não é seu filho que está errado em aproveitar seus momentos de descanso e diversão, mas sim você, que foge deles para ter uma vida com um luxo que existe para os olhos alheios, e não para que você mesmo aproveite. Quantas vezes mergulhou na piscina que tem à frente de casa? Quantas vezes jogou-se e rolou por esse mesmo gramado para onde olha agora? Quantas vezes passeou com os vidros abertos no carro com tantos apetrechos que você comprou, sentindo no rosto o vento da liberdade? Para que tanto luxo, se no fim da tudo não aproveitou nada desde o início?”
As palavras eram verdadeiras demais para serem ignoradas. O cansaço era verdadeiro demais para ser deixado de lado. A verdade era quase palpável, de tão presente, de tão intensa, de tão carregada de significado. Olhou para os meninos correndo no gramado, e sentiu o menino dentro de si implorando para juntar-se a eles.
Fitou a gravata que lhe parecia uma coleira, e de um puxão desatou o nó retirando-a do pescoço. Tirou o relógio pesado que se assemelhava a uma algema, sentindo o pulso rodear-se de leveza ao fazê-lo, e o próprio tempo parando momentaneamente com o gesto. Chutou para longe os sapatos de couro e sentiu o vento batendo nos pés cansados. Dobrou as calças até as canelas, tendo plena consciência do quão estranha iria parecer sua imagem perante os demais, mas lixou-se para aquilo.
Quando deu por si estava correndo em meio aos garotos, esquecendo o cansaço dos ossos e dos músculos, que parecia ter sido dispensado da mesma forma que o tinham sido as peças que o aprisionavam. Correu e brincou, como se fosse uma criança. Um menino, em meio a tantos outros. O filho e os amigos estranharam aquela estranha intromissão de alguém que sempre parecia ocupado demais para dar sequer um “oi”, e que agora corria com eles como se fossem colegas desde sempre, mas longe de não gostarem daquilo, divertiram-se ainda mais com a presença daquele adulto que novamente se fazia criança.
No fim daquele dia seus músculos ainda doíam, seus ossos ainda estavam cansados, e a noção do trabalho que tinha para fazer permanecia, mas algo estava diferente. Algo estava descansado e cheio de leveza e de uma paz que há muito não sentia... o seu espírito. Naquela noite ele sorriu, pois lembrou-se novamente de como era sorrir, se divertir, e saber que havia algo mais no mundo do que obrigações.
Naquela noite ele dormiu em paz, lembrando-se de como a vida era curta demais para ser gasta apenas com preocupações, e assim dormiu despreocupado, porque para tudo havia uma hora, e porque tudo uma hora acabava, inclusive o momento de preocupar-se.
Naquela noite ele dormiu em paz, porque lembrara-se de algo que tinha esquecido há bastante tempo. Que feliz é aquele que sabe como as coisas são finitas, porque assim, poderá vivê-las infinitamente.
Portas
Todos chamavam seu nome. Surgindo como o bramir de uma onda, o troar de um trovão ecoando no espaço e reverberando até se perder no vazio, o estouro de um vulcão limpando a garganta para cantar a derradeira e mais alta nota de seu concerto, as vozes surgiam do nada e se espalhavam no ar, chegando aos seus ouvidos cansados e penetrando em sua mente exausta.
Todos chamavam seu nome. O barulho das vozes ultrapassava a barreira das paredes, invadindo o cômodo porta adentro e ecoando ao seu redor, até desaparecer repentinamente, para logo em seguida ser substituído por uma repetição do anterior, ainda mais alto e ansioso, como ondas que se sucediam em uma maré enchente. Todos chamavam seu nome. Todos o queriam. Todos esperavam por ele.
Lá fora, uma multidão ensandecida gritava, chamava, convocava sua presença ao palco para ver o ícone que a mídia vendia, o herói que as revistas estampavam na capa, a voz que conquistava seus ouvidos, fazendo-os delirar e sonhar com mundos que sequer imaginavam. Mas ele não sonhava. Não mais. Todas aquelas vozes queriam a sua voz, queriam o sonho que ele representava. Mas onde estava o sonho que ele buscava?
Aquela era a pergunta de um milhão de dólares. A que surgia em sua mente com a mesma constância com a qual o ar passava por suas narinas, repetida, renovada, refeita, recriada, mas jamais respondida. Onde estava o sonho que ele buscava? Todos chamavam seu nome, ele sabia, ele ouvia, ele detestava. Percebia que já passara da hora de subir ao palco, de mostrar-se, de deixar que a plateia se deleitasse com sua presença, enquanto ele estaria ali, ao mesmo tempo em que não estaria ali. Uma presença física, apenas, enquanto ainda havia algo físico a ser visto.
A tempestade de vozes soava lá fora. A tempestade de sentimentos explodia em seu interior. Sentado diante do espelho de seu camarim ele fitava a si mesmo sem mais reconhecer quem via. “Quem sou eu? Quem é você? Quem somos nós? Onde está o homem que um dia eu fui? Onde está o homem que um dia eu quis ser? Onde estou agora?”. Interrogações incômodas e insistentes que sucediam-se e se espalhavam tais quais as vozes que lá fora o chamavam.
Os olhos dele fitavam os olhos do seu reflexo. Mas era mesmo seu reflexo? Do outro lado da parede de vidro estava alguém que habitava em um mundo paralelo, que era idêntico a ele, e ao mesmo tempo inteiramente diferente. Os mesmos olhos de um azul cinzento e penetrante. O mesmo cabelo comprido caindo despretensiosamente até seus ombros magros. O mesmo rosto atraente, jovem, marcado apenas pela sombra de uma barba por fazer. A mesma boca de onde saía a voz pela qual todos ali clamavam. Idêntico, e ao mesmo tempo tão diferente. Um estranho familiar, um desconhecido que ele conhecia com a palma da mão. Ou ao menos conhecera... um dia.
No reflexo ele buscou o garoto que sonhava. O rapaz que imaginava. Os olhos que um dia haviam buscado algo mais. Uma visão do que havia além. Do que estava por trás do que todos viam. A essência, o interior, o âmago. Mas tudo aquilo agora parecia inalcançável. Intocável, como o é a linha do horizonte para quem se atreve a busca-la em uma jornada infinita, interminável, impossível.
Onde estavam os sonhos? Onde estava o sonho? Onde estava o garoto, o rapaz, o homem que ele imaginara que seria? Escondidos atrás daquela imagem construída para vender discos? A imagem de alguém que ele sequer parecia conhecer? Camisa justa, calça de couro apertada, botas, e uma pose despretensiosamente desafiadora, como se a cada passo que desse o mundo estaria a seus pés.
Tudo falso. Tudo cuidadosamente elaborado para que o vil metal enchesse os cofres, tilintando nas mãos sorridentes de quem enriquecia com os sonhos dos outros. Naquele mundo ele se tornara o rei, mas ao mesmo tempo era prisioneiro no calabouço que criara para si mesmo. Prisioneiro de si, prisioneiro da fama, do dinheiro, do interesse de todos , menos o dele.
Mas não fora com isso que sonhara? Ser conhecido? Ser grande? Ser invejado, desejado, esperado... amado? Um dia, talvez, no passado, em algum momento já perdido na estrada errada que havia trilhado. Mas aquele não fora seu grande sonho. Nunca fora, na realidade. Nos dias em que se arriscava em ir mais fundo em sua consciência, em enveredar por locais há muito obscurecidos pela sombra da frustração, ele conseguia enxergar o que quisera um dia.
Ter voz, mas não a voz que cantava as músicas sem conteúdo que outros faziam para que os bolsos ficassem cheios daquilo que era vazio. Ter uma mensagem, mas não uma que fosse cantada em refrãos que no fim das contas nada tinham a dizer. Queria falar, queria mostrar... queria escrever. Esse sempre fora seu sonho. Ser conhecido em seu anonimato. Contar as histórias que corriam livremente na mente que um dia fora livre. Tocar os corações com palavras que ecoariam na imaginação de quem lesse o que tinha a dizer.
Mas deixara-se cair na teia de vaidades que o mundo armara para ele. Sucumbira aos desejos imediatos que lhe tinham sido apresentados, e assim deixou de lado um sonho maior para viver pequenas satisfações de curto prazo, uma ilusão que em pouco tempo desabara sobre sua cabeça, tão rapidamente quanto um castelo de cartas em meio a um vendaval.
E agora estava ali, esquecido de quem fora, tentando lembrar o que era, esforçando-se para identificar o que tinha se tornado. Todos chamavam seu nome, e ao mesmo tempo ninguém o chamava. Não o seu eu real, quem de fato era, quem realmente almejava ser, e por isso passara a se esconder, daquela realidade de mentira, daquela imagem falsa, e foi exatamente quando precisou esconder-se que outras portas surgiram para auxiliá-lo naquele trabalho. Portas que levavam à escuridão
Uma delas se abria quando a tampa da garrafa era retirada. A outra quando o pó invadia seu nariz. A terceira quando a agulha penetrava em suas veias, e assim ele passou a fugir, diariamente. Fugir do que deixara de lado. Fugir de quem deixara de ser. Fugir de quem tinha se tornado. Fugir dos sonhos, e fugir da realidade. Sua vida era uma fuga constante, uma corrida acelerada em que distanciava-se da vida, e aproximava-se da morte.
Mas agora estava cansado. Exausto daquela correria. Daquele jogo de esconde esconde onde sempre perdia. Do medo de ver quem de fato era, e quem ainda podia ser. Lá fora, todos chamavam o nome de seu falso eu. Ali dentro, ele se chamava de volta ao mundo, para acordar daquele transe e encontrar a si mesmo ao invés de fugir novamente.
Olhou para as garrafas de bebida se espalhando pela mesa à sua frente. Para as carreiras de pó formadas no pequeno vidro que estava ao seu lado. Para as trouxas amarradas contendo as outras substâncias que abriam as portas de sua fuga. Portas cada vez menos duradouras. O corpo de seu falso eu clamava por elas, mas a alma de seu verdadeiro eu as repudiava.
A quem ouviria? Ao primeiro, para consumir as drogas até que elas o consumissem de vez? Até que um dia encontrassem seu corpo boiando em uma banheira, em uma piscina, ou deitado em um quarto de hotel imerso em uma poça de vômito? Morto para o mundo, morto para si, morto para tudo o que poderia ter sido? Ou ouvira o segundo, para matar apenas a imagem falsa que criara dele mesmo e trazer de volta à vida quem ele sempre fora na realidade? Parecia tão fácil... mas era tão difícil. Qual deles iria seguir?
Batidas soaram fortemente na porta. Uma voz, em meio a todas aquelas outras, convocando-o a ir. A banda estava à sua espera. Os fãs estavam à sua espera. O sucesso o aguardava. Mas havia mais alguém que o esperava ansiosamente. Alguém que ele esquecera, que ele escondera. Alguém de quem fugira. Olhou para o espelho, e por um segundo conseguiu enxergar um rapaz cheio de sonhos, cheio de palavras, cheio de histórias para contar.
Parecia tão difícil... mas viu que era tão fácil. As batidas soaram. As vozes chamavam seu nome. A bebida o convocava, as drogas pediam sua presença. Mas o rapaz no espelho, aquele que apareceu por apenas um segundo. Era a ele quem ouviria. Era àquele convite que atenderia. Era para lá que iria caminhar. As batidas voltaram a soar. Os ecos das vozes aumentaram, mas havia uma maior do que todas elas, e daquela vez ele a ouviria.
Abriu a porta, sorriu para os que o encararam atônitos, e dali saiu. Passou por aquela porta, deixando para trás todas as outras pelas quais tantas vezes passara fugindo de quem era e de quem queria ser. Todos chamavam seu nome, mas ele chamava a si mesmo, e aquele chamado não seria ignorado novamente. Não, ele não seria encontrado morto boiando numa banheira, numa piscina ou afogado no próprio vômito. Ele seria encontrado vivo, nas palavras que tinha a dizer, em cada história que tinha a contar.
Ali sua voz ecoaria, mais alto do que nas mais potentes caixas de som. Ali sua mensagem iria reverberar, não nos ouvidos, mas nas mentes e nos corações. Caminhou pelo corredor vazio do estádio, calma e lentamente, não mais o andar lânguido do personagem que criara para si mesmo, mas o andar seguro de quem voltava a saber quem era, e a saber o que queria. Não seria fácil, ele sabia, mas as maiores jornadas, aquelas em que a chegada valia a pena e o olhar para o caminho trilhado mostrava o quão gratificante havia sido, aquelas nunca eram fáceis... mas eram sempre as melhores.
Aquela era sua passagem para o barco de cristal. Nele iria zarpar para viver os sonhos que sempre sonhara, deixando para trás as ilusões que o haviam prendido. Aquele era ele, e ali começava sua história. Um autor que escrevia naqueles passos a primeira linha de muitas páginas. E naquele final, ele encontrou um começo.
Não era o fim, mas o início.
Tela em branco
A barra do mouse destacava-se no espaço em branco, piscando insistentemente como um anúncio publicitário, sumindo e reaparecendo diante de seus olhos em uma sucessão ininterrupta de vai e vem, lembrando-o constantemente de que não havia nada, simplesmente nada lá, além do vazio que ocupava a tela e ao mesmo tempo a sua mente. Lembrando-o de que não havia nada a ser escrito, e a única vida que existia ali era a daquele sinal perturbador.
Sentado em sua cadeira ele se via desafiado por aquele que tantas vezes dançara freneticamente diante de seus olhos enquanto as palavras voavam de sua mente como rochas lançadas de um vulcão em erupção, igualmente incandescentes, igualmente avassaladoras, fazendo com que a pequena barra que piscava na tela sequer tivesse tempo de aparecer, tamanha era a rapidez com que as ideias fluíam. Mas agora não havia ideias, apenas eles, o cursor que ia e vinha, e a tela em branco.
O escritor levantou-se de sua poltrona, passando a mão pela barba por fazer e esticando a pele do rosto com a força que fazia, tentando com aquele gesto puxar algo do interior de sua mente que não fosse a frustração por não conseguir pensar em nada que fosse digno de ser lido. “Porcaria de bloqueio”, pensou consigo, imaginando uma parede diante de seus olhos, larga, pesada e inescrutável.
Caminhou pela casa, observando quadros, fotos, paredes vazias. Passou pelos livros na estante da sala e um por um leu o títulos de autores que um dia talvez tivessem passado por aquele mesmo problema, mas que de alguma forma tinham conseguido superá-lo. “Qual a receita?” Levantou a questão. “O que tinham feito para conseguir sair daquele labirinto de ideias vazias ou sem graça?”.
Fazia aquelas perguntas não apenas a si mesmo, mas de alguma forma àqueles livros, como se por algum fenômeno inexplicável eles pudessem sussurrar em seus ouvidos a resposta pela qual tanto ansiava, retirando-o daquele espaço vazio e em branco, onde tudo o que ele podia ver era uma insistente barra sumindo e reaparecendo, enquanto nada aparecia em sua mente que valesse à pena ser contado.
Foi à cozinha, encheu uma caneca de café. Bebeu. Voltou a enchê-la. Bebeu de novo até que não sobrasse nenhuma gota daquele líquido escuro, na inconsciente tentativa de encher algo dentro de si. Talvez assim alguma ideia entrasse em seu corpo com a bebida, ou ao menos a cafeína poderia acionar alguma parte desacordada nos recônditos de sua mente, fazendo com que aquela fagulha fosse acesa. A pequena fagulha que já era o bastante para acender a fogueira da criatividade que tantas vezes o levara a escrever até que a vista ficasse turva e os dedos cheios de câimbra.
Encheu uma vez mais a caneca, e agora sorvendo lentamente o café dirigiu-se novamente ao seu escritório, à sua base, à sua mesa, à caverna onde sentava para libertar suas ideias, carregadas de fantasias, lugares novos, personagens cheios de aventuras a serem contadas. Mas naquela tarde havia apenas dois, a barra piscando, e a tela em branco.
“Onde o rapaz parou?” foi a pergunta que se fez ao sentar pesadamente na poltrona que grunhiu sob seu peso. “O que ele deve enfrentar agora? Para onde deve ir? O que pode acontecer a ele?” Falava como se não fosse o escritor que traçaria o destino do personagem, mas sim como o leitor que devora ansiosamente as páginas à espera de descobrir na folha seguinte como acabará a história que tanto prende sua atenção.
Apoiou o queixo nas mãos cruzadas enquanto fixava atentamente a tela, tentando enxergar ali o cenário que queria imaginar para seu personagem. Nada. Muitas perguntas, nenhuma resposta. Muitos caminhos, poucas decisões. E tudo agora parecia um emaranhado de possibilidades, onde sempre que desatava um nó, surgia outro, que levava a outro e mais outro, mantendo-o naquela frustrante e irritante escassez de ideias.
Cansado daquilo ele escorou-se na poltrona e inclinou-se para trás, ouvindo o rangido da cadeira enquanto fazia isso. Cruzou os dedos na barriga e fechou os olhos, imaginando o quão bom seria se começasse a sonhar com o restante da história que começara a escrever, mas que por mais que tentasse, não conseguia terminar. E ali, no silêncio de seus pensamentos, ele começou a divagar.
- É sério que você vai ficar aí parado? Não vai mesmo pensar em alguma coisa pra me tirar dessa enrascada em que me meteu?
A poltrona por pouco não virou para trás com o susto que o escritor levou ao ouvir aquela voz surgida do nada em um lugar onde até segundos antes havia apenas ele. Com o coração acelerando cada vez mais em uma aparente tentativa de saltar-lhe pela boca, o homem encrespou os dedos nos braços da cadeira, como se a mera menção de soltá-los fosse assustadora demais para ser cogitada.
- Mas que droga é essa? – Foi tudo o que conseguiu dizer enquanto olhava espantado para cada lado da sala vazia. Quando fitava um ponto, imediatamente sentia que era observado de outro, e olhava para lá apenas para ver que o local continuava vazio.
- Eu que pergunto. – Soou a voz novamente, e agora parecia vir de um ponto específico, próximo até demais de onde o homem estava.
- Quem é você? O que é você? – A voz do escritor saía em um misto de medo, dúvida e insegurança, trêmula e fraca demais para imprimir o tom incisivo e intimidador que ele intencionara dar.
- Eu sou eu, e você me conhece muito bem. Esse é quem eu sou. Não lembra? Magro, jovem, cabelos escuros, olhos perscrutadores, tímido, mas decidido, não bonito, mas com uma aparência agradável, etc, etc, etc. Esse sou eu. E quando ao o que sou, ora bolas, claro que sou uma obra da sua cabeça.
O escritor olhou espantado para a tela em branco do computador, que brilhava desafiadora à sua frente, parecendo estar zombando de sua falta de ideias. A voz incisiva e segura parecia sair dali. Na verdade, ele tinha certeza de que ela estava saindo dali. Ainda inseguro e limitando o ímpeto de tocar no objeto, o homem ergueu levemente a mão e a dirigiu até ali vagarosamente, como se a qualquer momento algo fosse surgir repentinamente e a agarra-lo, puxando-o para o desconhecido.
Enquanto fazia isso, buscava respostas em sua mente, até que lhe veio a ideia de que alguém poderia estar ligando de um aplicativo ou outro dispositivo de comunicação que tivesse deixado aberto no computador, e a ideia aumentou não apenas sua curiosidade, mas também a segurança em investigar aquele súbito mistério. A mão, que até então estava erguida e movendo-se lentamente pulou em direção ao cursor do mouse, quase em um bote, e passou a mexer ali para desvendar de uma vez por todas aquela curiosidade.
Mas para seu espanto, a única coisa que estava aberta no computador era o arquivo onde ele guardava a história na qual tinha travado. Nenhum aplicativo de conversa, nenhum outro dispositivo aberto, nem mesmo o navegador. Quando se propunha a escrever ele se desligava de tudo para concentrar-se no que saía de dentro de sua mente, e naquele dia não fora diferente.
“Será que meu computador foi invadido?”, perguntou a si mesmo. “Alguém que invadiu o sistema e não tendo nada melhor para fazer resolveu me incomodar? Mas por que? E qual o sentido disso?”. Enquanto as perguntas se sucediam em sua cabeça ele passou a levantar o notebook, olhando embaixo, colocando-o ao lado do ouvido, virando-o de um lado a outro na tentativa de tirar dali alguma explicação plausível, até que a voz soou novamente, e ele largou o computador em cima da mesa, causando um baque que ecoou pela sala.
- Ei! – A voz chegou aos seus ouvidos, indignada. – Assim você acaba quebrando esse negócio, e apaga de vez minha história. Pelo menos a que escreveu até agora.
- Mas quem é você afinal? E de onde está falando? Como invadiu meu computador? Não tem nada melhor para fazer da vida?
- Ter eu até tenho. Mas dependo de você para saber o que é.
- Como assim depende de mim? Olha aqui, eu vou direto na polícia levando o computador, e eles vão encontrar você. Eles sempre conseguem encontrar os rastros que vocês deixam.
- Garanto que só vão conseguir me encontrar se abrirem sua cabeça. Quer dizer, se ainda sobrar alguma coisa aí dentro para ser encontrada, porque pelo que vi até agora, tudo parece estar como... hum... uma tela branca, eu diria.
As palavras o lembraram do bloqueio, da tela em branco, da barra piscando zombeteira diante de seus olhos e da frustração em não conseguir externar em palavras o que se passava dentro de si mesmo, mas nada daquilo o fez cogitar outra hipótese que não fosse a de alguém que tinha invadido seu computador e agora estava pregando uma peça contra ele.
- Olha, não sei quem você é, e nem porque calhou de invadir meu computador para fazer sabe-se lá o que queira fazer, mas não vou ficar aqui aturando isso. Vou agora mesmo na delegacia.
E quando levou o dedo à tecla de desliga para pôr um fim naquela perturbação toda, algo aconteceu que fez com que sua mão parasse de imediato no ar, e seus olhos fitassem arregalados e cheios de espanto a tela à sua frente. No espaço onde antes havia uma tela em branco, surgiu lenta e gradativamente uma forma, algo que pareceu a princípio um buraco, para logo em seguida tornar-se uma esfera, e por fim definir-se em algo semelhante a uma cabeça humana, até que por último, o que o escritor viu o deixou completamente aturdido.
Diante dele, em um rosto nitidamente formado, como se estivesse de fato vendo uma pessoa à sua frente, e não uma tela de computador, estava a face que ele mesmo imaginara quando desenvolvera o personagem principal da obra que estava escrevendo. Sem tirar nem pôr, era o retrato fiel, a descrição exata do protagonista de sua obra.
Por um momento chegou a pensar que alguém que tivesse invadido seu computador e consequentemente conseguisse acesso à sua história poderia, com base na descrição ali feita, formar aquele rosto. Mas por outro lado, era semelhante demais ao que ele tinha criado em sua mente, e ele próprio não ficara suficientemente satisfeito com o modo como descrevera o protagonista.
Além do mais, era trabalho demais para alguém fazer algo tão rico em detalhes, formando praticamente um rosto que o fitava e sorria enquanto flutuava no espaço em branco na tela, simplesmente para perturbar alguém que sequer conhecia, como ele, e que não tinha qualquer desafeto ou inimigo que dele sentisse alguma raiva motivadora para realizar aquele tipo de ato.
Mas não havia outra explicação que não fosse aquela. Ao menos não uma que não o fizesse parecer alguém que tivesse perdido não apenas a criatividade, mas também o juízo junto com ela.
- E então? Vai ficar me encarando com esses olhos saltados e essa cara de maluco? Ou vai resolver conversar comigo? Ficaria agradecido se você fizesse ao menos isso. É um bocado chato ficar parado no mesmo ponto da história sem poder seguir ou voltar. É como, bem, estar em uma fila que nunca anda, e você sabe que isso é muito, mas muito maçante.
- Quem é você? E como... como fez isso com tanta... perfeição? O seu rosto é idêntico ao que imaginei. É impressionante que tenha conseguido fazê-lo com uma semelhança tão grande. E como faz isso? Digo, que tipo de aplicativo ou ferramenta usa para que fique tão parecido com uma pessoa de verdade? – A curiosidade do escritor era maior que o espanto e a raiva que sentira inicialmente, e antes que pudesse reprimir aquela pergunta em um cuidadoso exercício de autocontrole, ele viu as palavras e as perguntas saindo da sua boca sem qualquer freio, e acabou não ligando muito para isso. Estava curioso demais para deixar escapar a chance de saber o que de fato estava acontecendo.
- Eu já disse que sou obra da sua cabeça.
- Então está me chamando de louco? – Perguntou, um tanto quanto indignado.
- Isso é você que está dizendo. Falei apenas que sua cabeça estava vazia, e não que estava maluco.
- Mas se estou conversando com uma invenção da minha mente, então estou maluco!
- Isso depende do ponto de vista. Alguns diriam que você possui uma sensibilidade mais apurada.
- Pois eu digo que isso é coisa de quem está doido! E como não me sinto nem um pouco biruta, só posso concluir que você é algum desocupado que invadiu meu computador. Não sei por qual motivo, mas o fez.
- Você e essa mania de buscar explicações lógicas e rebuscadas. Não era assim antes. Como pôde mudar tanto? – Tanto a voz como a expressão que flutuava na tela do computador estavam carregadas com um misto de decepção e tristeza, e o escritor parou por um momento, hipnotizado com a riqueza de detalhes do que via.
- E como sabe como eu era antes, se não me conhecia? Ou admite que já me conhece e está me pregando alguma peça. Por acaso é algum dos meus amigos? Fale de uma vez por todas, antes que eu perca a paciência.
- Eu que perdi a minha. – Disse a voz, cheia de irritação, seguida de um franzir de testa do rosto na tela que denotava a impaciência de quem falava com o confuso escritor. – Não suporto mais essa mania de querer encher de explicações suas histórias, deixando as narrativas maçantes e entediantes. Você não era assim. Por que não volta a escrever como antes e deixa minha história tão interessante quanto a dos demais?
- Que demais?
- Os demais que vivem na sua cabeça. Você sabe, os outros personagens que você criou.
- Como assim, vivem em minha cabeça?
- E onde mais viveriam, seu boboca? Se você os criou, é claro que vivem em sua cabeça. E até eles estão espantados com essa sua mudança, o que acaba fazendo com que me olhem com um pouco de pena misturada a aborrecimento. Olha, você não sabe como isso é chato.
- E por que eles o olham assim? – O escritor fez a pergunta sem perceber por um momento que se deixava levar por aquela história, que parecia louca demais para ser verdade.
- Porque veem que eu pareço alguém saído da cabeça de outra pessoa, e não da mesma que os criou.
- E pode me explicar o que mudou? – Agora ele estava se entregando. A curiosidade era grande demais para voltar atrás, e se aquilo de fato fosse uma peça pregada por alguém, ao menos a crítica que viria poderia lhe ser útil em algum processo de melhora de sua escrita.
- Tudo, ué. A começar por essa sua necessidade de agradar todo mundo. Antes você não tinha isso. Escrevia pelo mero prazer de contar uma história, se lixando para se ela agradaria a todos ou não. Agora, quer agradar gregos e troianos, o que sabe ser impossível. Ou esqueceu do que aconteceu a Heitor e Aquiles? Morreram ambos!
- Ainda não consigo entender.
- Pois deixe que eu explique melhor. Antes de começar a fazer sucesso, você tinha prazer em criar histórias, em inventar personagens, e sorria conforme escrevia e a narrativa fluía em sua mente, correndo como uma onda ávida por chegar à praia, e desta forma as coisas aconteciam. Personagens ricos e interessantes, alguns tristes, outros engraçados, e todos atrativos e carismáticos, não importava se fossem os heróis ou os vilões. Era uma delícia não apenas de ler, mas também de escrever. Mas depois que começou a ser um pouco conhecido, passou a querer deixar tudo rebuscado demais, aprimorado demais, e deixou crescer esse desejo cada vez maior de agradar público e crítica.
- E qual é o problema nisso?
- Nenhum, se não deixar que isso tome conte da forma como escreve. Uma coisa é escrever algo para que todos leiam, e esperar que faça sucesso, que seja elogiado e reconhecido, o que não é problema algum... se ficar em segundo plano. A partir do momento em que faz disso uma obsessão, aí a coisa desanda, porque você deixa de sentir prazer em narrar na tentativa de agradar a todos os que estão lendo, numa tentativa inútil de construir algo que será elogiado por todo mundo. Lembre-se dos gregos e troianos. Não dá para deixar ambos felizes. Não na totalidade.
- Mas acabou de dizer que criei histórias interessantes. Como diz então que estou escrevendo mal? Não está sendo contraditório?
- “Criou”, meu caro. Disse bem. “Criou”. Você lançou três livros, e todos fizeram um sucesso absurdo. Mas de lá para cá, o que escreveu que realmente preste? Alguns contos sem graça, duas histórias das quais fez alguns esboços e logo parou, e depois a minha, que está parada, e diga-se de passagem, é chata pra caramba!
As palavras aborreceram o escritor, mas ele tinha que admitir que nada daquilo era mentira. De fato não criara nada digno de nota naquele último ano e meio, e confessou para si mesmo que não sentira muito prazer em escrever aquelas narrativas. Não o mesmo prazer que sentira das outras vezes. E a história que estava escrevendo, realmente era tão monótona que se deparara com um bloqueio do qual não conseguia sair. Não sabia se aquilo era uma alucinação ou alguma peça que estavam lhe pregando, mas sabia que tudo o que a estranha cabeça flutuante dizia era verdade.
- Deixe-me dar um exemplo. – Continuou a face na tela em branco. – Se você fosse escrever sobre isso, uma cabeça voadora idêntica à descrição de um personagem que criou, e que repentinamente aparece na sua frente para criticar o modo como tem agido, o que faria? Bem, antes que diga, eu tenho duas repostas. O escritor de antes teria criado uma narrativa interessante e cheia de significado, com mensagens, diálogos e reviravoltas que prenderiam a atenção do leitor. Já o de agora, perderia um tempo precioso, escrevendo linhas e mais linhas cheias de aborrecimento para tentar explicar a origem, as razões, e o que fizera com que essa estranha cabeça surgisse.
- E esse escritor de agora sou eu?
- Você é ambos, seu cabeça oca. Mas agora “está” como esse escritor chato. Tão chato que nem você aguenta ler o que escreve. Tão chato que sequer seu inconsciente quer continuar, e por isso acha que está diante de um bloqueio, quando na verdade não consegue prosseguir porque não sente prazer algum em fazê-lo.
- E o que sugere... cabeça flutuante? – O pensamento, assim como a expressão o divertiram por um momento, e ele se imaginou escrevendo sobre aquilo e sorrindo pelo prazer de narrar uma história como aquela.
- Antes de sugerir, deixe-me perguntar algumas coisas.
- Tem minha atenção.
- Então responda atentamente. Quantas vezes sorriu, vibrou, ou se emocionou lendo um livro?
- Tantas que nem sei contar. – Respondeu o escritor, lembrando-se em um flash das várias histórias que tinha lido desde que os livros tinham virado seus grandes amigos.
- E quando sorriu, chorou, ou se emocionou de alguma outra forma lendo, parou para procurar detalhes que explicassem o porque daquele sentimento, ou apenas deixou-se levar por ele e sentiu, pela mera simplicidade de sentir?
- Eu apenas me deixei sentir.
- Certo. E das vezes que escreveu e se emocionou fazendo isso, por acaso parou em algum momento para tentar explicar as razões do que estava acontecendo na história, ou simplesmente deixou que a emoção o levasse a lugares íntimos e cheios de sonhos, os mesmos lugares que você conseguiu mostrar aos leitores que gostaram de suas obras?
O escritor silenciou, sabendo tanto quanto seu interlocutor qual era a reposta a ser dada àquela pergunta.
- As melhores histórias. – Continuou o outro. – São aquelas que são não apenas lidas ou ouvidas, mas também escritas ou contadas com a simplicidade que enriquece as aventuras. Que são narradas com o coração. Como as descritas à beira de uma fogueira em uma noite entre amigos, as contadas em reuniões de famílias, e as grafadas com a emoção que saiu de dentro do ser, e a emoção, meu velho, não precisa ser explicada, mas apenas sentida. Talvez seja por isso que deixou de escrever coisas tão boas como as que criou antes.
“Porque está procurando explicar mais do que sentir. Agora me diga, o que é melhor, apreciar as ondas tocando a praia, ou tentar entender o processo que leva aquilo a acontecer? Admirar o nascer ou o pôr do sol, ou buscar a explicação científica para esse fato? Entender tudo o que envolve o nascimento ou o renascimento de um amor, ou pura e simplesmente viver toda a maravilha daquele sentimento?”
As respostas eram tão óbvias quanto era o absurdo de falar com uma cabeça flutuante em uma tela em branco de um computador, mas nem por isso deixavam de ser verdadeiras, e naquele momento o escritor entendeu porque sua mente se tornara um espaço vazio de ideias. Porque quisera explicar ao invés de sentir. E algumas coisas não precisavam ser explicadas, mas apenas sentidas. Olhou então para o rosto que se punha diante de seus olhos, ainda sem entender como aquilo estava acontecendo, e do outro lado, a face do personagem que criara sorriu para ele, como se percebesse que a mensagem que passara fora entendida.
A poltrona rangeu com o sobressalto que o escritor teve ao abrir os olhos e perceber que caíra no sono logo após cruzar as mãos e recostar-se na cadeira. Por um momento ele procurou a face na tela, a estranha e curiosa cabeça que flutuava e com ele conversava, mas tudo o que havia ali era um espaço em branco e uma discreta barra que piscava, não mais desafiadora, não mais zombeteira, mas convidativa, como se o chamasse para um encontro cheio de emoções.
O escritor sorriu, lembrou-se da mensagem que assimilara, e imediatamente selecionou tudo o que havia escrito antes para logo em seguida apagar, sem pensar duas vezes, começando novamente uma história que agora seria contada com a emoção de quem sentia, e não com a lógica. E sim, um dia escreveria sobre a cabeça que flutuava, mas em sua narrativa ela não seria obra de um sonho, e sim de algo maior, algo tão grande que não podia ser explicado, mas apenas sentido, porque no fim das contas a fantasia é isso, algo ilimitado, assim como o sentimento.
É dessa forma que as melhores histórias são contadas.
Ver além
A manhã caminhava em direção ao seu apogeu, plena e radiante, iluminada pela força de um sol que brilhava no alto, jogando sua luz pelo mundo e aquecendo os corpos e corações dos que sorriam percebendo a beleza de tudo o que os cercava. A abrir-se em direção ao infinito, uma enorme e cristalina manta azul se estendia pelo firmamento, onde sequer uma nuvem podia ser enxergada naquele dia que apresentava uma beleza ímpar.
Abaixo, a luz do sol chegava tocando o mundo, iluminando o lago brilhante onde cisnes dançavam suavemente em seu balé naturalmente desempenhado. Na superfície, o espelho d’água refletia a luminosidade do astro rei, e um observador menos atento poderia afirmar com toda a certeza de sua consciência que milhares de peixes brilhando em um fogo dourado saíam de seu interior para nadar do lado de fora.
No parque, a grama verde cintilava, revigorada e brilhante, como se uma imensa colcha esmeralda tivesse sido estendida para que todos se encantassem com sua beleza e descansassem em sua maciez. No ar, a brisa bailava, fresca e agradável, acariciando com seu toque cheio de leveza as faces e os cabelos dos que ali se encontravam.
Aos olhos de quem ali estava, aquela visão pareceria encantadora, acolhedora e estimulante. Mas nem todos enxergam a vida da mesma forma, e havia naquela paisagem um olhar que parecia não se agradar com o que via ao seu redor. Um pouco acima da colina que se elevava discretamente naquele parque, uma senhora permanecia sentada, observando a tudo com uma expressão que denotava sem trazer dúvida alguma, o descontentamento que sentia.
Com a irritação estampada na face, que parecia distorcida pela careta que formava ao externar o que carregava dentro de si, a senhora lançava olhares furtivos e impacientes por todo o ambiente, que terminavam por findar em um único ponto, situado exatamente ao seu lado. Era quando fixava esse ponto que sua raiva parecia crescer ainda mais, elevando-se a níveis quase insuportáveis, os quais ela tentava amenizar com bufadas propositadamente sonoras, que podiam ser ouvidas não apenas por quem estava perto, mas também à distância.
No local onde o ponto alto de sua irritação era alcançado sempre que o olhava, estava sua irmã, um pouco mais velha, mas que em nada se assemelhava a ela. A outra senhora mantinha na face um sorriso que parecia sair do âmago do ser, externando uma felicidade que se não fosse por outros sentida, aos menos a eles contagiaria momentaneamente.
Era um sorriso puro, simples e que não se abria mostrando toda a fileira de dentes que se estendia em sua boca, mas que ao abrir-se, singelo e calmo, mostrava para os que o viam as portas da alma daquela senhora. O corpo, velho e curvado, repousava pacientemente como se ali tivesse encontrado a calma e o descanso de que necessitava, diferente da outra, cujas pernas balançavam numa velocidade impaciente, que anunciava a todos que ali era o último lugar em que gostaria de estar.
E os olhos... os olhos da irmã calma e feliz permaneciam fechados, como se estivesse dormindo ou dando um breve e revigorante cochilo, enquanto sorria suavemente naquela bela manhã. Mas ela não dormia, não cochilava, e nem mesmo fechava os olhos para resgatar alguma lembrança plena em felicidade que guardava carinhosamente na memória. Era cega. Nascera daquela forma, sem nunca ter tocado com os olhos as cores e a beleza física do mundo.
- Não entendo porque mantem esse sorriso estúpido no rosto. Parece uma idiota, rindo para o nada enquanto os outros passam e constatam o quão abobalhada parece ser. Assim está me envergonhando. – Disse cheia de impaciência a que parecia incomodada.
- Não ligo para o que os outros pensam. – Respondeu a que não enxergava. – Apenas a opinião de Um me interessa, e para ELE, eu não pareço uma boba, isso eu posso garantir.
- E por que ri? – A pergunta que mudava de assunto veio em uma voz carregada de irritação. – Não vejo razão alguma para ficar aí com a boca torcida nessa cara velha e enrugada. Por acaso estou surda e não ouvi alguma piada ou gracejo que algum transeunte passou e que lhe fez abrir esse sorriso estúpido?
- Rio porque ouvi o gracejo de DEUS. – Respondeu contente a outra, sem parecer importar-se com a imagem depreciativa feita pela irmã.
- E pode ao menos me dizer que gracejo foi esse?
- O gracejo da vida, ora. – A resposta veio carregada de um tom que externava que aquela parecia ser a coisa mais óbvia do mundo. – O gracejo dos pássaros que cantam, do vento que toca nossos rostos, do cheiro da grama e das flores que corre no ar, e da beleza que se estende ao nosso redor.
- Pois não ouço nada além da algazarra irritante dessas crianças que correm e peruam nesse gramado, sujando suas roupas e tirando o juízo de seus pais. Também não me agrada em nada esse vendo assanhando meus cabelos, que passei um bom tempo penteando nessa manhã. E esse cheiro... aliás, que cheiro? Não sinto nada além desse seu perfume incômodo de pobre, que insiste em usar, mesmo com todos aqueles vidros de perfume francês que temos em casa.
- Não sente o cheiro das flores? – A outra pareceu surpresa.
- E deveria? Para mim é o mesmo cheiro que o que tem o mato, ou qualquer planta, até mesmo as folhas de alface sem gosto que comemos na salada.
- Se abrir bem o nariz e respirar fundo, poderá sentir.
- Se eu fizer isso a única coisa que vou sentir é a sensação de um espirro iminente, acompanhada de um provável resfriado, que com certeza iremos pegar se ficarmos aqui mais meia hora. Por que não vamos embora de uma vez?
- Não entendo porque não gosta de ficar aqui. Um lugar tão agradável, tão acolhedor, tão... belo.
- E como sabe que é belo, se não consegue enxergar um palmo diante do seu nariz? Não sabe dizer sequer qual é a cor do céu, da grama, e dessas flores que insiste em dizer que são cheirosas. Nunca viu sequer a luz do sol para saber como é. Então não entendo como pode dizer que algo é belo sem nunca tê-lo visto.
Ao dizer aquelas palavras a irmã ficou ainda mais impaciente, e virou-se para o outro lado, sem ver que a outra não retirara e nem diminuíra o sorriso que trazia no rosto, mesmo após ouvir palavras que vinham carregadas de tanto dureza e depreciação. Acostumara-se com os anos ao temperamento da irmã, e se machucara antes, chegando até mesmo a sentir raiva dela. Mas se havia algo que a vida lhe ensinara, era que viver carregado de sentimentos tão cruéis era apenas mais uma forma de punir a si mesmo, e aqueles que estavam ao seu redor.
Preferia amar a irmã, mesmo com aquele gênio e temperamento sempre pesados e pessimistas. Preferia amar, porque era ali que alcançava a sua plenitude, e vivia um pouco mais perto de DEUS.
- Diga-me. – Começou, pacientemente. – Você acredita em DEUS?
- Que pergunta idiota. Você sabe que acredito. Toda semana vou à igreja e cumpro com meus deveres, contribuindo e dando dinheiro até demais para ajudar as obras que fazem. Que tipo de pergunta sem sentido é essa?
- Acredita que ELE é Belo? – Insistiu.
- Claro que acredito! ELE é DEUS, afinal.
- E já o viu?
- Não, ora bolas! Ninguém vê DEUS.
- Então como sabe que ELE é Belo, se nunca o viu?
A irmã rabugenta procurou as palavras, mas de sua boca aberta em sinal de carranca nada saiu além do ar. Buscou alguma resposta que pudesse dar, mas não conseguiu encontrar nada, limitando-se então a dizer à outra que o que ela falara não tinha sentido algum, e virou-se para o lado, novamente impaciente e irritada.
- E se eu dissesse que você está enganada em tudo o que disse? – Voltou a falar a irmã sorridente. – Primeiro falou que não posso ver a beleza que nos rodeia. Depois que ninguém pode ver DEUS. Pois digo com toda certeza que se equivocou em ambas.
- Vamos lá, sua grandeza. Me prove então que estou enganada. Mostra a natureza do meu equívoco.
- Não estou aqui para provar nada. Mas se permitir, posso mostrar uma ou duas coisas que poderão lhe ajudar a ver melhor.
- Rá! Uma cega querendo me dar aulas de como ver! Gostei dessa.
As palavras não parecerem atingir a outra, que continuou:
- Começando, você disse que eu não podia ver o céu, as flores, a grama e o sol. Que não posso sequer descrevê-los. Bem, realmente não posso vê-los com os olhos do corpo, mas consigo com os da alma.
- Bobagem. – Retorquiu a outra.
- Pode parecer, mas não é. Não sei descrever o amarelo, o azul, o branco e o verde. Não sei dizer com o que parece cada coisa, mas posso ver a beleza de tudo, e sabe por que?
- Não, e na verdade, não me interessa.
- Posso. – Prosseguiu. – Posso ver a beleza de tudo porque não vejo com os olhos do corpo, que nunca tive, mas com os da alma, que consegui abrir com o passar do tempo, e que tudo podem ver. E é nesse ponto que mostro que sua segunda observação também está errada, pois é com os olhos da alma que posso ver DEUS, a quem você disse que ninguém enxergava.
- Então diga-me, se o viu. Como DEUS é? – Desafiou a mau humorada.
- É Perfeito. Como o cheiro das flores, como a brisa suave, como o som das risadas cheias de felicidade dessas crianças... como o calor que sinto crescer no peito ao ter contato com tudo isso. Com toda a obra DELE.
- Ainda não consigo enxergar assim, o que me leva a insistir que fala apenas bobagens.
- Não enxerga porque para além da cegueira do corpo, que possuo, você carrega em si a pior delas, a cegueira da alma. E enquanto permanecer assim, será tão inútil eu tentar descrever o que vejo por dentro, do que você tentar me descrever a cor amarela.
- Já caiu em contradição. Não disse que podia ver tudo? Então não preciso lhe descrever nada. – A mau humorada tentou soar vitoriosa.
- Eu posso ver tudo com olhos que vão além do humano. Com olhos que enxergam o que está além, e com eles vejo que até mesmo em você, minha irmã, bem lá dentro, trancada nessa casca dura e fria, existe alguém que também pode ver, mas que está no escuro. Que está momentaneamente cega.
A outra perturbou-se com aquelas palavras, e seu desejo foi de afastar-se dali, como se fugisse de algo que a irmã dissera, mas sabendo no íntimo que de nada adiantaria, pois não há como fugir quando aquilo que a persegue vem de dentro.
- Então, minha amada irmã. – Prosseguiu. – Sentada nesse banco eu posso ver mais do que você. Não porque eu seja melhor, mas porque me permito. Vejo a beleza do céu azul, mesmo sem nunca ter enxergado o azul, vejo o brilho do sol e da grama, mesmo sem saber descrevê-los segundo a imagem dos olhos humanos, e justamente por isso, porque não é com olhos humanos que enxergo, e sim os da alma. Sou cega de corpo, mas vejo com o espírito. Você vê com os olhos físicos, mas é cega de alma. E quer saber de uma coisa?
Nesse momento, a irmã sorridente segurou na mão da outra, deixando-a incomodada e sem reação.
- Isso pode mudar. Porque da mesma forma que sei que acredita que Jesus curou aqueles que eram fisicamente cegos, acredito comigo que ELE pode curar os que não enxergam espiritualmente. Esse, minha irmã, é o milagre maior. E se quer um conselho, sugiro que comece a pedi-lo em suas orações. Do contrário, por mais que possa enxergar a beleza do mundo, acabará não vendo a beleza de DEUS.
E assim deixou a irmã com aquele pensamento, e de olhos fechados sorriu novamente, vendo em sua plenitude toda a beleza que se descortinava ao seu redor. A beleza de DEUS.
Uma que era cega de corpo, mas que a tudo enxergava, e a outra, que nada via, porque era cega de alma.
Melhores Amigos
Sentado no quintal iluminado pelo sol do final da tarde o menino brincava, vivendo em seus brinquedos um mundo de fantasia, construído por sua mente de criança, ainda intocada pelas praticidades e exigências que tolhem a ilimitada imaginação humana. Em seus pensamentos ele era piloto, acelerando à velocidade da luz em seus carrinhos. Era astronauta no foguete que decolava, super-herói no boneco de capa que salvava o dia, guerreiro com uma espada na mão e o senso de justiça no coração. Era tantos de uma só vez, e todos de uma vez só.
Mas a sua maior paixão eram os super-heróis. Fortes, destemidos, de capas ou não, com o rosto livre ou encoberto por uma máscara que protegia suas identidades secretas eles voavam, lutavam, persistiam e defendiam pelo bem e pela justiça, em uma batalha constante contra o mal representado por vilões que ora queriam conquistar, ora destruir o mundo.
Os olhos do garoto brilhavam quando ele via o Batman, o Super-Homem, e tantos e tantos outros de uma galeria de nobres e valentes, imaginando como seria se tornar um deles por um dia, ou mesmo passar um dia ao lado de cada um, voando, combatendo o crime, salvando vidas, andando nas máquinas, foguetes, tanques e outros veículos que porventura guiassem.
Os olhos do menino se enchiam de vida quando os via e os imaginava. Mas havia um por quem seus olhos brilhavam muito mais. Um que ele considerava maior, acima de todos aqueles outros. Um que fazia seu coração bater mais forte e seu peito se encher de orgulho e admiração. Um que era gigante junto aos demais. O seu pai.
Sempre que o via, sempre que estava com ele, brincando, conversando, ou mesmo calado, aproveitando aquela presença que lhe trazia segurança, ele pensava consigo mesmo no silêncio de sua mente o quão grande era aquele homem. Pensava em como aos seus olhos ele era um gigante, às vezes parecendo tão inalcançável quanto o pico da mais alta montanha, e outras, tão acessível quanto o topo das árvores que ele escalava em suas brincadeiras de criança.
Quando ouvia sua voz, às vezes profunda e forte, como um trovão soando no labirinto de uma cordilheira, e por outras macia e acalentadora, como o som da brisa do mar dançando suavemente com as ondas, ele parava, admirado e boquiaberto, pensando em como ele era sábio e seguro, cheio de conhecimento, mas também solícito em com ele compartilhar tudo aquilo.
E nas vezes em que aquele gigante se fazia criança também, rolando com ele na grama, correndo e brincando, pulando e dando cambalhotas, como se ambos fossem dois meninos com uma vida inteira pela frente para brincar, ah, como eram bons aqueles momentos. Era neles que ele se sentia pleno, pois sabia que tinha um protetor, um professor, um baluarte e ao mesmo tempo um melhor amigo para brincar e partilhar com ele suas melhores horas.
Naquela tarde ele brincava, ansioso pela chegada do pai, para com ele conversar, dizer como fora o dia, falar do time de ambos, e da posição em que estava na tabela do campeonato, e talvez, se houvesse tempo, jogar um pouco de botão e correr e brincar como se fossem dois garotos da mesma idade, mas de tamanho diferentes, e seus olhos brilharam quando escutou com ouvidos atentos e o pescoço empertigado a já conhecida buzina do carro, com os cinco toques característicos, sinal de que quem ele esperava já estava ali.
O menino largou seus brinquedos e correu para o portão, estabanado e desajeitado, escapando por uma ou duas vezes de levar um tombo que certamente lhe traria uma nova marca nas canelas ou nos joelhos, juntando-se às tantas que ele já tinha ali, resultados da forma como se dedicava e se jogava em suas brincadeiras e em seu mundo de faz de conta.
Ansioso e já tentando escolher o que faria ou o que falaria dentre as diversas ideias que corriam em sua mente na vertiginosa velocidade do pensamento, o garoto abriu rapidamente o trinco do portão, puxou as grades de ferro até que batessem nas paredes laterais ressoando um ruído de ferro batendo em concreto, que ecoou em seus ouvidos e em sua mente, e afastou-se, para que o carro passasse.
Antes mesmo de o pai desligar o motor do veículo, ele já estava puxando a porta e despejando boca afora um sem número de palavras, inteiramente compreensíveis para ele mesmo, mas completamente indecifráveis para qualquer interlocutor. O pai desceu do carro, lento, pesado, com ombros curvados que davam a impressão de que carregava em si um peso invisível. Pareceu não ouvir o que o filho dizia, e com a pasta pendurada nos dedos ele caminhou em direção à porta.
O menino pareceu não reparar naquilo, e continuou atrás dele, disparando as constantes palavras em uma torrente que mal podia ser compreendida. Ao mesmo tempo falava de como fora seu dia, do que fizera, das coisas que achara interessante e de como bolara uma brincadeira nova para brincar com o pai naquele fim de tarde. Mas ainda assim o homem pareceu sequer reparar em sua presença, ou ao menos fingia que não o fazia.
Mas quando entraram na sala, o homem curvado virou-se repentinamente para o menino e pediu que ele silenciasse, dizendo que não estava com cabeça para aquele tipo de bobagem, e que tinha muito o que fazer, não podendo perder tempo com coisas sem importância como aquelas. Gradativamente as palavras do garoto foram cessando, diminuindo em número, intensidade, até que fossem reduzidas a um sussurro quase mudo e inexpressivo.
Sem dar mais qualquer satisfação, o homem virou-se e caminhou pesadamente em direção ao quarto, deixando para trás o filho, com uma expressão aturdida, que denotava apenas o vazio e a tristeza que sentia. O pai nunca o havia tratado daquela forma antes, e aquilo pareceu machuca-lo muito além do que o machucaria um tapa na face.
Com lágrimas se formando nos olhos ele afastou-se, voltando ao seu pequeno espaço de fantasia infinita, que repentinamente parecera ter perdido o encanto depois do que acabara de suceder, e ali permaneceu, com um dos brinquedos na mão, e o vazio no olhar perdido que parecia fitar o nada. O peito estava apertado, e sozinho ele perguntava a si mesmo se havia feito algo de errado.
Dentro da casa, o pai, que acabara de ser demitido, sentia-se tomado pela angústia e pelo medo de não mais poder sustentar a família, temendo o que seria dos dias que estavam por vir. Cansado e abatido ele caminhou lentamente até a cozinha, em busca de um copo com água que pudesse refrescar seu corpo e suas ideias, e quando estava por dar o primeiro gole, viu através da janela basculante o filho sentado no quintal, com o olhar perdido e desolado.
Então lembrou-se do que acontecera momentos antes, da forma fria e ríspida com a qual tratara o filho, por quem nutria um amor que sequer possuía a distante capacidade de mensurar. Seu peito se apertou ainda mais por ter agido daquela forma. Sim, possuía motivos para estar preocupado, apreensivo e até mesmo irritado. Tinha sim motivos para querer algumas horas de descanso que serviriam para tentar colocar as ideias no lugar e buscar um princípio de solução para resolver aquela situação.
Mas o garoto não fora o responsável por nada daquilo, e não podia descontar sua raiva e seu medo naquele que todos os dias ajudava a lhe dar alegria e esperança. Enquanto as lágrimas marejavam os olhos do menino no quintal, os olhos do pai transbordavam enquanto ele estava parado na cozinha, copo na mão, peito apertado, garganta travada demais para deixar que passasse para dentro algo que não fosse o ar.
Naquele momento ele sentiu uma vontade arrebatadora de abraçar o filho e pedir perdão. De beijá-lo e naquele gesto sentir a calma de que precisava, e assim o fez, pondo sonoramente o copo cheio de água na mesa, e caminhando para fora com os olhos cheios de lágrimas. Agachou-se ao lado do menino, pediu-lhe desculpas e o abraçou, sentindo no abraço a calma que tanto desejava.
As coisas se resolveriam dali em diante. Tinha fé em DEUS que sim. E assim foi. Os anos se passaram, o homem conseguiu outro emprego, um melhor, e pôde dar conforto à família e educação ao filho. O menino cresceu, formou-se, constituiu família e tornou-se um profissional de sucesso, assim como o pai o fora.
Décadas depois daquele abraço, naquela mesma casa onde um dia um pai pedira perdão ao filho com um abraço acolhedor, o menino que agora era homem ali estava para celebrar uma data especial. O dia dos pais. Mas o garoto agora crescido carregava nas feições a expressão que não estivera estampada em sua face em tempos distantes. Estava preocupado, sisudo, fechado, limitando respostas em palavras monossilábicas enquanto a família almoçava feliz e despreocupadamente na mesa.
Estava apreensivo. As coisas não iam bem no trabalho e ele temia que a empresa fechasse. Seu corpo estava à mesa com os demais, mas sua mente ia longe, e o único a perceber isso foi o pai, o velho pai que um dia fora um gigante para um menino cheio de admiração, e que reconhecia aquelas feições, as mesmas que tinha levado no rosto em um tempo há muito passado.
Agora estava velho, frágil, encurvado. O rosto que um dia fora sem marcas agora era tomado por rugas cavadas pelo senhor das horas. Os cabelos, negros como a noite, agora eram brancos como a neve, o corpo, antes robusto e resistente, agora carregava a fragilidade da idade, e a voz, que um dia fora trovejante, estava rouca e gasta. Mas ainda possuía o espírito jovem.
Só que aos olhos do filho, aquele homem que um dia fora visto como o maior super-herói de sua infância, era agora apenas um velho pai que demandava cuidados. Era mais uma preocupação que ele tinha em meio a tantas, como a de estar presente naquela data, naquele almoço de dia dos pais, enquanto poderia estar usando aquele tempo para trabalhar e tentar aumentar a produção da empresa.
O almoço transcorreu com conversas animadas, piadas, lembranças de casos do passado, e um velho pai que em meio a tudo aquilo direcionava olhares preocupados para o filho sisudo e cabisbaixo. Apesar da expressão fechada, o velho via o jovem da mesma forma que o vira tantos anos antes pelo basculante da cozinha. Um menino triste e sozinho, que precisava de um abraço, tanto quanto ele.
Terminada a refeição, e feitas as despedidas, o filho preparou-se para ir embora, mas quando estava à soleira da porta ouviu impaciente o chamado do pai. Resmungando virou-se e foi até onde ele estava. O velho estava sentado à mesa, com duas xícaras de café diante de si, em nítido sinal de convite para que ele sentasse e conversasse.
Mas o filho estava impaciente demais. Tinha trabalho a fazer, tinha uma empresa a salvar e obrigações cumprir, e quando foi instado uma vez mais pelo pai para ficar, perdeu a paciência e deixou escapar que não tinha tempo para aquele tipo de bobagem. Então retirou-se e saiu rispidamente, deixando atrás de si o velho sentado e cabisbaixo.
Saiu apressadamente, e abriu o velho portão de forma brusca, puxando-o com tamanha força que ele bateu na parede lateral, e o forte som de ferro com concreto ecoou pelo espaço. Naquele momento o ruído trouxe de volta do armário de sua memória a lembrança do menino que fizera aquele mesmo gesto, mas com um humor inteiramente diferente do que ele apresentava agora.
Recordou da forma como ansiara pelo pai, o seu gigante, o seu super-herói, e de como foi tratado de forma ríspida. Lembrou do aperto no peito e das lágrimas no olhos, de sentar fitando o vazio e da tristeza que sentira. Mas lembrou-se também quando viu de relance um gigante surgindo, um herói sem capa e sem máscara, que de olhos marejados chegara perto dele, dando-lhe o abraço pelo qual tanto ansiara, e pedindo-lhe desculpas pela forma como o tratara.
Lembrou de como riram, se divertiram e brincaram naquela tarde, como dois garotos, como dois melhores amigos, e de como a cena se repetira por tantas e tantas vezes. Soube depois, pela mãe, que naquele dia o pai fora demitido, mas que ainda assim deixara os temores e as preocupações de lado para dar atenção a um garoto cheio de amor.
A lembrança fez com que seus lábios tremessem, seus olhos se enchessem de lágrimas, e a garganta ficasse a tal ponto embargada que nada por ali passava além do ar. Do portão ele voltou os olhos para o quintal, e por um átimo de segundo pôde enxergar um menino e um adulto sentados no chão, rindo e brincando. Dois amigos. Melhores amigos.
Sem conter o choro, ele entrou rapidamente em casa, e encontrou o pai sentado na mesma posição, com as duas xícaras de café na frente, como a espera-lo. Nos ombros curvados do velho ele viu novamente as fortes costas que tanto o haviam carregado. Em seu olhar enevoado ele enxergou outra vez os olhos decididos que sempre lhe haviam trazido acalento e segurança. Nas mãos tomadas de manchas, ele viu as mãos fortes que seguravam nas suas enquanto passeavam.
No velho sentado, que já não tinha o mesmo porte, força e musculatura que tivera outrora, ele reencontrou seu gigante, seu super-herói, seu exemplo. Caminhou até o pai, e vendo como ele era grande o abraçou, pedindo perdão, como fora feito com ele tantos e tantos anos antes. Naquele dia, assim como em um dia que há muito ficara para trás, eles passaram a tarde rindo, tomando café e conversando, contando piadas, lembrando de histórias e falando bobagens.
Naquela tarde eles divertiram-se como o que sempre tinham sido...
Pai e filho.
Os Melhores amigos do mundo.
Razão e Emoção
Água e vinho, cara e coroa, yng e yang, o colorido e o cinzento, dois extremos, tão diferentes, tão distintos, mas ainda assim com características pontuais, mesmo que mínimas, que se mostravam semelhantes. Distantes e simultaneamente tão próximos, habitantes do mesmo lar, e imprescindíveis um ao outro. Talvez esse fosse o maior motivo de irritação entre eles, o de saberem que sem um, o outro não sobreviveria.
Naquela tarde se entreolhavam, um, o mais sério, irritado, decepcionado e com uma gama de palavras duras a serem ditas ao segundo, palavras que já haviam sido proferidas, mas sem resultado algum. Era como se houvesse um bloqueio nos ouvidos do destinatário daquelas lições, que mesmo as ouvindo inúmeras vezes, ainda assim as rechaçava e voltava a cometer as mesmas ações dignas de reprovação.
O outro, mais carismático, jovial e espontâneo encarava o primeiro, lançando-lhe um olhar desafiador que parecia dizer que o deixasse em paz, porque já sabia o que seria dito, palavra por palavra, mas não as absorveria de forma alguma, faria questão de não assimilá-las, o que tornaria aqueles sermões, no fim das contas, apenas mais uma perda de tempo para o mais sério dos dois, e apenas mais um motivo de irritação para ambos.
- O que quer meu irmão? – Perguntou retoricamente o mais jovial dos dois. - Me cansar com suas lições de moral? Com seus conselhos de como devo agir ou como deveria ter agido? Ou com suas reclamações sem fim sobre o modo como vivo minha vida?
- E eis que surge a prova cabal de que ele escuta tudo, assimila tudo, mas não põe nada do que falo em prática, sabe-se lá por qual motivo. – Respondeu o mais sério, já com a impaciência estampada no tom de sua fala. – Diga-me, irmão, fazes isso por burrice ou mau caratismo?
O mais alegre sorriu, expressando naquele gesto a graça que achara das palavras do irmão, que tentavam atingi-lo como flechas, mas que passavam por ele como uma suave e envolvente brisa marinha, não lhe causando mal algum.
- Se amar é burrice, então sou estúpido feito uma porta. E se ansiar por viver a vida é sinal de mau caratismo, então sou o sujeito mais patife que esse mundo já viu. – E riu uma vez mais, voltando-se para a janela, de onde podia ver a paisagem que se estendia, verde e brilhante do lado de fora. Fitando a beleza daquele lugar ele espreguiçou-se lentamente, por um tempo que para o outro pareceu uma eternidade, então sentou-se pesadamente no sofá, enquanto esperava pacientemente pela torrente de sermões que viria a seguir, e ela não tardou a chegar.
- Ao menos admite cometer as posturas que adota. – Começou o mais austero dos dois. – O que me leva a cogitar qual das duas é a pior, a irresponsabilidade inconsequente dos erros cometidos, ou a total noção de que erra e repete o equívoco. No primeiro caso, és um burro, como tu mesmo admitistes, e no segundo, és um mau caráter, como a si mesmo reconheces.
- E por que não ambos? – Provocou o outro.
- E por que não ambos? – Repetiu o mais sério. – Pela postura que adotas eu acho que no fim das contas és mesmo ambas as coisas. Um vadio burro e inconsequente, e um mau caráter sórdido e passional.
- E onde você fica nessa história, meu irmão?
- Fico na tua frente, levando as pancadas que resultam das suas atitudes desmedidas, aguentando a pressão que me cansa e me tira de prumo com cada ferimento que causas com tuas atitudes. E permaneço aqui, ainda assim, tentando colocar um pouco de juízo em teus pensamentos, e um pouco de caráter nos teus atos.
- E por acaso acha que não sofro quando as coisas que faço dão errado? Já que és tão sábio, tão cheio de conhecimento e informações, tão acumulador de experiências, deveria saber melhor do que ninguém que o primeiro que se fere com meus erros sou eu. E nem por isso fico reclamando e remoendo por aí. Digo, no começo até faço isso, sangro e me lamento, mas logo em seguida supero e sigo em frente.
- Sofre, supera e segue em frente. É fácil falar quando se trata apenas de ti, mas há mais envolvido. Não machuca apenas a si mesmo com isso. Quando o sofrimento te atinge, a mim atinge também. Quando te decepcionas, sou eu que carrego na memória a imagem de quem te decepcionou. E quando amas ou te apaixonas, sou eu que tenho de ajudar a mudar o foco dos pensamentos para te ajudar a seguir em frente. Não importa quem sofre primeiro ou por último, caro irmão, mas sim que todos sofrem, e com isso atrapalhas meu trabalho, meus projetos e minha vida, ou melhor dizendo, nosso trabalho, nossos projetos, nossa vida.
- Não ouço essas reclamações quando o que faço traz algum bem. Na verdade, sequer escuto elogios de sua parte.
- E que bem isso me faz?
- Que bem o amor faz? – O irmão espontâneo ergueu-se subitamente, como se o que acabara de ouvir fosse a coisa mais absurda já dita por alguém, e caminhou alguns passos em direção ao outro, que recuou, um tanto apreensivo. – Pensei que de nós dois você fosse o esperto, o sábio, aquele que tudo conhece, e não o idiota que não enxerga um palmo à frente.
As palavras pareceram ofender o mais sóbrio, que detestava ser taxado de algo menos que inteligente, o que diria então de idiota? Especialmente quando era o mais estúpido que o chamava daquela forma.
- Que bem o amor faz... – Sua voz soou fria e compenetrada, quase robótica, como um professor prestes a explicar um tema cheio de tecnicismos. – Que bem o nada faz? Porque o que é o amor senão o nada? Um sentimento criado por aqueles desprovidos de capacidade cognitiva mais ampla. Uma fantasia para iludir bobos enamorados que não têm coisa melhor para fazer da vida.
- Então você acha que o amor não existe? – Perguntou o segundo, em tom de desafio.
- Sobremaneira. – Respondeu o primeiro, devolvendo o tom desafiador. – Apenas uma ilusão, uma fantasia criada para mascarar a realidade.
- Tudo uma perda de tempo?
- Pura e completa.
- A mim não pareceu que achava o amor uma perda de tempo nas vezes em que relaxou e satisfez-se ao senti-lo. Ou quando acalmou-se após um dia duro de trabalho apenas pela sensação de que o amor ali estava presente. A mim, caro irmão, pareceu que sentiu, e gostou de ter sentido. – Ao ouvir aquelas palavras o primeiro sentiu um baque, perdendo momentaneamente o prumo e ficando sem resposta, como uma criança que é pega no exato instante em que comete uma travessura.
- Absurdo! – Tentou defender-se. - Jamais expressei emoção ou reação alguma com essa fantasia idiota criada por mentes sonhadoras.
- Dos tantos conselhos que já me deu, um deles dizia que mentir era uma atitude reprovável. Agora me parece que você copia meu comportamento, ao não seguir os ensinamentos que dá. Estou errado?
A provocação atingiu novamente o mais sério dos irmãos, que pareceu ao mesmo tempo ofendido e confuso, tentando encontrar um argumento para rebater aquelas palavras, mas sabendo, bem no fundo, que elas estavam repletas de verdade. Revoltava-se com as aventuras inconsequentes nas quais o outro se envolvia, e que terminavam por prejudica-lo quando não davam certo. Mas nas vezes em que as coisas tinham sido bem sucedidas...
Nas vezes em que o amor de fato estivera ali, e não uma mera paixão que se extinguia tão rapidamente quanto uma onda quebra na arrebentação, naqueles momentos a coisa toda valera a pena, e ele desfrutara de cada momento, de cada emoção, de cada novo sentimento que surgia e das sensações cheias de realização que dele advinham.
E sabia que por mais que negasse, por mais que se recusasse a reconhecer a verdade, estaria incorrendo em uma mentira tão facilmente perceptível quanto o é a luz do sol no ocaso, enquanto surge na linha do horizonte. Buscou resposta para rebater o argumento, mas como resposta não havia resolveu permanecer em silêncio. A lógica com a qual pautava sua vida também estava presente nos momentos de reconhecer que estava errado.
- Não vou discutir mais com você. – Limitou-se a dizer, afastando-se acabrunhado.
- Já desistiu do debate? De suas lições intermináveis e de sua lógica cansativa e maçante? Isso é novidade pra mim.
- Pois deveria experimentar aplicar um pouco de lógica, de raciocínio, de parcimônia na hora de tomar suas atitudes. Garanto que ajudaria bastante. – Retorquiu o outro, ainda irritado por ter cedido terreno naquela pequena rusga.
- De que serve isso? – Fez a pergunta lançando um olhar de tédio e aborrecimento ao irmão. – De que me serve viver da forma como indica? Temos tão pouco tempo para aproveitar essa breve existência. Por que então gastá-lo vivendo como velhos chatos que se deitam cedo e dormem de pijamas em camas separadas? A lógica e a razão de nada servem. O importante é seguir o instinto, a emoção, e jogar-se na vida, enquanto vida ainda há para se jogar.
- Mas vejam só. Você mesmo, irmão, admitiu agora há pouco que era o primeiro a sofrer com seus erros. – Falou o primeiro, sentindo que pegara o jovial em uma armadilha. - Não admite também que se tivesse seguido a razão, ainda que por um ou dois segundos, teria ao menos tido a possibilidade de evitar aquele sofrimento?
Desta vez foi o outro quem cedeu terreno, especialmente depois de lembrar da dor que sentira todas as vezes em que suas aventuras vividas sem pesar as consequências tinham terminado em decepção, em tristeza, em sofrimento, não apenas para ele, mas também para quem lhe era próximo.
- Então, o que me diz? – Provocou o mais sábio. – Ainda insiste que lógica e razão de nada valem, em nada acrescentam, e coisa alguma trazem de bom?
O irmão mais espontâneo nada disse, apenas virou o rosto, orgulhoso e temendo que o outro enxergasse em suas feições que, ainda que remotamente, concordava com seu raciocínio. Um silêncio pesado e incômodo se interpôs entre os dois, e permaneceu ali por um tempo que a ambos pareceu arrastar-se por uma eternidade.
Até que o mais sensato, seguindo a lógica com a qual costumeiramente pautava seu raciocínio, mas permitindo que um pouco de emoção permeasse sua atitude, já que gostava do irmão o bastante para não mais querer travar com ele aquele tipo de embate, resolveu oferecer um armistício para pôr fim àquela discussão que se tornara enfadonha e repetitiva para ambos.
- Proponho uma trégua. – Disse ele, de forma propositalmente lacônica, para provocar o outro a interessar-se pelo assunto.
- Que tipo de trégua? – Quis saber o outro, virando-se novamente para o irmão.
- Uma mudança de comportamentos. E falo no plural porque será uma alteração que deverá partir de ambos.
- Continue. – O irmão parecia cada vez mais interessado.
- Eu me disponho a admitir... não, melhor. Eu me disponho a agir com um pouco mais de emoção, desde que você se comprometa também... a se comportar com um pouco de razão em suas atitudes.
A ideia pareceu interessar ao irmão considerado inconsequente, que pesou seus atos e lembrou-se das atitudes imprudentes que cometera no passado, as que apenas tinham lhe trazido dor, e que se tivessem sido tomadas com a presença da balança que pesa os prós e os contras, talvez sequer tivessem sido adotadas por ele. Além do mais, já vivera tempo o bastante para admitir que estava cansado daquela repetição de jogar-se de maneira irresponsável em aventuras que por vezes se mostravam nitidamente infrutíferas e por outras, extremamente prejudiciais.
E havia outra coisa, algo que lhe chamava atenção na expressão do irmão. Uma coisa nova, que vira poucas vezes em todo aquele tempo em que conviviam, e mesmo assim só presenciava em momentos ímpares, quando o outro se descuidava o suficiente para deixar que aquilo transparecesse. Era quase como se... estivesse sentindo, como se estivesse experimentando uma emoção.
Aquilo o tocou, e naquela proposta ele viu sinceridade o suficiente para concordar em adotar a mudança ofertada. Pensaria mais antes de jogar-se. Pararia para olhar o tamanho do pulo que daria, e se lá embaixo haveria uma superfície macia e acolhedora, ou rochas duras que apenas lhe trariam dor, como tantas vezes tinha acontecido.
Olhou para o mais sábio e sorriu, expressando naquele gesto a aceitação do que fora proposto, e em resposta obteve também um sorriso, daquele que tão pouco reagia daquela forma, e que com sinceridade revelava que também se dispusera a mudar. Sentiram ambos, um diante do outro, a segurança necessária para acreditar na promessa que faziam, e para se comprometerem a cumprir suas partes no acordo.
E assim, o cérebro aceitou sentir, ao invés de apenas raciocinar.
E assim, o coração resolveu pensar, para melhor poder amar.
Banquete dos Pecados
O salão estava iluminado e ricamente adornado com uma decoração luxuosa e cheia de detalhes, mesclando os tons extravagantes que coloriam as cortinas de seda, com candelabros, talheres e pratos quase tão dourados quanto a luz do sol, além de taças de cristal que resplandeciam nos rostos dos presentes, dando ao lugar uma aura de sonho misturada à descrição exagerada da residência de alguém pedante e vaidoso.
No chão cuidadosamente encerado, que de tão límpido chegava a refletir a imagem dos passantes, tapeçarias escarlates se espalhavam aqui e ali, decoradas com almofadas das mais variadas cores, bordadas com fios de ouro, que ampliavam a atmosfera de excentricidade do lugar. No centro do salão, uma enorme mesa, igualmente esdrúxula, ocupava pesada e exageradamente o centro do recinto.
Em sua superfície, pratos e mais pratos da mais variadas guloseimas se multiplicavam, dividindo espaço com a prataria brilhante e com inúmeras garrafas de um vinho tão forte e aromático que inebriava tão logo alguém lhe dirigisse o olhar. A um canto da mesa, isolada e concentrada apenas no teor dos pratos, estava uma matrona de enorme tamanho, com as faces ruborizadas e rechonchudas, que brilhavam com o suor decorrente do esforço que fazia para alcançar quase ao mesmo tempo todas as comidas que pudesse levar ao mesmo tempo à sua boca ávida e insaciável.
Ofegante, a enorme mulher parava de mastigar apenas para respirar, e tão logo recuperava o fôlego voltava à avidez de seus ataques contínuos às carnes, frutas e demais alimentos que se punham à sua frente. De onde estava ela era observada não apenas pelos demais convidados impressionados com aquela gula irrefreável, mas também por olhos frios e reprovadores de uma senhora magra e abatida, quase descarnada, cuja pele pálida parecia esticar-se a ponto de romper-se enquanto cobria a face ossuda e austera.
O olhar frio e reprovador dividia seu foco entre a matrona que fartava-se incansavelmente e a pompa e exagero facilmente constatados na mesa e na decoração do enorme salão. “Quanto desperdício”, pensava consigo, balançando negativamente a cabeça de uma forma tão lenta que era quase imperceptível. “Quanto gasto desnecessário para encher bocas alheias, quando tudo isso poderia ser guardado e acumulado em um bom, frio e silencioso reservatório”, e pensando naquilo lembrou-se que ao menos não teria de gastar com comida em virtude do jantar do qual participava, o que fez com que sua boca fina e cinzenta se movesse em um rápido e discreto sorriso de satisfação.
Um pouco mais ao longe uma jovem ricamente adornada corria os olhos pelo salão, pela mesa, pela comida e decoração de todo aquele lugar. Em seu olhar chispava a faísca do desagrado, e sua boca revelava um esgar de desdém, pesando e julgando tudo o que ali havia, e comparando o que via com suas próprias posses. Mas o desprezo que demonstrava externamente era apenas uma máscara, um disfarce para cobrir o que de fato sentia em seu coração, a vontade pura de que tudo aquilo fosse dela, e uma vez que não fosse, ela desdenhava do que enxergava, invejando fervorosamente aquela que a tudo preparara.
Sentada exatamente à sua frente, mas sem reparar na companheira de mesa, na comida ou na decoração, uma mulher escandalosamente vestida observava os demais convivas com um desejo ardente no olhar. Em seu corpo, que mal era coberto pela indumentária quase que inteiramente transparente que escolhera, um fogo abrasador corria, fazendo com que uma inflamada e quase que descontrolável vontade ardesse por dentro e por fora.
Bebia o vinho com olhares e gestos lânguidos, provocadores, chamativos e convidativos, atraindo com suas belas feições e corpo voluptuoso os olhares dos homens que ali estavam, e o ódio das demais mulheres, parecendo agradar-se de cada sentimento gerado nos outros presentes.
Além de atrair os olhos de homens e mulheres, gerando os mais diversos sentimentos, ela era observada também por uma de suas irmãs, que a fitava com um olhar de desgosto e raiva, julgando inapropriado o modo como se vestia, como se portava e como vivia de maneira inteiramente luxuriante. Mas não condenava apenas ela.
Com uma irritação crescente abominava a forma como as outras irmãs se portavam. Uma comendo como se o amanhã não existisse, empanturrando-se como se a comida do mundo inteiro fosse obliterar-se em um piscar de olhos. A outra, ávara e sovina, guardando tudo para si e não dividindo nada com ninguém, nem ao menos um copo com água, sempre alegando que o desperdício era o retrato de uma alma pobre.
A terceira, uma invejosa de mão cheia, sempre desejando o que os outros tinham sem ao menos dedicar-se para alcançar também tais objetivos. Ao invés disso, desdenhava e minimizava as posses alheias como uma forma de disfarçar o desejo que ardia por dentro, de ter tudo aquilo para si mesma.
Irritava-se ainda mais por considerar-se a mais sensata de todas, e como tal, ter que observar tudo aquilo, e o que era pior, obrigada a conviver com as demais simplesmente pelo grau de parentesco.
Aquilo a irritava, a aborrecia, a enchia de desgosto e a deixava constantemente irada, impaciente e agressiva. Sequer gostaria de estar ali. Queria ir embora, mas ainda tinha que esperar as demais, que não tinham chegado, o que apenas a deixava ainda mais raivosa do que já estava.
Enquanto remoía a raiva e desgosto que sempre andavam com ela, sua atenção foi chamada repentinamente pelo toque de um sinete, que silenciou os demais convidados, anunciando que a anfitriã acabara de chegar. No topo da escada que se posicionava ao fundo do salão, uma bela mulher surgira. Diante da sua visão os convidados soltaram uma quase muda exclamação, admirados com sua beleza e encantamento.
Os cabelos estavam cuidadosamente arrumados, como se tivesse passado horas, talvez até dias naquele procedimento. Em seu corpo, pousava o mais belo vestido que já tinham visto, e joias ricas e brilhantes fulguravam em seu pescoço e braços finos e delicados. A imagem daquela mulher era hipnotizante, atraindo os olhares e a admiração de todos, e a tudo, do topo da escada, ela percebia, vaidosa e cheia de orgulho, parecendo alimentar-se do sentimento que causava nos demais.
Ria por dentro, satisfeita da impressão causada, e rápida, mas graciosamente, desceu as escadas para logo chegar à mesa e absorver dos demais os elogios à sua beleza, à riqueza que rodeava o lugar onde morava, e o banquete que mandara organizar. Sentou-se no lugar de honra, rodeada pelos admiradores, e plena de felicidade, ela envaidecia-se com as loas recebidas por todos, sempre desejosa por um pouco mais daquilo.
Enquanto era agraciada com os elogios pelos quais tanto ansiara, ela teve sua atenção chamada pela voz áspera e irritada da irmã, aquela que nunca, em toda sua vida, vira de bom humor.
- Não sei como suporta esses bajuladores grudentos e desagradáveis, falsos e interesseiros. Mascarados que vivem apenas para adular, e satisfazem-se com uma migalha de atenção em resposta.
- A única desagradável aqui é você, minha irmã. – Disse a bela e envaidecida anfitriã. – Eles apenas estão reconhecendo meus dotes e talentos. E quanto a serem bajuladores, antes isso do que ser alguém que vive irritado e de mal com a vida.
- Melhor ser irritada e sincera, do que falsa e cheia de dedos e de caras.
A anfitriã ignorou aquele comentário e correu os olhos pela mesa, contando uma a uma as irmãs que convidara, mais para que vissem e se remoessem de sua beleza e sucesso do que pelo real desejo de tê-las ali por alguma afeição que por elas possuísse.
- Estamos em seis. – Comentou com a raivosa irmã que estava próxima a ela. – Acho que está faltando alguém.
- E quem haveria de ser? – Disse com o desagrado estampado na voz a que parecia viver de mal com a vida. – Senão aquela preguiçosa? É tão lerda que é capaz de chegar no final da festa, isso se tiver disposição para vir. É tão esmorecida que suspeito que viverá mais que nós todas, pelo simples fato de ser relaxada demais para dar-se ao trabalho de morrer.
- Não sei se morrerá por último. – Respondeu a anfitriã. – Mas desconfio que já temos uma forte candidata a ser a primeira. – E moveu o rosto, indicando a volumosa irmã que se punha a um canto da mesa, devorando incansavelmente o que havia ao seu alcance.
- Melhor morrer me deliciando... – Retorquiu a comilona, com a boca ainda cheia de comida. – Do que acabar a vida magricela e de barriga vazia e armário cheio, como essa avarenta aqui. – E com uma enorme coxa de galinha que segurava em uma das mãos, apontou para a outra irmã, que internamente se queixava dos enormes gastos expendidos pela anfitriã para a realização daquela festa. A avarenta, se ficou ofendida, guardou para si mesma o desagrado da crítica recebida. Poupava tanto que sequer as palavras gostava de gastar.
- Vocês sempre brigando e discutindo por bobagens, quando tem tanta coisa boa para se fazer, e tantos prazeres para serem vividos. – Disse a que se vestia imoralmente, lançando um lânguido e desejoso olhar para um dos homens que estava sentado à mesa, provocador o suficiente para deixa-lo embaraçado.
- Conheço muito bem o tipo de coisas que gosta de fazer, e se acha que são motivo de orgulho, então sua mente de fato é tão deturpada quanto seus atos. Veja a forma como se veste, como se porta. Não poderia cobrir um pouco mais do seu corpo, e agir com um pouco mais de respeito? – Disse a que media a tudo com desdém, mas que na verdade desejava secretamente as posses alheias.
- Não me envergonho em nada de meus atos. Se viver e aproveitar a vida é motivo de embaraço, então podem me taxar de sem vergonha, porque continuarei dessa forma enquanto me for permitido ser assim.
- Pode até ser. – A avarenta intrometeu-se. – Mas bem que seu conceito de “aproveitar a vida” podia ser um pouco mais discreto, e não tão exagerado.
- Cada um tem a sua medida. Uns usam demais... e outros não usam nada. – E lançou à avarenta um olhar zombeteiro. - Prefiro gastar até o último resquício do que tenho, a estocar tudo, como você faz, minha irmã. Seu excesso de zelo só servirá para que um dia você olhe para trás cheia de desgosto, por ter bens demais acumulados, e pouco tempo e energia para aproveitá-los.
Nas pausas entre as discussões, a invejosa encarava a vaidosa com olhos cheios de desprezo e raiva, enquanto essa última não aproveitava nada da festa por estar preocupada demais com a aparência, e se estava bela o suficiente para atrair os olhares de todos, que distraídos, já não a fitavam como antes. De outro lado, a volumosa continuava a entupir-se de comida, e já principiava a sentir os efeitos de seu excesso, com um princípio de enjoo que começava a aproximar-se.
A avarenta não comia, não bebia, e tudo que a ela chegava era discretamente guardado em sua bolsa. Não aproveitava o banquete, por estar preocupada demais com o quanto gastara para chegar até ali, e o quanto gastaria para voltar para casa.
Em seu lugar, com o fulgor crescendo dentro de si, a que era taxada de imoral pelas irmãs começava a ficar frustrada em virtude do crescente desejo que parecia inflamar-se cada vez mais, sem que alguém se oferecesse para apaga-lo. Apesar de ser bela e desejável, seu comportamento e olhares tórridos lançados em nítido oferecimento haviam chocado até mesmo os homens mais salientes da festa, que por ela perderam o respeito e se voltaram a conquistas que se mostravam mais difíceis e interessantes.
Irritada como sempre, a raivosa se enchia de impaciência, com um furor crescente pelo comportamento e banalidade das irmãs, enfurecendo-se ainda mais com a última, que ainda não chegara, e que a deixava constantemente frustrada em virtude de seu comportamento preguiçoso e procrastinatório.
Daquela forma a festa correu, e os convivas a tudo aproveitaram. Se esbaldaram com o vinho, comeram à vontade, dançaram, cantaram e divertiram-se, até que um a um, todos foram para casa. Já as irmãs...
A volumosa passou mal, e teve de sair mais cedo, regurgitando toda a comida que ingerira de forma excessiva. A oferecida foi embora frustrada, por não conseguir ninguém que satisfizesse a sua lascívia sem fim. A avarenta a nada aproveitou, e resolveu voltar a pé para casa, chegando em sua residência com os pés feridos e calejados.
A irada saiu da mesma forma que chegara, enfurecida, irritada, impaciente e intolerante, passando a noite em claro enquanto remoía na solidão de sua casa o quão fúteis e estúpidas eram as irmãs, sem dar-se conta da própria estupidez.
A vaidosa deixou de aproveitar a festa, preocupada demais com a própria aparência e com o julgamento alheio sobre as comidas e bebidas que oferecera, ficando frustrada por não ser observada como queria pelos convidados, que a tinham esquecido para divertir-se cada um à sua própria maneira.
Apenas um olhar ela atraía, a da irmã invejosa, que em segredo se consumia por dentro, desejando suas posses e sua beleza enquanto reunia uma força hercúlea para disfarçar sua gana com uma máscara de puro e fantasiado desdém.
E assim, cada uma deixou de aproveitar a festa, que chegou ao fim, deixando apenas o salão desarrumado e o coração desolado da vaidosa, que já não tinha ninguém além dela mesma para admirar a própria imagem e os próprios feitos. Apenas quando fechava as portas ela deu por falta de uma das irmãs, que apesar de convidada, não se deu ao trabalho de comparecer.
“Aquela preguiçosa”, pensou consigo. “No dia que se der ao trabalho de fazer algo, o sol nascerá no oeste e os rios correrão para trás.” E saiu, frustrada para recolher-se com sua solidão.
Longe dali, voltando paras suas casas, felizes e satisfeitas por terem aproveitado uma ótima festa, outras sete irmãs caminhavam de braços dados, brincando e divertindo-se umas com as outras.
Uma era naturalmente bonita, mas não dava muita importância à própria imagem. A outra, era calma como uma lufada de brisa em uma tarde de verão. A terceira dividia com as demais um pedaço do bolo que levara, afirmando que não valeria à pena desperdiça-lo guardando-o em um canto escuro de sua bolsa.
Outra recusara o bolo, satisfeita por ter comido o suficiente na festa, seguida pela que feliz, admirava a beleza e espontaneidade das irmãs, orgulhosa por serem tão lindas e felizes. A quinta sorria, contente por ter conhecido um pretendente naquela noite, que ficara admirado com o respeito que ela se dera, em momento algum se oferecendo como uma qualquer.
E à frente delas, puxando a todas com sua animação, estava a mais disposta, a mais ativa e a que tinha mais atitude, rindo alto, pulando e divertindo-se, como se o cansaço e a preguiça não pudessem atingi-la. Aquelas sete irmãs, diversamente das outras sete, que haviam perdido a festa em excessos e discussões, sabiam de verdade como aproveitar a vida.
Quanto às demais, a gula, a ira, a inveja, a luxúria, a vaidade, a avareza e a preguiça, continuaram infelizes, e espalhando a infelicidade aos que com elas convivia. E a quem com elas ainda insiste em conviver.
Música de outro mundo
Há muito tempo, em um longínquo ponto do infinito estrelado, houve um povo que já era antigo quando este mundo ainda era novo. Naquele local distante do espaço sem fim uma civilização nascera, crescera e chegara ao seu ápice, vivendo em um estado avançado de tecnologia que nem as mentes de alcance mais amplo conseguiriam imaginar.
Ali o povo alcançara os estágios mais altos de desenvolvimento não apenas material, mas também psíquico, e já não existiam conflitos ou guerras, reinando entre eles a paz e o entendimento, muitas vezes alcançado através de um recurso que os unia e acalmava, que surgira em tempos distantes e se desenvolvera até o grau máximo de sua evolução, um recurso que advinha de seus sentimentos mais íntimos, mais harmônicos e mais criativos.
Enquanto se espalhavam pelas estrelas, e cientes da infinitude do universo que os cercava, aquele povo, decidido a não guardar apenas para si, mas também partilhar seu conhecimento com as civilizações do espaço profundo, enviou diversas cápsulas com os tesouros que a sabedoria adquirida por milênios os fizera desenvolver.
Lançadas ao cosmos, as cápsulas percorreram o infinito silencioso por um tempo imensurável, um pequeno ponto brilhante viajando em meio a uma infinitude de estrelas, passando por planetas desertos, galáxias distantes e destroços do que um dia haviam sido mundos habitados por vidas que haviam se tornado apenas um eco na memória do universo.
Milênios se passaram, contados do dia em que aquele tesouro específico fora lançado ao infinito, até que a cápsula adentrou em uma galáxia desconhecida e entrou na rota de um mundo jovem pertencente a um universo antigo, e para lá dirigiu-se, penetrando em sua atmosfera como uma esfera fumegante e mergulhando no planeta, descendo com avidez e chocando-se com o solo com um impacto que reverberou pelas estruturas da terra.
Na contagem do povo que ali habitava, aquele mundo estava no século XX, numa década que haviam numerado de cinquenta.
A queda ocorreu quando ainda estava escuro no ponto mais ao sul de um país que ficava ao norte, em meio a um descampado que ficava nas proximidades de fazendas tomadas por plantações que se espalhavam a perder de vista, mas o som que ecoou pelos campos não foi percebido pelos poucos habitantes que ressonavam àquela hora da madrugada. À exceção de um.
Em um dos terrenos, sentado embaixo de uma árvore, diante de uma débil fogueira que já se encontrava no fim de suas forças, um jovem tentava agasalhar-se da melhor forma possível. Com seu velho casaco de lona, já rasgado em diversos lugares e puído em outros, ele alternava movimentos em que esfregava os braços e soprava as mãos em concha, tentando afastar do corpo o frio que fustigava seus ossos.
Não conseguira abrigo naquele lugar, chegando a ser enxotado de algumas casas onde pedira guarida em virtude do insano incômodo que a cor de sua pele causava nos moradores, que o temiam e a ele se achavam superiores tão somente pela tonalidade que predominava em sua tez. Acostumado àquele tipo de humilhação, ele vagara durante o resto do dia, até encontrar aquela árvore frondosa em meio a um matagal, onde calculou que conseguiria abrigo, senão do frio, ao menos da chuva, se a chuva caísse.
Mas a única coisa que veio do céu naquela noite foi o estranho fogo que vira despencando do firmamento, seguido do som reverberante e assustador, que chegara aos seus ouvidos como o eco de um trovão que ribombara à distância. Ao ver o clarão ele ergueu-se de um salto, expulsando de imediato o frio que lhe tocava a pele constantemente com seus dedos gélidos e incômodos.
Com a garganta seca e fria ao ponto de sentir uma ardência a toma-la, ele fitou o fogo que cercava o local da queda com olhos cheios de espanto, e ali permaneceu parado, tentando entender o que havia acontecido enquanto ao mesmo tempo se perguntava se deveria ir até o local e ver ele mesmo do que se tratava.
Movido por aquele pensamento, ele sentiu a força e o controle retornando às pernas, e quando deu por si já começara a caminhar em direção ao local do impacto. Mas repentinamente lembrou-se de algo que o fez voltar rapidamente para onde estivera sentado ao pé da árvore. Com o máximo de rapidez que o nervosismo e o frio lhe permitiram ter, ele guardou na caixa a Gibson que carregava para todos os lugares. Seu único bem de valor, e sua única companheira na caminhada pelas estradas da vida.
Passara boa parte da noite com ela, a dedilhando e tirando de suas cordas os sons que gostava de chamar de sua “conversa íntima” com aquela amiga inseparável, até que o frio tornou-se insuportável demais para que seus dedos permanecessem fora do casaco de lona. Fazia um bom tempo que daquelas longas conversas ele tentava colher palavras novas, que trariam algo que nunca fora ouvido naquelas paragens, ou em lugar algum do mundo.
Chegara a criar o esboço de algo, um novo som, um novo ritmo, mas faltava algo, como uma palavra que chega à ponta da língua e ali permanece até que a mente se recorde dela e a lance boca afora, cheia de entonação e significado. Algo que estava guardado dentro dele, mas que ainda não havia encontrado. Então veio o clarão, seguido do impacto que reverberara pelos campos até perder-se em seus ouvidos.
Guardou carinhosamente a Gibson na caixa, fechando-a com igual cuidado, e virou-se para correr em direção ao local da queda. À medida que corria era invadido por um misto de sensações, que mesclavam medo, ansiedade, curiosidade e fascinação, mas a vontade de descobrir o que acontecera suplantava a todos os sentimentos, e aquilo o impulsionou a continuar.
Chegando lá ele sentiu o calor causado pelo fogo que se espalhara com a queda, mas que já se extinguia por não ter nada mais a consumir. Uma grande extensão de capim carbonizado se espalhava, formando uma espécie de estrada escura que marcava o caminho em que o objeto fizera seu percurso final antes da queda, até chegar a um ponto onde um enorme monte de terra negra se formara, deformando o terreno no local.
A fumaça que saía de trás do acúmulo de terra e as labaredas do fogo que se apagava aos poucos acusavam que era ali que o objeto que caíra deveria estar, ou ao menos o que restava dele. Lentamente ele dirigiu-se ao monte, afastando com uma das mãos a fumaça que o rodeava e chegando, por uma ou duas vezes, a tossir quando ela invadiu de forma mais violenta seus pulmões.
Tirou o velho lenço que carregava no bolso do casaco e com ele cobriu a boca e o nariz, conseguindo com isso caminhar sem maiores problemas pelo monte de terra, e assim que chegou ao topo sentiu uma parte do terreno afundar sob seus pés, o que fez com que se balançasse por um momento na tentativa de se equilibrar. Ao conseguir firmar-se viu que uma das pedras que estavam no terreno rolou para dentro do buraco e bateu em algo, causando um ruído que chegou aos seus ouvidos como um som metálico.
O balanço causado pela movimentação do monte de terra, somado à imagem da pedra rolando para dentro do buraco prenderam sua atenção por alguns momentos, e uma antiga expressão que ouvira anos antes lhe veio subitamente à memória... “Rock and roll”, uma gíria que em seu meio significava “balançar e rolar”.
Aquilo dançou em sua mente, como uma bailaria que sobe ao palco e prende a atenção da plateia enquanto baila sob a luz dos holofotes, e por mais que parecesse uma lembrança sem importância, permaneceu por alguns instantes como dona de seus pensamentos, fazendo até mesmo com que esquecesse momentaneamente o estranho objeto que caíra do céu.
Voltou então sua atenção para o que havia dentro do buraco, tentando desvendar do que aquilo se tratava enquanto apertava os olhos desejoso de enxergar melhor o conteúdo que podia vislumbrar cada vez menos, conforme o fogo consumia seus últimos recursos e se extinguia para apagar-se na escuridão. Com cuidado para não desequilibrar-se uma vez mais ele desceu aos poucos a parte do monte que levava ao interior da depressão aberta com o impacto.
Conforme descia mais, e com a dissipação da fumaça e os olhos que se acostumavam à escuridão, ele passou a conseguir enxergar uma forma jazendo dentro do buraco. Aproximou-se mais um pouco, e o objeto ganhou contornos mais nítidos, até mostrar-se a ele como uma estranha forma oval, a princípio opaca, mas logo em seguida com uma tonalidade de cinza, que mesmo no escuro ofereceu um brilho débil, porém perceptível.
Mais curioso do que amedrontado, e julgando ser aquilo um pedaço de fuselagem de avião ou algo do tipo, ele estendeu a mão para tocar o estranho objeto, e assim que encostou em sua superfície sentiu um estranho formigamento no braço, e viu nitidamente todos os poros de sua pele eriçando-se até formar pequenos caroços, como se uma estática perpassasse por seu corpo.
Então repentinamente um estranho som saiu do objeto, e a superfície, que até aquele momento não apresentava nenhuma linha ou marca em toda sua extensão, abriu-se de repente, lançando uma forte luz sobre seu rosto, que o atordoou e turvou sua visão, deixando-o momentaneamente cego com a repentina luminosidade em toda aquela escuridão.
Com um grito de pavor ele puxou de uma vez o braço e recuou, debatendo-se em busca de apoio, mas tudo o que conseguiu foi perder o equilíbrio uma vez mais, e balançando-se como uma pipa em meio à ventania deu dois passos para trás e rolou para um canto do buraco. “Rock and roll”, pensou novamente, e estranhou que aquela expressão surgisse uma vez mais em um contexto tão estranho como aquele.
Sentado no chão, e com a vista parcialmente turvada pelo borrão que o clarão causara, ele afastou-se temeroso, mais chutando areia e pedras do que efetivamente conseguindo afastar-se. Milhões de ideias corriam por sua cabeça, na tentativa desesperada de dar uma explicação ao que estava acontecendo, mas duas expressões tomaram destaque em sua cabeça confusa, e uma delas o deixou ainda mais assustado. “Superman”, e “homens do espaço”.
Apesar de não ter concluído os estudos, ele sempre gostara de livros e histórias, e já lera alguns quadrinhos que falavam de um bebê vindo de outro mundo, que caía com sua nave em uma área rural do Kansas, para ser encontrado e adotado pelos Kent, um simpático casal que não conseguia ter filhos. Mas também já lera sobre algo que à época lhe causara verdadeiros arrepios, e lhe tirara o sono durante algumas noites. O caso Roswell, sobre uma nave com homens do espaço que caíra apenas uns poucos anos antes na cidade do mesmo nome, gerando histórias de todos os tipos, e quase todas elas aterrorizantes.
Mas foi a lembrança de um livro que lera anos antes que o deixou apavorado. “A Guerra dos Mundos”, de H.G. Wells, uma história sobre uma invasão marciana à terra, onde os extraterrestres queriam dizimar a raça humana, e chegavam em nosso planeta exatamente daquela forma, como objetos caídos do céu.
“MARCIANOS!”, gritou, afastando-se ainda mais até bater com as costas na parede de areia, vendo que chegara ao limite do afastamento, e a não ser que escalasse o buraco não teria mais para onde fugir. Com a visão já um pouco mais recuperada, o rapaz reuniu o pouco de coragem que ainda tinha e levantou-se de um pulo, tomando um impulso que faria inveja a qualquer felino e agarrando-se à beirada do buraco, enfiando no chão queimado os dedos que dedilhavam a guitarra Gibson que guardara embaixo da árvore e tendo tempo para imaginar o quão útil o medo é nesses momentos, dando a agilidade que em outras oportunidades ele não teria.
Quando conseguiu sair do buraco começou a correr, já imaginando que algum ser do espaço sideral estaria em seu encalço, mas tudo o que conseguiu ouvir foi um estranho som surgindo do local que acabara de deixar, um som que mesmo em meio ao pavor, chamou de uma forma única sua atenção. A princípio o ruído chegou aos seus ouvidos abafados pelo barulho do próprio coração que disparava em seu peito, mas aos poucos tornou-se mais nítido, deixando-o curioso o suficiente para olhar para trás enquanto corria feito um louco.
Sem conseguir ver o terreno à frente ele tropeçou novamente e esborrachou-se no chão, mas ao ver que ninguém o seguia, e ouvindo o estranho som que ecoava pela noite, ele ignorou os machucados e até mesmo o medo, e ali, parcialmente virado no solo, com o olhar vidrado fitando o buraco, e com ouvidos atentos, ele espantou-se ao constatar que o ruído que ouvia era... uma melodia.
Não se moveu, mas permaneceu fitando o local da queda, curioso com o ruído que de lá saía, mas ainda assim cuidadoso o suficiente para prestar atenção em qualquer movimento que indicasse que algum homenzinho do espaço ou criatura semelhante estaria ali para pulverizá-lo, como lera nas histórias que o haviam deixado impressionado.
Mas depois de um tempo naquele estado de espanto e atenção, o medo foi dando mais espaço à curiosidade e à admiração com o que ouvia. Era de fato uma melodia, e algo que nunca ouvira em seus anos de música por todos os lugares em que andara. Mas havia algo nela, algo de familiar. Vasculhou uma vez mais na memória, e novamente não encontrou registro de ter escutado ninguém tocando algo do tipo em lugar algum.
Lentamente levantou-se e caminhou com passos reticentes até o buraco, tomando o cuidado de correr a vista por todos os cantos e de virar-se constantemente para averiguar o terreno. Mas tudo o que havia ali eram ele, as estrelas no céu, as criaturas que tocavam sua sinfonia noturna, e, claro, o estranho objeto que o deixara com os cabelos em pé e o coração na boca.
Cuidadosamente ele subiu novamente no monte de terra formado pela queda e esticou o pescoço pelo seu limiar, para ver uma vez mais o objeto que tanto o assustara. Ele estava ali, e agora que podia enxergar melhor pôde ver que era metálico, na verdade cromado. Tinha uma forma oval, e parecia ser liso como pele de bebê. Também não mostrava nenhum amassado em sua superfície, mesmo com o tamanho do impacto que sofrera, e não tinha nenhum sinal de que estivesse chamuscado pelo fogo que se formara, mas que já se extinguira.
Mas o que mais lhe fascinava era a melodia que saía de lá. O objeto se abrira em duas partes em seu centro, de onde escapava a intensa luz que o cegara momentaneamente minutos antes, e dentro havia outro dispositivo, também cromado, o qual ele não soube identificar, mas que era exatamente de onde saía aquela estranha e fascinante música que não lembrava ter ouvido antes em lugar algum, mas que ainda assim, estranhamente estava presente em sua memória.
Ali ele permaneceu parado, sem saber o que fazer além de observar aquele recipiente e fascinar-se com o som que dele emanava, ficando daquele jeito por um tempo que não soube definir, até que sentiu um estalo na mente, como o que sentem as pessoas que lembram daquela palavra que estava na ponta da língua, e que satisfeitas consigo mesmas a desvendam e a pronunciam.
Repentinamente ele deixou o monte e pôs-se a correr em direção a árvore sob a qual estava quando o objeto caiu, escapando de tropeçar duas vezes durante o percurso, tamanha era a vontade de chegar ao local. Chegando lá ele agarrou a haste da caixa de sua guitarra, e dando uma meia volta inteiramente descontrolada ele correu de volta, de forma estabanada e nada graciosa, como uma criança faz quando quer vencer uma corrida a todo custo.
Chegou ao local ofegante e abriu rapidamente a caixa, esquecendo o cuidado que sempre tomava com o objeto e por pouco não derrubando no chão a guitarra, seu único bem de valor. Levou-a às mãos, observou o braço dela, percorreu os dedos pelas finas cordas de aço, às quais já conhecia de cor, passou a mão por cada traste, por cada casa, contornando depois o corpo de sua companheira e acariciando sua silhueta.
De olhos fechados, ele ouviu atentamente a melodia que saía do estranho objeto caído do céu, e então lembrou onde o ouvira antes. O ouvira em sua própria cabeça, nas noites onde se conectava de forma mais íntima com sua criatividade, na busca por compor por um ritmo novo, ficando à beira de encontra-lo, mas sem jamais conseguir. Ele sempre estivera lá, em sua cabeça, em seu coração, oculto, escondido, esperando apenas ser encontrado, como a forma idealizada por um escultor que busca apenas a retirada de uma última lasca para encontra-la, mas sem saber ainda o local exato para fazê-lo.
Ela estivera sempre ali, como a palavra na ponta da língua, como a imagem ideal, como o último retoque de uma pintura, sempre lá, à espera de que a encontrasse e lhe desse vida, lhe fornecesse uma saída para ser mostrada ao mundo. Acessando sua memória mais ampla, a que sempre estivera ali escondida, e conectando-se a ela da forma que não conseguira fazer antes, ele acompanhou a melodia que escapava do objeto, e unindo-a à sua criação dançou os dedos pela guitarra, acariciando as cordas e tirando do objeto o som que estava guardado em sua mente.
Os dedos correram pelas casas, as cordas choraram e gritaram, e uma melodia rápida e contagiante saiu do instrumento, fazendo seu coração bater mais forte, seu sangue ferver, e seus pés criarem vontade própria, sentindo vontade de correr pelo solo sem parada ou descanso. Ali ele retirou a música que estava presa dentro de seu âmago, soltando-a aos quatro cantos, e mesmo sem o som elétrico que ouviria se a guitarra estivesse conectada à caixa, o que escutou foi exatamente o que tanto tinha buscado.
Em uníssono com o som que saía do objeto que caíra do céu ele tocou sua melodia, irmãs, idênticas, uma vinda de um lugar com o qual ele jamais sonhara, a outra saída dos seus mais íntimos sonhos e sentimentos. No escuro da noite fria, sob um céu tomado de estrelas ele fez a guitarra gritar, e naquela noite algo novo nasceu.
Enquanto tocava, colocando para fora os sentimentos que estiveram retidos por tanto tempo ele lembrou da expressão que viera à sua mente quando se desequilibrara e caíra se balançando, rolando pelo chão de terra chamuscada. “Rock and roll”, e sorriu, percebendo o encaixe perfeito que ali se fizera.
Na beira do monte de terra tocou, e enquanto tocava dançou, e enquanto dançava sorriu, e enquanto sorria criou. Naquela noite nascia nesse mundo algo que viera dos confins do espaço, e dos lugares mais profundos de sua mente, algo novo, algo cheio de energia, novo e ao mesmo antigo, claro e ao mesmo tempo escuro, como as estrelas brilhantes que brilham na escuridão do espaço. Naquela noite, nasceu o rock and roll.
Com sua guitarra nas costas o jovem continuou sua caminhada, e mostrou ao mundo o que lhe fora revelado, em sua mente, e também diante de seus olhos. Levou consigo a cápsula, que nunca foi encontrada, mas compartilhou com todos o que havia dentro dela, e que também sempre estivera dentro dele.
Décadas depois um disco com gravações e informações sobre a terra foi lançado ao espaço, para que um dia outras civilizações pudessem conhecer um pouco dos habitantes desse mundo. Dentre essas gravações, estavam várias músicas, e uma delas, Johnny B. Good, fora composta por um jovem que usava uma guitarra Gibson, e que trouxera à terra um ritmo novo, um som que nunca fora ouvido antes.
A cápsula continua a viajar pelo espaço silencioso, pela vastidão de sua quietude, pela imensidão calma de um oceano de estrelas, para que um dia seja encontrada por alguma outra civilização que ali habite. Talvez alguma que reconheça, na música daquele jovem, o mesmo som que a cativou.
Rock and roll.
Resposta
Mais uma tarde de lembranças. Mais uma tarde observando as coisas como eram atualmente, apenas para recordar como elas tinham sido um dia. Da janela da frente ele fitava a rua e os passantes, mesclando o passado ao presente enquanto observava o mundo e ao mesmo tempo rememorava dias que há muito tinham se tornado registros amarelados no baú de sua mente.
Moveu os olhos enevoados, de um castanho desbotado e quase incolor, passando-os da rua que via à frente para as mãos que repousavam sobre o seu colo coberto com uma manta para preservar os velhos ossos do frio que passeava lá fora. Em outros tempos aquela teria sido uma tarde agradável de inverno, onde ele teria usado uma roupa leve para sentir o frescor do vento a tocar-lhe a pele, mas a velhice a transformara em um inimigo em potencial, podendo prejudicar pulmões e ossos com uma simples lufada daquele mesmo vento que um dia lhe fora afável. Aquilo era algo que lhe irritava profundamente.
Fitou as mãos com olhos turvos, que mal podiam enxergar as cores e detalhes como um dia tinham feito, mas ainda assim viu como estavam marcadas e enrugadas. Mãos antigas, que tinham vivido o suficiente, que tinham feito o suficiente. Fechou-as e abriu-as lentamente, finas, gastas, cansadas, e sentiu uma leve dor percorrendo os ossos por causa da artrite que chegara sem ser convidada e recusava-se a ir embora.
Respirou fundo ao constatar como o tempo passara, e como o fizera tão rápido, chegando a aparentar que tinha sido em um mero piscar de olhos. Um dia fora jovem, forte e cheio de vigor. Agora já não era, e tudo o que sentia era que tinha de fazer um esforço hercúleo para desempenhar atividades que dantes nunca tinham lhe parecido oferecer qualquer dificuldade.
Olhou novamente para a rua, para as pessoas que passavam, para os jovens que se deslocavam rapidamente para resolverem seus próprios negócios, para viverem de sua forma o tempo que lhes fora dado, e aquele pensamento repentinamente ocupou sua mente. O tempo que lhes fora dado. E se o tempo lhe fosse dado novamente, o que ele faria com um novo estoque de tão precioso recurso?
Com um novo esforço ele rebobinou nos recônditos de sua mente o velho filme de sua memória, que de início realmente lhe pareceu um antigo rolo de imagens, passando de forma confusa, por vezes lentamente, como se a fita estivesse engasgando, por vezes de forma tão rápida que vozes e diálogos se transformavam em sons sem sentido algum, até que o quadro estabilizou, e uma a uma ele revisitou as lembranças que ainda conseguiam encontrar naquele velho armário.
Passos, sons, imagens, cenas de algo que parecia ser um filme há muito gravado, personagens que haviam passado no palco de sua vida, alguns partindo, outros permanecendo, um ou outro por vezes entrando e saindo de forma sucessiva, até uma última despedida, por vezes dolorosa, por vezes cheia de alívio. Mas o que mais lhe marcava naquele momento eram as recordações do que havia deixado para trás. Do que começara e não terminara, e dos caminhos dos quais desviara por opção própria ou em decorrência da forma como as coisas tinham acontecido.
Naquele instante uma pergunta surgiu em sua mente. Um questionamento que não aparecia pela primeira vez, mas que se tornara recorrente nos últimos tempos. Nos tempos de sua velhice. Era como se a cada visita feita ao passado, a cada momento em que resolvesse pôr no vídeo uma vez mais aquele antigo rolo de filme, ele se deparasse com um cômodo tomado de penumbra onde a única coisa que podia ver era uma enorme interrogação, assombrando-lhe as ideias e retirando de seu peito o pouco de paz que desejava ter naquela fase da vida.
Uma enorme interrogação que parecia crescer a cada visita, e que sempre marcava o término de uma mesma pergunta. “Teria feito diferente?” E agora, como se aquela questão incômoda já não fosse o suficiente para perturba-lo, uma nova surgira naquela tarde. “O que faria se o tempo que passou lhe fosse dado de volta? Teria feito diferente?”
Lembrou-se então de algo que seu avô lhe dissera quando ele ainda era um jovem cheio de sonhos, para quem o tempo nada mais era do que um detalhe a ser contornado, e que parecia sempre estar ao seu favor. “A velhice, rapaz, é uma época marcada pelas lembranças. Podem ser boas e agradáveis, assim como podem ser tristes ou dolorosas. Podem ser ambas as coisas, e isso é um fato inevitável. Mas se existe algo que transforma esse período em algo desagradável, é o arrependimento. Não das coisas ruins que você fez. Arrepender-se dos erros é um sinal de evolução, e muitas vezes um motivo de alívio. O que torna a coisa um problema, meu jovem, é quando passamos a nos arrepender das coisas que não fizemos em nossa jornada, porque é nesse momento que surgem as grandes interrogações, aquelas que não podem ser respondidas, mas apenas confrontadas com dúvidas e suposições. São os famosos, e se? Uma das perguntas mais perturbadoras com a qual podemos nos deparar. E se? É com elas que devemos ter cuidado, garoto, especialmente na última idade da vida”.
Aquilo não fizera sentido algum para ele na época, assim como não fizera quando ele conhecera a esposa, quando casara, quando vira nascer o filho, quando viajara para conhecer o local que sempre sonhara, quando construíra a casa ideal, quando a neta nasceu, quando se aposentara, assim como em vários outros momentos. Mas agora, em que as mãos estavam frágeis, a visão turva, o corpo cansado e a memória abarrotada de lembranças, aquela observação parecia fazer todo o sentido do mundo, tão lógico como dois mais dois são quatro ou como a luz do sol surge para iluminar o mundo.
Os “e se?” estavam surgindo, e a cada dia novas interrogações apareciam diante de seus olhos para assombrar-lhe a mente cansada. E se tivesse escolhido viver aventuras com outras mulheres que tanto desejara na juventude? E se tivesse tentado seguir a carreira que idealizava em seus sonhos mais silenciosos, aqueles que não compartilhava com ninguém? E se tivesse adotado a coragem de ter trilhado caminhos diversos dos que os que escolhera?
E se tivesse viajado mais, aproveitado mais, gastado e até ganhado mais? E se tivesse vivido de forma mais intensa, tudo teria valido a pena, ainda que tivesse sido por menos tempo? Por vezes achava que sim. Ao menos teria ido embora mais cedo, tendo aproveitado mais, ao invés de ter se tornado um velho fragilizado e cheio de lembranças e perguntas. Ao menos teria certezas ao invés de interrogações findando os perturbadores “e ses” que agora o atormentavam.
Enquanto se fazia essas perguntas ele virou-se, correndo os olhos turvos da rua para a sala, e por um momento sentiu o coração parando no peito enquanto um abismo parecia se formar dentro de sua barriga, dando-lhe a sensação de uma interna e repentina queda livre. À sua frente, sentado calma e pensativamente enquanto o fitava em silêncio estava outro homem, que aparentava ser tão velho quanto ele, que parecia ter vivido muito mais do que ele.
Levou a mão em garra ao peito, como se quisesse impedir com aquele gesto que o coração saltasse ou que o restante de vida que ainda possuía corresse dele, e sentindo um bloqueio se formando em sua garganta tentou falar, mas nada além de um sussurro sufocado saiu, em um som débil que se extinguiu no ar quando mal deixou sua boca.
- Q... quem é você? – Falou, quando finalmente reuniu forças para lançar fora as palavras.
O velho à frente dele permaneceu calado, fitando-o pacientemente, como se estivesse a analisa-lo, a pesá-lo, a medir-lhe não apenas por fora, mas por dentro também. Ele então passou a perguntar-se se alguém de sua família ou o cuidador que ficava responsável por sua guarda teria deixado entrar aquele homem pensando tratar-se de algum amigo ou conhecido seu, mas lembrou-se que era de conhecimento comum que todos os seus amigos já tinham falecido, ao menos os de sua época.
- Quem é você, e quem deixou você entrar? – A voz agora saía com mais facilidade, conforme a irritação mesclava-se à surpresa do medo. – Não lembro de você, e muito menos de ter convidado alguém ou de ter permitido que entrasse.
Novo silêncio, que serviu apenas para aumentar a revolta do velho. Passou então a chamar pela pessoa que os filhos tinham contratado para tomar conta dele, e diante da falta de resposta ele começou a apertar insistentemente o botão do dispositivo que acionava a campainha para chamar o rapaz que era seu cuidador. Nada. Após mais alguns segundos de revolta e nervosismo crescente, onde o medo causado pelo susto já dera inteiramente lugar à indignação, o homem à sua frente finalmente falou, com uma voz calma e profunda.
- Não adianta insistir. Ninguém virá.
Uma nova onda de temor passou pelo frágil corpo do velho, mesclando-se aos demais sentimentos que já se misturavam em seu interior, incluindo o súbito interesse que lhe tomou ao ouvir a profundidade da voz da pessoa à sua frente, que parecia ao mesmo tempo sábia e cheia de autoridade.
- E posso saber por que? – Perguntou quando a coragem voltou a ser suficiente para tanto. – Por acaso fez alguma coisa que eu deveria saber com a pessoa que toma conta de mim?
Ao terminar as palavras sentiu apreensão ao constatar que acaso aquele homem de fato tivesse feito algo com seu cuidador, poderia muito bem fazer o mesmo com ele. Aquele estranho também era velho, mas parecia mais forte, mais resistente. Para falar a verdade, não se lembrava de ver outro idoso com um porte daqueles, que denotava uma resistência sem tamanho. Ademais, na idade em que estava não sentia nem vontade e nem disposição para uma disputa física, fosse com quem fosse.
- Não fiz nada mais além do que faço desde o dia em que nasci. Não se preocupe com seu cuidador. Ele está bem. Digamos que dei a ele um... tempinho para descansar.
- E quem é você para entrar aqui sem permissão e dar ordens aos meus funcionários? – O velho alternava momentos de raiva e temor. Tinha vivido demais para preocupar-se em dosar as palavras em algum debate ou conflito, mas ao mesmo tempo estava vivo, e enquanto assim permanecesse sentiria a necessidade de preservação inerente a todo ser humano com um mínimo de juízo ou de senso.
- Eu sou apenas um passante, meu caro. E não dei ordem nenhuma a ele. Não vim a este mundo para determinar nada, mas apenas para assistir às determinações que as pessoas dão às suas próprias vidas enquanto passo por elas. Ou enquanto elas passam por mim. Enfim, como achar melhor.
- Não entendo nada do que fala, e muito menos entendo porque está aqui e o que pretende. Na verdade não tenho o mínimo interesse em saber. A única coisa que quero é que vá embora de uma vez. Não o convidei e nem permiti sua entrada, o que faz de você uma visita indesejada.
- Ah, mas aí é que está o engano. – Disse o velho, movendo-se na cadeira e aproximando-se do outro com um olhar cada vez mais penetrante. – Eu não sou indesejado. Diria até que quase todos me desejam, ainda que seja apenas um pouco de mim, e você é um deles.
- Já disse que não entendo nada das besteiras que fala, e muito menos toda essa ladainha de que eu o convidei. Nunca o vi na minha vida, e para falar a verdade, se depender de mim nunca mais vou querer vê-lo. Não o quero aqui e nunca o quis, então por favor, dê o fora de uma vez.
- No momento certo. No tempo certo. – E sorriu ao dar ênfase a essa última frase. – E quanto a me querer aqui ou não, posso garantir que todos os dias você me chama, me deseja e se pergunta o que faria se eu resolvesse lhe dar alguns instantes da minha atenção. Ou esqueceu das interrogações que aumentam a cada dia que passa?
O velho arregalou os olhos e calou-se, ficando sem qualquer reação, tomado pelo espanto causado por aquelas palavras. Era como se ao mesmo tempo alguém tivesse lhe dado um tapa repentino no rosto e descoberto seus segredos mais profundos. Fitou novamente aquele estranho à sua frente, agora perguntando-se com cada vez mais nervosismo quem ele era, de onde viera e o que fora fazer ali.
- P... pode ao menos dizer quem é você? – Foi tudo o que conseguiu falar entre o espanto e a apreensão.
- Quem sou eu? – O estranho sorriu. Um riso antigo, que parecia carregar todas as histórias do mundo. – Eu sou aquele que todos desprezam quando têm de sobra, mas que por mim anseiam quando fico escasso. Sou rápido como o pensamento para alguns, e lento como o movimento dos continentes para outros. Sou velho e sou jovem, sou ambos e não sou nenhum deles. Sou aquele que caminha em uma só rota, apesar do desejo de tantos para que eu tome o caminho contrário. Uns dizem que sou um devorador insaciável, com um apetite sem fim, e outros, que sou um construtor paciente, que reforma tudo em seu próprio ritmo.
- Nunca fui bom em conversar com quem fala por enigmas. – Limitou-se a dizer o velho.
- Enigma. – Disse o estranho, sorrindo com uma expressão pensativa. – Essa é uma das formas como a mim se referem. Quem sou eu? Você me pergunta. Eu sou aquele por quem você tanto tem ansiado. De onde eu vim? Do princípio. Para onde vou? Nem mesmo eu sei dizer. Quem sou eu? Eu sou o tempo, meu amigo, e estou aqui porque você me chamou. Porque você pediu por mim. Entrei como convidado, e acredito que não vai querer me expulsar.
O velho foi tomado por um misto de espanto e incredulidade, e repentinamente se viu invadido por uma enorme vontade de rir. Não sabia se enxotava aquele homem de sua casa ou se desatava em uma gargalhada que suspeitava que seria tão grande que provavelmente levaria seu frágil coração à falência. Na indecisão ele riu, de início com pequenos espasmos mais semelhantes a soluços do que a uma risada, mas depois deixou-se levar pelo ridículo do que acabara de ouvir, e passou a sorrir cada vez mais alto, chegando ao ponto de curvar-se e sentir a barriga começando a ficar dolorida.
Na sua frente, o estranho apenas o fitava, também com um ar divertido permeando sua expressão tranquila, parecendo não preocupar-se ou ofender-se nem um pouco com seu acesso de risos, e assim permaneceu até que as gargalhadas diminuíssem para um sorriso mais leve e pausado, que culminou com olhos lacrimejados sendo enxugados pelo velho.
- Tempo. – E deu mais um sorriso. – Então você é o tempo. Nossa, jamais tive a oportunidade de receber um convidado tão ilustre, e nunca imaginei que o tempo teria um “tempo” para me fazer uma visita. – E sorriu novamente, desta vez controlando-se para não ter um segundo acesso de gargalhadas. – Mas me diga senhor, o que o traz à minha casa nessa fria tarde de inverno?
- Já disse. Você me convidou.
- Ora, me dê um tempo. – Respondeu o velho, fazendo um gesto de desdém, mas logo em seguida percebendo o ridículo do que acabara de falar. – Aliás, reformulo. Não me faça perder o meu tempo. Confesso que foi bem engraçado o que falou agora há pouco, e que ganhei uma boa oportunidade de dar algumas risadas, mas isso já está ficando cansativo demais, então, ou me diz de uma vez o que quer, ou deixo de lado essa porcaria de botão e vou eu mesmo chamar a polícia para carrega-lo daqui.
- Entendo. – Disse o estranho, e logo em seguida ergueu o pulso em direção ao rosto e o fitou por alguns segundos. – Antes que eu vá vou lhe pedir um favor. O meu relógio parou, então pode por gentileza me informar que horas são?
O velho então olhou ele mesmo para seu relógio de pulso. A princípio estreitou os olhos, como se quisesse enxergar melhor o que via. Depois sua boca retorceu-se em um ângulo que levou os dois extremos dela para baixo, e logo em seguida ele deu algumas batidinhas no objeto com o dedo indicador, nitidamente confuso com o que se passava.
- Mas ora bolas, o meu parou também.
- Hum. – O estranhou fez a interjeição e ficou pensativo. – Pode então me dizer que horas está dando o relógio daquela igreja? Minha visão não é das melhores.
O velho voltou os olhos para a torre da Igreja que ficava a alguns metros de sua casa, e espantou-se quando viu que o relógio que ali havia também estava parado. Mas seu espanto foi ainda maior ao ver que na rua, nas calçadas e na praça ali perto tudo e todos estavam parados. Pessoas tinham estacado nas mesmas posições, sem mexer-se sequer um centímetro, lembrando manequins de lojas que tivessem sido repentinamente remanejados para fora dos estabelecimentos. Havia até mesmo um cachorro com a perna levantada ao lado de um poste, parado justamente no momento em que resolvera marcar seu território.
- Mas o que? Mas... o que é que está acontecendo aqui? – E olhou para o estranho à sua frente, que limitou-se a dar uma vez mais aquele sorriso cheio de paciência e ao mesmo tempo de sabedoria.
- O que está acontecendo eu já disse, cabe apenas a você acreditar.
- Mas isso é absurdo! O que me disse não faz sentido algum!
- Olhe lá fora novamente. – Disse o estranho, enquanto parecia checar despreocupado alguma pequena partícula intrusa em uma de suas unhas, para logo em seguida limpa-la.
O velho fitou novamente o exterior, e o mundo continuava parado, com as pessoas e animais na mesma posição. Nem mesmo o vento do inverno balançava as copas das árvores, que permaneciam incólumes naquele cenário, que lhe lembrava a imagem captada na pintura de um quadro. Então olhou novamente para o relógio, e os ponteiros continuavam no mesmo lugar, não tendo se mexido um milímetro sequer. Nervoso ele voltou a fitar o estranho, tentando encontrar alguma palavra para continuar declarando o absurdo daquela situação.
Mas tudo o que acontecera desde a chegada daquele homem fugia à normalidade com a qual estava acostumado. Desde sua entrada repentina e sem convite ou anúncio, até o estranho sumiço de seu cuidador, sempre solícito e prontificado a atender ao primeiro chamado. E agora, aquele cenário absurdo que se descortinava diante de seus olhos além da janela. Então, um pensamento atravessou sua mente, e fez com que seu sangue e seus ossos gelassem mais do que fizera o vento mais frio daquele inverno.
- Eu... eu estou morto? – Perguntou, sentindo a garganta secar a cada palavra pronunciada.
- Não, você não está morto... ainda. – Respondeu o estranho, concluindo a frase com algo que ao velho pareceu um discreto sorriso. – Você não está morto, não está louco e nem está vendo fantasmas. Apenas considere por um momento que o que digo é verdade, e faça de conta que acredita que sou o tempo, e que vim aqui porque tem pedido minha presença constantemente nos últimos anos.
O velho permaneceu calado, pesando aquelas palavras e tentando entende-las ao mesmo tempo em que tentava compreender a sequencia de fatos que se delineara nos últimos instantes. Em toda sua vida fora uma pessoa pragmática, e nunca se mostrara afeito a crenças em alucinações ou coisas fantásticas e sobrenaturais, pautando tudo o que via pela lógica dos fatos, mas agora nada parecia fazer sentido, e quanto mais buscava uma explicação, menos a encontrava, especialmente quando olhava janela afora e via a cena que ali se desenrolava.
Tentou por mais alguns instantes procurar uma explicação precisa para tudo aquilo, o que lhe pareceu durar uma eternidade, mas em dado momento resolveu dar-se por vencido, não por crer na veracidade daquilo, mas para ver até onde a situação ia para tentar colher daquilo alguma explicação que pudesse vir a afastar o absurdo do que se passava.
- Tudo bem. Certo. Façamos de conta que o que diz é verdade. – E calou-se por um momento, achando-se ridículo assim que ouviu suas palavras e pesou seu significado. Mas ainda assim prosseguiu. – Vamos fazer de conta que você é quem diz ser. Supondo que tudo não seja uma alucinação da minha velha mente. Então me diga, o que veio fazer aqui?
- Já disse, você me...
- Certo, certo! – Interrompeu impaciente o velho. – Já me disse isso. Eu lhe chamei. Mas não lembro de ter pedido sua presença aqui em momento algum.
- Ninguém lembra, apesar de me chamarem constantemente. Sempre que alguém pede um pouco mais de tempo, ou que suspira na solidão de seus pensamentos, pedindo para que os bons dias que um dia viveu voltem de alguma forma, ou mesmo quando se perguntam se o tempo que viveram de fato valeu à pena, elas estão me chamando. E você, meu caro, foi uma dessas pessoas.
O velho ficou pensativo, tentando puxar pela memória quando fizera uma daquelas coisas, não precisando ir muito longe para constatar não apenas que já tinha feito aquilo, mas que o repetira todos os dias por tanto tempo que não sabia sequer mensurar o número de vezes. Nesse momento visualizou em sua mente, como um enorme sinal de luz, uma interrogação flutuando. As malditas interrogações que pareciam se multiplicar cada vez mais.
As perguntas, as dúvidas, os arrependimentos sobre o que não fizera. Os famosos arrependimentos sobre os quais seu avô lhe falara em um passado que agora parecia ter sido vivido em outra vida. Ao lembrar-se deles associou-os ao que o estranho acabara de falar. Cada vez que se perguntara se poderia ter feito diferente, ele chamava de volta o tempo para que pudesse, ao menos em seus devaneios, ter a oportunidade de fazê-lo.
- Vejo que lembrou-se, e que entendeu. – Disse o estranho, alertando para o velho que continuava ali, e puxando-lhe de volta do mundo de perguntas e pensamentos pelo qual tinha se aventurado minutos antes.
- Então você lê pensamentos também. – Afirmou o velho, mais em tom de pergunta do que de certeza.
- Eu leio as pessoas, e as releio também, como alguém que revisita as páginas de um livro há muito terminado.
Confuso com as palavras e ainda mais com os acontecimentos, o velho tentou pela última vez agarrar-se ao pragmatismo que sempre o acompanhara em sua vida.
- Então se você é o tempo, acabou de entrar em contradição. Me disse, ao se apresentar, que sempre seguia em frente, nunca recuava e também não parava, então como pode tudo estar parado lá fora? Sabe me explicar?
- Certa vez existiu um homem nesse mundo que conseguiu, ainda que por alguns momentos, ler uma parcela do infinito que cerca o universo, e quando o fez definiu a mim como algo relativo. Para uns eu posso ser muito rápido, para outros muito devagar, e tudo isso pode acontecer ao mesmo tempo com pessoas diferentes em pontos diversos. Nesse sentido eu pergunto, você tem certeza que as coisas lá fora estão paradas?
O velho fitou novamente o espaço lá fora, e nada pareceu ter sido modificado desde a última vez que correra os olhos pelo local.
- Certeza absoluta.
- Isso porque não enxerga além do seu pragmatismo tacanho. Não, meu velho, o tempo não para, apesar de que isso seria possível, ainda que desastroso. Mas o tempo passa de formas diferentes em determinados lugares. Não há nada parado lá fora. Na verdade, as coisas estão se passando de uma forma tão lenta que você, que está muito rápido em relação a elas, tem a impressão de que tudo parou.
O velho conhecia a teoria da relatividade de Einstein, e aquela pareceu a primeira explicação lógica que recebeu naquele encontro, o que ao contrário do que pensava, acabou lhe deixando mais perturbado do que tranquilo. Achava que se encontrasse algo de lógico naquele ocorrido ficaria mais calmo, mas agora que finalmente acontecera ele ficara ainda mais nervoso, porque sabia que por mais absurdo que fosse, tudo aquilo agora parecia possível.
- Mas agora... – prosseguiu o estranho. – Vamos deixar de conversa. Porque o tempo pode passar devagar, mas não tanto a ponto de atrasar sua jornada por causa de explicações que podem ser dadas em pouco tempo para mentes menos teimosas. Agora levante-se e vamos agir.
- Levantar-me? Agir? Como? Onde? – O velho já não conseguia mais concatenar os pensamentos para seguir qualquer raciocínio lógico, e por um instante teve a certeza de que finalmente enlouquecera. – Para onde vamos?
- Buscar respostas para suas enormes interrogações. E com base nessas respostas você poderá finalmente escolher.
- Escolher? Mas escolher o que?
- Você verá. – E ao dizer isso ergueu a mão em oferta ao velho, que a fitou confuso, alternando o olhar entre aquela mão tão envelhecida quanto a sua e aqueles olhos cheios de sabedoria e profundidade.
Ficou naquela indecisão por um período que lhe pareceu uma eternidade, até que finalmente a curiosidade falou mais alto que o temor, e ele lentamente ergueu a mão em direção à do estranho. Quando a tocou uma onda de choque percorreu seu corpo, e viu-se repentinamente invadido por uma estranha força que afastou o frio de seus ossos e a fraqueza de seus músculos, fazendo com que se sentisse um pouco mais jovem do que era.
Antes que se desse conta estava ao lado do estranho, parado diante de uma porta que não tinha lembrança alguma de ter visto alguma vez em toda a sua vida. Olhou ao redor e para sua confusão já não estava mais no cômodo em que estivera havia apenas um segundo antes, e buscou alguma explicação no olhar do homem, mas tudo o que conseguiu foi vislumbrar uma expressão impassível de alguém que acenava em direção à porta, como se o convidasse a abri-la.
- Onde estamos? – Perguntou, na esperança de obter alguma resposta que diminuísse toda a confusão que sentia.
- Estamos onde estamos. – Respondeu o estranho. – Onde nada foi e nada há de ser ainda. Estamos onde não há passado e nem futuro, mas só o agora, de onde podemos acessar as portas para qualquer época. Estamos no limbo. No espaço entres os espaços.
- Isso me parece mais uma sala comum. Uma sala que nunca vi em minha vida.
- Nem tudo é o que parece. – Disse o estranho. – E às vezes tudo é o que parece ser. Depende do ponto de vista... ou da porta que seja aberta.
- E onde essa porta vai dar? – Quis saber o velho, cada vez mais curioso.
- Onde você quiser. Mas não de imediato. Antes passaremos por outras portas, até que você abra a última delas e decida.
- Decidir? Decidir o que?
- Primeiro precisa saber quais são as perguntas, para então descobrir as respostas.
O velho fitou o estranho com um misto de irritação, curiosidade e medo. Não sabia se estava vivo ou morto, se estava acordado ou sonhando, mas algo lhe dizia que só descobriria do que tudo aquilo se tratava caso abrisse aquela porta de uma vez por todas. Olhou uma vez mais para o homem à sua frente, apenas para constatar que dele não tiraria mais nada do que já ouvira, e decidido, lentamente ergueu a mão até a maçaneta da estranha porta à sua frente, e com uma sensação de vertigem a girou, não encontrando resistência alguma no movimento.
Com um leve impulso a porta abriu-se lentamente, revelando um enorme corredor à sua frente, do qual não conseguia enxergar o final. As paredes brancas estavam vazias, com a exceção de uma moldura que parecia conter uma fotografia. Mas para seu espanto as pessoas que ali haviam não estavam paradas, elas se mexiam, como se ele visse através de uma tela um filme que estivesse passando. Antes que se desse conta tinha atravessado, e ouviu um baque surdo atrás de si, indicando que a porta se fechara.
Olhou confuso para o estranho, que apenas gesticulou, indicando o caminho adiante. Impelido por algo que não soube definir o que era ele caminhou em frente, e passou a reparar com mais atenção nas imagens que se mexiam dentro da moldura. Para sua surpresa, ele estava nelas, mas não era o ele de agora. Percebeu que estava um pouco mais novo, menos enrugado e menos curvado.
Os cabelos, que agora rareavam e estavam brancos como a neve apresentavam-se em um volume maior em sua cabeça, e se mostravam um pouco mais escuros. As rugas, agora profundas, eram um pouco mais escassas, e as manchas na pele não estavam tão presentes. Curioso ele fitou as próprias mãos, e espantou-se ainda mais ao ver que também estavam mais jovens, menos manchadas e com os dedos um pouco mais robustos. Curiosamente ele também se sentia mais jovem e disposto, e por um momento quis saber se também estava como o seu eu de antes, que via nas imagens móveis.
- Lembra disso? – Perguntou o tempo, apontando para a moldura. O velho a fitou por alguns instantes e uma luz pareceu se acender em sua cabeça, trazendo-lhe de volta lembranças guardadas na estante da memória.
- Sim... – Respondeu, com a voz saindo quase num sussurro, como se tivesse dado a resposta para si mesmo. – Sim, eu me lembro. É o dia do nascimento do meu bisneto.
- Verdade. Eu também lembro desse dia.
- Você lembra? Você estava lá?
- Eu sou o tempo, meu amigo, e por onde passo levo comigo as lembranças do que aconteceram.
O velho aborreceu-se novamente com aquela afirmação, mas preferiu não discutir mais sobre quem era ou não era o estranho. Já estava confuso demais, e novas perguntas só aumentariam suas dúvidas. Voltou então a olhar a foto que estranhamente se mexia, mostrando em todos os detalhes a felicidade estampada na expressão de todos eles, inclusive na sua, enquanto segurava nas mãos aquela pequena vida.
Lembranças surgiram em sua mente, memórias felizes e cheias de sorrisos. Cenas que suplantavam qualquer tristeza sentida. Um registro de felicidade plena, daquelas que nem o tempo apaga. Sentiu então um toque no braço, novamente aquele toque que lhe causara um choque momentos antes, e ao olhar para o lado viu a expressão solene do estanho, indicando que o caminho não parava ali.
A contragosto, mas ainda assim tomado de uma estranha curiosidade que conflitava com sua vontade de permanecer onde estava, ele continuou, e seguiu o homem que surgira repentinamente em sua vida. Parou diante de outra porta, semelhante à anterior, e novamente fitou o estranho com um olhar interrogador, recebendo em retorno apenas a indicação que deveria seguir em frente.
Tocou a maçaneta, fria, metálica, sem vida, e empurrou a porta, que pareceu abrir-se de uma forma mais leve do que fizera anteriormente. Ao passar por ela sentiu-se menos lento, como se um peso tivesse sido retirado de seu corpo. As costas estavam mais eretas, as pernas mais firmes, a vista menos turvada. Fitou então as mãos, e espantou-se. Estavam mais grossas, menos nodosas, e praticamente não tinha manchas na pele. Olhou novamente para o estranho, que apenas indicou o caminho.
Naquele corredor, um pouco mais extenso, pôde ver mais molduras nas paredes, e todas se mexiam como a que vira no anterior. Aproximou-se, e no vidro de uma delas pôde ver o reflexo do próprio rosto. Parecia ter rejuvenescido vinte anos, e olhou novamente espantado para o estranho, não conseguindo extrair nada dali além da mesma expressão solene, a qual não conseguia decifrar.
Voltou novamente a olhar para as molduras, e ali, movendo-se como um filme diante de seus olhos, estava a formatura da neta. Viu a alegria espantada em seu sorriso, a forma como o filho se orgulhava de formar aquela que sempre fora sua pequena garota, e sua própria felicidade dançando com a formanda na pista, e depois com a esposa. Sorriu enquanto avistava tudo, revisitando em sua mente todos aqueles momentos, que pareciam terem ficado guardados havia tanto em um canto de suas lembranças. Momentos que ele não esquecera, mas aos quais deixara de dar a importância devida, e agora se perguntava por que fizera isso.
Passou adiante, e enxergou a si mesmo dançando em um passado não tão distante com a esposa na comemoração de suas bodas. Lembrou-se do quanto gostavam de dançar, e das inúmeras visitas nos fins de semana ao clube para os encontros em que bailavam até os pés não aguentarem mais. As limitações da idade tinham diminuído aquelas visitas, mas agora, enquanto olhava as cenas do filme de seu passado, via que por mais debilitado que estivesse, ainda possuía energia para aquilo, e que a redução daquelas noites de diversão tinham diminuído por uma escolha dele mesmo, mas não sabia o que motivara aquela escolha. Não ainda.
O estranho chamou sua atenção, e ele se viu diante da terceira porta naquele enorme corredor. Repetiu o gesto que fizera anteriormente, sem dessa vez sequer olhar para o homem que o seguia. Começava a desconfiar que ele de fato era quem dizia ser, e além do mais, não tinha a menor vontade de descobrir se aquilo era ou não verdade.
Passou pela porta, e uma nova sensação de rejuvenescimento percorreu seu corpo, e repentinamente ele sentiu-se, como não se sentia havia anos. As pernas estavam resistentes o bastante para aguentarem as corridas que gostava de fazer em sua juventude. Os braços fortes o suficiente para erguerem pesos que havia muito ele sequer imaginava conseguir levantar, e a mente, rápida como fora nos dias do passado.
Não precisou ver seu reflexo em qualquer lugar, bastando passar a mão no rosto para sentir a maciez da pele sem vincos. Os cabelos, que momentos antes eram mais raros, agora aparentavam acumular-se no alto de sua cabeça, formando uma vez mais a cabeleira que em sua juventude fora motivo de orgulho. Repentinamente sentiu vontade de correr e gritar, de pular, de aproveitar novamente, ainda que por apenas alguns segundos, algo que em sua velhice esquecera como quão bom tinha sido.
Mas os quadros novamente chamavam sua atenção, e buscando ver novas imagens como as que vira anteriormente, ele se dirigiu às molduras, a fim de enxergar o que elas lhe reservavam. Um homem e um menino brincavam na primeira delas. Corriam no campo em um dia ensolarado de céu azul, com a grama a brilhar sob seus pés como um tapete de esmeraldas cintilantes. Os dois sorriam, como se a plenitude da felicidade estivesse presente com eles.
Um pouco à distância, uma linda mulher sorria sentada em uma toalha com uma cesta de guloseimas ao lado, divertindo-se com aquela cena cheia de alegria. Era sua esposa, no auge da beleza de sua juventude. E o homem e o garoto eram ele e o filho. Apesar de as molduras mostrarem apenas imagens, ele podia ouvir nitidamente os sons daquele dia ressurgindo em sua memória. Os gritos e risadas que o menino dava sempre que conseguia escapar dele, que sorria a cada olé levado pelo garoto e aplicava mais energia na tentativa de pegá-lo apenas para ver que não conseguiria.
Como fora bom aquele dia. Um dia do qual ele sequer recordava nas tardes em que passava sentado na cadeira, a fitar a varanda invejando a vida dos passantes e desejando que a sua tivesse sido diferente. Como pudera pensar algo assim? Como pudera esquecer algo tão bom? Enquanto as perguntas surgiam sucessivamente em sua mente ele caminhou em direção à moldura ao lado, e ali parou, colocando uma das mãos na boca.
No quadro, ele permanecia parado ao lado de uma cama de hospital. Deitada nela, estava a mesma mulher que aparecera sentada na toalha de piquenique da moldura anterior, e o rapaz segurava um bebê nos braços. O mesmo homem e o garoto que corriam como se o mundo fosse acabar nas imagens que ele vira anteriormente eram agora um jovem e um bebê.
Em seus braços, a criança o fitava com grandes olhos cheios de alegria, e naquele momento ele soube que daria o mundo e a vida por aquele bebê, e que o faria até que seus dias chegassem ao fim. Parado, com a mão na boca para conter a emoção, que ainda assim encontrava escape para fugir e rolar pelo seu rosto com as lágrimas que corriam livremente de seus olhos, ele lembrou de cada detalhe daquele dia, que fora inesquecível por tanto tempo. Ao menos até a amargura que desenvolvera lhe turvasse a memória e fizesse com que desse menos importância ao que vivera.
Ali permaneceu por um tempo que não soube mensurar, parado, saboreando a recordação de cada detalhe daquele momento perdido nas lembranças, sem a menor vontade de deixar aquele estado de introspecção consigo próprio e com suas memórias, revivendo uma época que para ele não podia ser definida de outra forma senão como perfeita.
- Vamos. – Disse o estranho, com sua voz grave e profunda. – Temos de atravessar a última porta.
Ele olhou confuso para o homem, como se tivesse acabado de sair de um sonho e ainda tentasse acostumar-se com a realidade. Então fitou a porta que se mantinha fechada à sua frente, e voltou a olhar para o quadro onde a mesma imagem continuava a se repetir, como uma cena de filme que é revista vez após vez por um admirador.
- Para onde essa porta vai me levar? – Fez a pergunta mais como uma forma de mostrar que não queria atravessá-la, do que como uma maneira de apagar uma dúvida que se formara em sua cabeça.
- Para onde você tanto quer ir. – Respondeu o tempo. – Para uma época em que você pode tomar uma estrada diferente da que tomou.
- E para onde ela vai me levar?
- Isso nem eu posso dizer. O destino de cada um é traçado conforme suas escolhas, e não possuo poder algum sobre isso. Apenas acompanho as pessoas na estrada por elas percorrida, enquanto elas próprias me acompanham nesse trajeto, conforme eu também o percorro.
- Então está me oferecendo uma forma de voltar? De recomeçar? Pensei que o tempo não pudesse andar para trás.
- A realidade é mais irreal do que parece, além da compreensão de sua mente limitada. Eu ando em círculos, meu amigo, alguns que viram mais além do que você já tentaram explicar isso. O começo é o fim, o fim é o começo, e o meio é apenas uma parte no caminho de cada um. O que estou lhe dando é uma chance de percorrer novamente a estrada pela qual você já passou, mas tomando uma nova senda, dentro de tantas outras que as possibilidades podem oferecer.
- Então se escolher passar por essa porta, terei de tomar um novo caminho?
- O trajeto que você fez antes já foi fixado, e não poderá ser feito novamente. Então, sim, para voltar, terá de ir por outro caminho.
- Correndo o risco de não conhecer minha esposa, de não ter o meu filho, minha neta e meu bisneto? De não viver tudo o que vivi em minha vida?
- Não era isso o que você queria? Não era esse o motivo de todas as suas interrogações? Saber como as coisas teriam sido? Eis a sua oportunidade. – E apontou para a porta trancada, pesada e misteriosa.
Ele olhou para a porta, envolta em mistérios, oferecendo a respostas para todas as perguntas que tinham se formado na última fase da sua vida. Tentadora, sedutora, convidativa. Correu então os olhos para o chão frio, parecendo revisitar lugares guardados nos recônditos mais longínquos de sua mente, e voltou a fitar a moldura com a cena que continuava a se repetir.
Decorou cada detalhe que via, revendo os movimentos, as expressões, sentindo novamente as emoções que vivera naquele dia que ficara em um passado distante. Então respirou fundo e olhou para o estanho que a ele revelara ser o próprio tempo, e disse numa voz tão solene quando à que o homem lhe direcionara.
- Eu não vou. Não por essa porta. Prefiro cruzar de volta as outras pelas quais passamos.
- Não quer conhecer o que há do outro lado? – Quis saber o tempo. – Não quer encontrar uma resposta para as suas perguntas?
- Já encontrei. – E olhou novamente para o casal feliz com o bebê na moldura ao seu lado. – Elas sempre estiveram aqui. – E apontou para a própria cabeça. – E aqui. – Indicando o coração. - Eu apenas as escondi atrás de egoísmo e frustração por não mais conseguir fazer o que um dia tinha feito.
Naquele momento ele lembrou-se de outra coisa que o avô lhe dissera no dia em que tinham falado sobre o tempo e os arrependimentos da vida.
“Quando o momento chegar, e ele chegará um dia, a pergunta que deverá fazer não é sobre o que você poderia ter feito, garoto”. Dissera o velho. “Você deverá se perguntar se tudo o que você fez valeu à pena. No dia que encontrar essa resposta, não haverá nenhum outro questionamento a ser feito, e qualquer arrependimento será apenas uma sombra sob o sol do meio-dia”.
“Tudo o que eu fiz valeu à pena?”, perguntou a si mesmo, na quietude de sua mente, e não precisou de um sim dito em voz alta ou no silêncio do diálogo consigo mesmo. Bastou lembrar das imagens de cada moldura que vira naquele corredor para ter a certeza de que tudo tinha sido perfeito, mesmo nas imperfeições da vida.
- Esse é o corredor de sua vida, meu jovem. – Disse o tempo, parecendo ler seus pensamentos. – E essas são as molduras de suas melhores lembranças. Os quadros que você cobriu e deixou de lado por não aceitar minha passagem. Por não aceitar que os momentos passam e se tornam lembranças, mas ainda assim não deixam de existir. Você me culpou pela velhice, pelas limitações e por não poder reviver mais tudo aquilo, e é por isso eu vim aqui. Para me reconciliar com você. Para lhe mostrar que de fato não poderá viver aquilo novamente, mas que já é abençoado por ter vivenciado tudo e poder lembrar do que passou. Não é sobre o que poderia ter feito, meu amigo, é sobre ter valido à pena tudo o que fez.
Naquele momento o velho pôde vislumbrar no rosto do estranho, ainda que por apenas um momento, a face cheia de sabedoria de seu avô, sorrindo para ele da mesma forma que fizera no dia em que lhe transmitira aquele ensinamento. Mas antes que pudesse perceber algo ou dizer qualquer coisa, seu mundo escureceu, e sentiu-se como se estivesse caindo em um abismo sem fim, despencando, descendo, sentindo o mundo dar voltas e o vazio crescer dentro de sua barriga, e quando viu o chão se aproximando, crescendo diante de seus olhos, anunciando o impacto que inevitavelmente viria adiante, ele acordou repentinamente em sua cadeira.
Estava na varanda onde passava as tardes olhando o mundo lá fora, fitando as pessoas e perguntando-se se deveria ter feito as coisas de outra forma. Se deveria ter vivido outra vida, plantando perguntas e cultivando interrogações. Olhou para os lados assustado, procurando o estranho que chegara sem aviso ou convite, e que parecia ter partido sem anúncio ou adeus. Não havia ninguém ali.
Em um ato reflexo apertou o botão que acionava o dispositivo de seu cuidador, mas daquela vez o rapaz veio de pronto, respondendo de imediato ao chamado.
- Para onde foi o homem que esteve aqui até agora há pouco? – Perguntou, desejoso de saber se o questionamento não pareceria absurdo ao rapaz, dado o modo como tudo aquilo tinha acontecido.
- Homem? Que homem? Do que o senhor está falando? Ninguém esteve aqui além de nós dois e de sua esposa, que está na sala lendo.
Como ele suspeitou assim que terminou de fazer a pergunta, o rapaz não fazia a menor ideia sobre o que ele estava falando, e aquilo o perturbou ainda mais. Será que tudo não passara de um sonho? Será que aquilo realmente tinha acontecido? Ou pior, teria sido toda aquela situação fruto de um devaneio causado por sua mente velha e cansada, denotando algum tipo de senilidade?
Não sabia. Não tinha nem a mais distante pista que pudesse indicar a resposta para aquelas perguntas, mas ainda assim havia algo mais importante ali, porque as questões que de fato o incomodavam, aquelas que tinham criado um buraco em sua vida e um vazio em sua alma, estas tinha sido solucionadas. “Não é sobre o que poderia ter feito, meu amigo, é sobre ter valido à pena tudo o que fez”.
As palavras foram cantadas em sua mente, ressurgindo em meio aos seus pensamentos. As palavras do estranho, que tanto se assemelhavam às do seu avô. As palavras que tinham todas as respostas para as perguntas que tanto o incomodaram por todo aquele tempo. “Ah, o tempo”, pensou consigo, “que tanto considerei um inimigo, acabei vendo que sempre foi meu aliado”, e sorriu, achando graça de tudo aquilo, especialmente da expressão confusa do rapaz, que o fitava já demonstrando alguma preocupação com seu estado.
- Esqueça rapaz. – Disse ele ao jovem. – Na minha idade dormimos tanto que acabamos confundindo sonhos com realidade. Mas me diga, que dia é hoje?
- Sexta-feira, senhor. – Respondeu o rapaz, ainda um tanto que reticente, mas já demonstrando alguma calma.
- Sexta-feira. – Falou, um pouco pensativo. – Sabe o que isso significa?
- Não, senhor. Não sei.
- Significa que é dia de levar minha esposa para dançar no clube. Coisa que eu jamais devia ter deixado de fazer. Agora vamos, ajude esse velho a se levantar. Vou avisa-la para ir logo se arrumando, porque hoje a noite será animada.
E daí que estivesse velho? Que as pernas já não fossem as mesmas, os braços não tivessem a mesma força e a mente não fosse clara como um dia fora? Ainda assim seu espírito era jovem, e o tempo, ah, o tempo era seu aliado, e o mostrara que ainda havia muito a fazer nos anos que lhe restavam. Ainda havia muita coisa a ser vivida. Muita coisa que valeria a pena ser vivida.
Com aquele pensamento ele saiu animado, ensaiando uma pequena dança enquanto era seguido pelo jovem espantado, mas já sorridente. Lá fora as pessoas se movimentavam, e continuavam a passar, cuidando de suas próprias vidas, construindo suas próprias recordações. Lá fora, perto da praça que arrodeava a igreja, um estranho de expressão solene olhava para a varanda e sorria, satisfeito por ter se reconciliado com aquele velho senhor, que tanto ainda tinha a viver. Os ponteiros correram, e ele desapareceu no ar, deixando para trás a tarde fria, e o mundo que seguia em frente.
São João
Seus passos ecoavam pelo escuro enquanto caminhava pela pequena estrada de terra batida, ladeada por árvores retorcidas e plantas que ele pouco podia ver na baixa luz da noite, mas que sabia exatamente quais eram. O cheiro do vento noturno entrava por suas narinas, trazendo-lhe uma sensação de conforto e lembranças de momentos iguais àqueles que haviam ficado gravados nas páginas de sua memória.
Acima dele se estendia um tapete de estrelas que seguia a perder de vista em direção ao infinito, alocando-se em um céu de um escuro desbotado. A noite estava clara, e estava fria. Não o suficiente para deixar-lhe incomodado, mas o bastante para deixar claro que o inverno chegara, de malas nas mãos, ainda se alojando naquela que seria sua morada por alguns meses.
O barulho seco do solado das botas tocando o chão chegava aos seus ouvidos em meio à sinfonia de sons que saíam dos cantos mais ocultos da noite, na cantoria noturna que sempre vinha da mata naquelas horas, estendendo-se até que o sol lançasse sua primeira luz no horizonte do firmamento. Estavam gastas, marcadas e com o couro um pouco aberto aqui e ali, mas era o melhor par que tinha, e a festa pedia que fosse apresentável, afinal, ela só acontecia uma vez por ano.
Enquanto caminhava em meio ao escuro na estrada que já conhecia de cor, ele passou a ouvir à distância algo mais que grilos e o barulho do vento que corria em meio à noite. Um tilintar, quase imperceptível, mas que era o suficiente para que um sem números de lembranças e sensações inundassem seu ser. Conforme aquele ruído tornava-se mais perceptível ele sentia crescer a vontade de apertar o passo, e assim o fez.
Alguns metros depois, ao tilintar que acelerara seu peito, juntou-se o barulho oco de pancadas leves que marcavam um compasso que ele já conhecia bem, e que fez com que sua caminhada, além de acelerada ganhasse também um pouco de ritmo. Era como se sentisse vontade de correr e dançar ao mesmo tempo, e de uma certa forma estava fazendo exatamente aquilo. Mas faltava algo.
E esse algo surgiu um pouco mais adiante. Um som, de início abafado, parecendo surgir do vazio, lento e cadenciado. Um ruído choroso e melodioso, que vinha manhoso e devagar, como o dia que surge lentamente para jogar sua luz no mundo, a princípio fria e opaca, para logo em seguida trazer claridade e calor a todos que vivem debaixo do sol.
O trio estava completo. Triângulo, zabumba e sanfona, formando a ciranda musical que andaria de mãos dadas por toda aquela noite, até que o chão batido ficasse ainda mais gasto, e os corações dos ouvintes cheios de satisfação. Correu até sentir o suor brotando de suas têmporas, e tirou o chapéu para passar na testa a manga da camisa quadriculada que já começava a grudar-se ao corpo.
Naquele momento a cantoria natural da noite já dera, em seus ouvidos, lugar à música que saia do pavilhão montado ao lado do velho armazém que ficava na entrada da cidade, e o opaco escuro foi substituído pelas luzes dos postes e das fogueiras montadas aqui e ali, espalhando-se pelo local e aquecendo os corpos e corações de todos que lá estavam.
O cheiro da lenha queimando invadiu-lhe o nariz, enquanto a música tomava seus ouvidos e as imagens lhe enchiam os olhos com os casais dançando, os velhos cantando e as crianças correndo e lançando ao ar pequenos fogos que ecoavam seus estampidos pelo corredor da noite. Com o peito ofegante ele correu a vista pelo ambiente, captando cada cor, cada luz, cada detalhe único que marcava como nenhum outro aquela data, aquela época, aquele momento. Era noite de São João. E esperava que aquela fosse especial.
Como um visitante que retorna ao lar depois de muito tempo sem vê-lo ele caminhou pelo lugar, observando cada detalhe e comparando com o que vira no ano anterior, medindo e assimilando o que chegara e o que partira, e sendo invadido pela alegria de estar novamente ali. Quase todos os dias ia à cidade, quase todos os dias a visitava, mas a imagem da noite de São João, essa só via uma vez por ano, e agora, com a atenção presa a cada detalhe, ele parecia redescobrir um lugar, como se tudo o que visse fosse uma coisa nova.
Passou pela barraca de tiros, onde orgulhosos atiradores disputavam qual deles tinha a melhor mira, mostrando no final que a de nenhum era tão boa como achavam. Passou pela barraca do beijo, onde rapazes faziam fila para receber de uma jovem uma bitoca no rosto, mas não era aquela que ele queria, e seguiu adiante. Sentiu em seu corpo o calor das fogueiras acesas na extensão da rua principal, quentes e brilhantes, enquanto delas emanavam o cheiro característico da lenha que subia pelo ar junto com a fumaça, dando a todos a sensação de que uma bruma abraçava a pequena cidade.
Passou pela enorme mesa onde a comida se espalhava, e imediatamente sua barriga roncou, lembrando-lhe que passara o dia guardando espaço para poder saborear o maior número possível de sabores que ali estava. Fartou-se com a canjica, sentindo a maciez e o gosto adocicado misturado ao sabor de canela a cada mordida que dava.
Provou da pamonha, sentindo, com um sorriso na boca, a textura cremosa e o forte sabor do milho. Apreciou o pé de moleque, roeu pacientemente uma espiga recém retirada da fogueira, passando a língua pelos dentes para tirar os fiapos remanescentes do milho que mastigara. Bolos, doces, carnes, provou de tudo um pouco, tendo o cuidado de não se esbaldar demais, porque ainda havia muito a dançar, e um alguém com quem dançar.
Àquela lembrança seu coração se encheu ainda mais, mas não apressou-se, por saber que ainda não era hora. Então aproveitou o tempo que ainda restava e foi até a bodega, onde bêbados contavam seus causos, rapazes viravam copos, e a algazarra se misturava à risada e à cantoria daqueles ébrios que se esbaldavam naquela doce noite de São João.
Bebeu um, dois, três copos de cachaça e rematou com um quentão que aqueceu cada gota de seu sangue. Perguntou ao dono da bodega que horas se faziam, e ao som da resposta soube que estava no momento. Ajeitou o chapéu, ajustou a camisa e foi em direção ao pavilhão, com o coração ansioso por chegar ao encontro marcado na noite do ano que mais lhe enchia o peito de satisfação.
O som de baião e pés batendo e arrastando no chão lhe encheram o peito e os ouvidos, e enquanto corria a vista pelo pavilhão em busca do seu desejo, enxergava casais de todas as idades, de rostos e corpos colados no que se acostumara a chamar de “rala bucho”. A voz do cantador era lançada no ar quente do pavilhão, saindo abafada da velha caixa de som ligada a uma gambiarra e dançando pelo lugar tal qual os casais faziam enquanto a ouviam.
O barulho da zabumba marcava o compasso dos pés que batiam, acelerando também a batida que vinha de seu peito, o som acelerado do triângulo lhe enchia de vontade de acelerar também o passo, e o canto manhoso da sanfona lhe dizia que aquilo era o forró de que tanto gostava. Mas aquela dança se dançava de dois, e seu par não estava ali.
Contou o tempo que achava que tinha passado desde o momento em que perguntara a hora ao dono da bodega, e calculou que já chegara o instante que haviam combinado para o encontro tão esperado. O coração disparava, tomado pela ansiedade de que naquela noite tão aguardada acabasse ficando tão solitário quando um balão voando no céu estrelado.
Mas então a viu, em meio aos casais que rodopiavam no salão. Em meio às bandeirolas coloridas penduradas nas colunas do pavilhão. Em meio a vestidos que rodavam a cada giro que as parceiras de dança davam, em meios aos corpos que giravam no balancê do forró que tomava o ambiente. Lá estava ela, parando tempo e espaço, emudecendo a música que chegava aos seus ouvidos e tirando dele toda a percepção do ambiente ao seu redor. Então seus olhos se encontraram, e uma onda de calor maior do que a que ele sentira junto da fogueira tomou-lhe por dentro, aquecendo até mesmo os mais recônditos lugares de sua alma.
Sorriu, e teve a certeza de que sorria como bobo, enquanto tirava o chapéu da cabeça e o levava ao peito, sem sequer perceber que o fazia. Ele de um lado do pavilhão, ela do outro, e no meio um mar de casais que dançavam, carregados pelo forró e pelo clima daquela noite fria e ao mesmo tempo quente. Viu quando a moça abaixou os olhos, timidamente, como se tivesse se dado conta de que a encarava com desejo e sentimento, e quis ir até onde ela estava.
A cabeça dizia “vai”, mas os pés diziam “fica”, deixando-o estacado, tomado de nervosismo em meio à multidão, desejando fazer, mas sem saber como. Querendo ir até lá, mas sem saber o modo de fazê-lo. Desejando, mas temendo. Então algo acendeu-se em seu peito, como uma fogueira em meio a uma noite estrelada de São João, e ele percebeu que já esperara demais.
Lembrando-se de uma canção que tanto ouvia saindo das sanfonas dos forrozeiros, concluiu que sim, toda caminhada começa com um primeiro passo, e naquele momento sentiu o pé coberto pela bota gasta mover-se em meio ao salão de terra batida, tirando-o da letargia em que se encontrava. Lentamente caminhou em direção a ela, com plena consciência de que ainda mantinha a expressão abobalhada e ao mesmo tempo segura, esperançosa e ao mesmo tempo apreensiva, e um a um foi desviando dos casais que se moviam ao som do trio que alegremente tocava no pequeno palco de madeira velha no fundo do pavilhão.
Quando percebeu, já estava na frente dela, e uma vez mais ficou parado onde tantos se moviam, sem saber o que fazer, o que falar ou para onde ir. Então uma vez mais a fogueira se acendeu no seu peito quando viu os grandes olhos castanhos dela a fitar os seus, e o sorriso se abrindo na boca rosada que tanto sonhara beijar. Não havia como ficar inseguro diante de uma imagem como aquela. Não quando tinha na sua frente a oportunidade palpável de realizar o que antes era apenas uma imagem intangível de um devaneio, de um sonho sonhado acordado ou dormindo.
Não disse palavra, não puxou assunto, pois sabia que não havia nada a falar. Não quando tinham esperado por tanto tempo. Tudo o que tinha a dizer estava na atitude que iria tomar, e assim ele o fez, e sem pensar duas vezes pegou na mão dela, sentindo de imediato uma onda de choque a lhe percorrer o corpo. A sensação do primeiro toque era indescritível.
Sentiu o tremor na mão dela, e por um momento temeu ter ido longe demais, ter sido invasivo demais. Mas logo em seguida sentiu delicados dedos se fechando sobre os seus, e um novo ardor lhe tomou, sendo invadido por uma onda de coragem e vontade que o levou a conduzi-la para o meio do salão, em meio ao mar de casais que dançava como se não houvesse amanhã.
Sentir o corpo dela junto ao seu, o cheiro doce de seus longos cabelos escuros lhe inebriando, o toque de sua pele branca e delicada, o contorno de sua cintura, era muito mais do que ele sequer havia chegado perto de imaginar, e por um momento olhou ao redor, tentando identificar algo que lhe mostrasse que uma vez mais estava em meio a um de seus devaneios, ou deitando em sua cama simples, sonhando com o momento em que teria aquela moça em seus braços.
Antes que desse por si seus pés estavam se mexendo, levados pelo som da música que carrega todo nordestino sem que ele sequer perceba, e segundos depois eles estavam unidos à massa de gente que dançava como um só organismo, conduzidos pelo choro da sanfona, o ritmo da zabumba e o tilintar desenfreado do triângulo que corria noite adentro sem previsão de parada.
Por horas dançaram, um sentindo o outro, com a crescente vontade de chegarem mais perto, de abraçarem-se mais, de conhecerem mais um pouco cada detalhe um do outro. Por horas ele a puxou para junto de si, cheirou seu cabelo, perdeu-se em seus olhos para depois se encontrar na imagem do sorriso que ela lhe dava.
Lá fora a noite corria, com as fogueiras queimando como pontos de luz espalhados, enquanto as estrelas no alto brilhavam em meio àquela noite cristalina, colorida pela chuva de fogos que explodiam em cores após a meia-noite, enquanto o incansável trio tocava e as pessoas olhavam com seus amores para o céu, vendo como ele estava lindo.
Quando seus pés já não aguentavam, ele a conduziu para fora do pavilhão, apenas para deixa-la maravilhada com o tapete estrelado que se estendia pelo infinito. Sem reparar no que havia no alto, ele apenas olhava aquela moça, certo de que não haveria constelação em todo o céu que se igualasse à beleza daquela que ele tinha à sua frente.
E assim, sem rodeios ou palavras ele segurou o rosto dela delicadamente entre suas mãos e a beijou, ouvindo o estampido dos fogos que explodiam no céu, e sentindo a explosão de sentimentos que lhe invadia o peito. O calor da fogueira que queimava ao lado dele se confundia com o que emanava de seu coração, e já não sabia dizer se a música que ecoava em seus ouvidos era do trio que tocava no pavilhão ou o som que naturalmente embala alguém que está apaixonado.
E assim a noite se estendeu, bela como ele tanto sonhara, com o cheiro das fogueiras e das comidas, o colorido das luzes dos fogos, o brilho das estrelas iluminando o céu, o som da música que contagiava e o gosto do beijo que tanto aguardara. A fogueira queimou ao lado deles, mas ali foi aceso um novo fogo em seu coração, um fogo único e especial, um fogo de amor, numa noite de São João.
Soldado Desconhecido
Seus ouvidos zuniam, reverberando um som contínuo e irritante que parecia não se dissipar jamais. Não ouvia nada além daquilo, e por um momento perguntou-se se alguma vez voltaria a escutar alguma coisa novamente. O chão embaixo de seu corpo estava frio e macio, e por um instante pensou se não estaria de volta à sua casa, em um típico dia de domingo onde as cortinas da janela de seu pequeno quarto estariam esvoaçando, movidas pelo agradável vento da manhã, enquanto estaria deitado em sua cama sonhando de olhos abertos.
Pensou em abrir os olhos para checar se aquele pensamento tinha algo de real, mas recusou a si mesmo aquela ação. Tinha medo de ver que o sonho era apenas um desejo distante, e que a realidade era o pesadelo que vinha vivendo nos últimos anos de sua vida. Engoliu em seco, e a garganta doeu. Sentia como se houvesse uma enorme bola de areia entre sua boca e seu esôfago, dificultando até mesmo a passagem do ar.
Retesou a musculatura de seu corpo, parte por parte. Braços, pernas, ombros, pescoço, queria sentir se havia algo ali, ou se alguma coisa ficara para trás na caminhada de terror que fora bruscamente interrompida momentos antes. Momentos? Ou seriam horas, até mesmo dias? As perguntas fluíam em sua cabeça dolorida, e constatou que há muito já tinha perdido a capacidade de contar o tempo, de distinguir os momentos e os lugares. Tudo parecia igual. O mesmo terror. O mesmo pesadelo.
A vontade de abrir os olhos voltou com mais força, mas ele resistiu novamente. Não queria ver o que tinha ao seu redor. Preferia aquela escuridão incômoda à imagem aterradora que provavelmente veria se resolvesse remover a cortina escura que pusera diante de sua visão. O corpo doeu novamente. Doía tudo, e ao mesmo tempo nada. As dores vinham em ondas, que logo cessavam, para retornarem novamente naquela maré de agonia, como se seu sistema nervoso estivesse tão cansado que só acusasse o sofrimento em alguns momentos esparsos.
A cabeça começou a latejar mais, o zunido no ouvido persistiu, como um sinal que se estendia até perder-se em um mundo abafado. Engoliu com mais força, e um pouco de saliva passou pelo bloqueio em sua garganta, fazendo com que um ardor perpassasse seu pescoço até chegar ao esôfago. Não, ele não estava em seu quarto, e não era um domingo agradável em que o vento entrava pela janela para acariciar sua face.
Ciente do pesadelo em que se encontrava ele deixou de lado o pensamento reticente e abriu os olhos, que logo foram feridos pelo pouco de luz que passava pelas nuvens e pela fumaça escura que o cercavam. Em algum lugar no céu, o sol brilhava forte em sua plenitude, mas a poeira do conflito impedia que ele brilhasse para os homens envoltos por ela.
Com a vista turva ele ergueu uma das mãos para cobrir os olhos, e uma dor lancinante subiu-lhe pelo braço até chegar ao ombro, dando uma volta completa em todo o seu corpo para voltar com o dobro de potência até o lugar de onde viera. Olhou para o lado, e quando conseguiu enxergar algo mais que imagens distorcidas, viu que uma bala atravessara seu ombro, deixando-lhe com um buraco aberto e ossos quebrados, acusados pela agonia que sentia.
Instintivamente moveu a outra mão em direção ao ombro e sentiu o sangue saindo quente do local. Seus sentidos então foram trazidos à tona, quase todos de uma vez, e uma onda de adrenalina passou repentinamente por todo o seu corpo, que pulsou em um misto de dor e energia. As pernas estavam doloridas, mas sabia que era pelo cansaço. Não estavam feridas, e ainda estavam lá.
A garganta ardia por causa da fumaça que respirara enquanto estivera desacordado. A cabeça latejava, os olhos pareciam invadidos por um milhão de quadros que surgiam a cada minuto que passava, e repentinamente o zunido nos ouvidos sumiu, e um universo de sons surgiu enquanto uma força pareceu arranca-lo da letargia em que se encontrava. Era como se uma enorme mão o puxasse de volta, e acordasse de uma só vez cada sentido de seu corpo. Dor, euforia e confusão mesclavam-se em uma miscelânea de sensações, como alguém que acorda repentinamente de um pesadelo, apenas para ver que está dentro de outro.
A dor no ombro atacou violentamente, e ele fez uma careta, sentindo também o corpo acusando o talho que tinha em um dos lados do rosto. Passou a mão boa no local, e sentiu novo incômodo quando percebeu o corte fundo, mas não grave que tivera na face. Aquilo deixaria uma cicatriz, mas o que era mais uma marca, quando já carregava tantas, no corpo e na alma depois dos inúmeros horrores que vira durante o tempo que passara naquele pesadelo?
E de fato era o que se punha diante de seus olhos. Um pesadelo. Enquanto buscava nos bolsos do uniforme o material de que precisava para tratar do ferimento ele correu os olhos pelo local, e nada, nem mesmo todo o absurdo de coisas que tinha visto durante todo aquele tempo o tinham preparado para o horror que se descortinava diante dele.
O mundo mudara, e agora se mostrava travestido em puro horror. Por um momento perguntou-se se não teria morrido em combate e ido para o inferno como punição por todas as vidas que tirara, porque se aquilo não fosse o inferno em si, era provavelmente algo assustadoramente semelhante. Fumaça escura e fétida envolvia o ambiente, como uma amante doentia se agarrava ao seu objeto de desejo sem intenção de soltá-lo.
A terra estava negra, escura e molhada, em uma mistura grotesca de água suja, lama e sangue que escorria do exército de corpos que se espalhava por todo o terreno a perder de vista. Cheiro de carne queimada se misturava ao de barro, ao de pólvora e ao característico odor líquido de cobre do sangue. Por um instante ele quis deitar-se novamente, fechar os olhos e esperar, aguardando que alguma bomba viesse busca-lo e retira-lo daquele terror, ou que alguma bala com seu nome escrito invadisse seu corpo e escurecesse tudo de uma vez por todas.
Mas ele era humano, e o instinto de sobrevivência era maior que o desejo de descanso. Ele era humano, e como tal tinha deixado para trás pessoas queridas em um mundo que agora parecia estar distante demais. Em um tempo que parecia ter passado há muito, além até mesmo das memórias mais antigas, mas que ainda assim ele sabia que estava lá.
Reuniu as forças em um pequeno ponto dentro de si, ainda intocado pela dor e pelo medo, e lentamente ergueu-se, sentindo ossos estalarem, músculos retesarem, e as feridas gritarem a plenos pulmões. “CALEM-SE!”, o grito ecoou por sua mente. “CALEM-SE MALDITAS! EU SEI QUE ESTÃO AÍ. EU AS VI, EU VI O SANGUE, ENTÃO CALEM-SE DE UMA VEZ!”. Era uma tentativa desesperada de calar a dor que sentia não apenas no corpo, mas também na alma, e apesar de ainda senti-las, a onda de raiva fez com que fossem ao menos amenizadas.
Olhou para o lado, para o braço que estava bom, e percebeu que recolhera sua arma sem ao menos ter notado que o fazia. Aquele instrumento de morte acabara se tornando uma parte de seu corpo, uma extensão dele mesmo, que exteriorizava suas mais perversas intenções de matar, e sua mais nobre vontade de sobreviver e salvar aqueles que amava. Olhou para o instrumento frio e metálico, inerte e sem vida em suas mãos, e repetiu a mesma pergunta que se acostumara a fazer desde que passara a retirar vidas alheias com ela. “Quem mata? A arma, ou aquele que a empunha?”.
Um filme correu por sua cabeça, passando bem rente a seus olhos, vivo e gritante em sua mente cansada. Um filme onde seu dedo apertava um gatilho com a força de dez homens, como se aquele gatilho fosse o fio que ainda o segurava nesse mundo. Lembrou-se do som agudo das balas zunindo em seu ouvido, passando a centímetros de explodirem sua cabeça. Lembrou-se do som seco de projéteis rasgando carne, músculos e tendões, destruindo ossos, obliterando vidas. E lembrou-se que muitas delas, inúmeras, incontáveis, tinham sido disparadas por ele.
Sim, tinha matado, tinha tirado vidas, tinha tomado para si o encargo de ceifador em um campo onde o trigo de vidas alheias não faltava. Era abundante. Mas agora ele se perguntara por que tinha feito aquilo. “Para sobreviver”, uma voz soou na sua cabeça, débil e sem vontade, como se dissesse aquilo mais como um discurso decorado. “Para defender seu país”, outra voz surgiu, e agora era a de seu comandante, mas não havia vida nela, não havia consciência. Não havia calor. Era apenas um comando repetido, incutido em uma mente sem perguntar a seu dono ao menos o que ele pensava daquilo.
Corpos se espalhavam em sua mente. Corpos se espalham diante de seus olhos, a perder de vista. Eram tantos, tantos que por um instante podiam ser comparados aos grãos de areia de uma praia. Uma praia onde o mar era feito de sangue e a maré vinha acompanhada de ataques ferozes de bombas e de balas. Em meios a todos aqueles pensamentos ele deu por si, vendo que já não estava mais parado, mas caminhando entre os cadáveres.
A guerra fazia com que o senso de percepção fosse ampliado a ponto de ouvir passos sendo dados a uma distância imensurável, mas ao mesmo tempo retirava de seu dono o senso de realidade que o cercava, jogando-o em devaneios enquanto um mundo de uma verdade crua e dolorosa o cercava e o agarrava com tentáculos febris e pegajosos.
Então ele ouviu. Não passos, não vozes, não tiros lançando balas famintas aos quatro cantos do mundo. Ele ouviu uma respiração, acelerada, entrecortada, a respiração de alguém que ainda tentava se agarrar a um último fio de vida. Aguçou os ouvidos para encontrar a fonte daquele som, imaginando-a como uma vida em meio a tantos mortos. Uma que provavelmente findaria em poucos minutos.
Procurou com os olhos, buscou com os ouvidos, perscrutou em meio aos cadáveres, e quando estava prestes a desistir, achando que aquilo não era nada mais que uma ilusão de uma mente cansada, ele viu movimento onde só havia pausa. Um peito que arfava, subindo e descendo, mostrando que ali o ar ainda entrava, alimentando o restante de vida que ainda persistia em manter-se.
Lentamente caminhou até o local, estreitando os olhos para enxergar melhor em meio à fumaça e à poeira, e quando chegou mais perto viu um jovem, praticamente da mesma idade que ele. Os olhos vidrados em algo que segurava na mão ensanguentada, como se ali estivesse seu último filete de vida. Chegou mais perto, mas assim que seus olhos puderam enxergar com plena exatidão aquele rapaz, ele recuou bruscamente, e antes que pudesse perceber, aquela que se tornara a extensão de seu corpo já estava apontada para o soldado à sua frente, e seu dedo já acariciava o gatilho da arma, pronto para atirar ao menor comando de seu inconsciente treinado para matar.
O rapaz à sua frente usava um uniforme de outra cor, que ele não enxergara à distância por causa da lama e da fumaça fétida que pairavam sobre o lugar. O soldado que arfava diante dele, tentando agarrar-se à vida não era um dos dele. Era o inimigo, e como tal ele provavelmente fizera sua arma cuspir as balas violentamente contra seus amigos, que agora jaziam mortos e despedaçados ao redor deles.
”Mate-o!”, a voz de seu comandante ecoou em sua mente. “Mate o desgraçado, porque se fosse você nesse chão, ele o mataria”. O dedo coçou o gatilho com mais força, com mais desejo, movendo-o mais alguns milímetros para dentro. “MATE-O!”. Gritava a voz, ecoando em seus ouvidos, fazendo sua cabeça doer ainda mais.
“Poupe-o”, ecoou o pedido em seu pensamento. Mas aquela era uma voz nova, cristalina, que não lembrava de ter ouvido antes. “Poupe-o”, dizia ela, calma, apaziguadora. Aquela não era uma voz de batalha, não era um timbre de guerra, não era um comando de ódio. “Poupe-o”.
“Mate-o”, retornou o comando. “Se fosse você na mesma posição ele já terá enfiado uma bala no meio de sua testa”. Nova onda cresceu dentro dele, enchendo-o de vontade de apertar o gatilho, mas no momento em que ia fazê-lo, seu sangue gelou quando seus olhos desviaram do rosto do soldado moribundo para pousar nas mãos daquele rapaz. O jovem deitado à sua frente tinha uma arma na outra mão, engatilhada e mirada exatamente para ele.
Encurralado. Foi a forma como se sentiu. Se atirasse provavelmente seria alvejado, e se não atirasse sairia morto do mesmo jeito. “Mate-o”, a voz dizia, “e morra fazendo isso” ele dizia a si mesmo. “Poupe-o”, surgia do nada a outra voz, “para ser morto também”, retorquia. Com a angústia crescendo a ponto de sua cabeça entrar em ponto de ebulição, ele foi tomado pela surpresa quando o rapaz que jazia à sua frente repentinamente soltou a arma que mantinha apontada em sua direção.
Uma nova onda de vontade de atirar surgiu, era sua oportunidade, mas quando estava prestes a fazê-lo ele fitou novamente os olhos do rapaz, que agora estavam voltados para a outra mão, a que estivera desde o início segurando algo. Não, não poderia matá-lo. Não depois de matar tanto, de tirar tantas vidas, de destroçar tantos corpos e tantas almas. Não quando o jovem à sua frente desistira de fazê-lo, como um último sinal de nobreza em uma vida que tinha sido desgraçada pela guerra.
Com os olhos fixos na mão do outro soldado ele abaixou a sua arma, e ao fazer isso chamou novamente a atenção do rapaz, que sorriu em resposta, parecendo reunir uma grande quantidade de força para fazer aquilo. “Como alguém consegue sorrir às portas da morte, em meio ao um inferno de dor que o rodeia?”, perguntou-se. Os olhos do jovem, de um azul que agora parecia ter perdido muito de sua cor, voltaram-se para ele, e percebeu que o soldado movia a mão ocupada em sua direção, lentamente, em algo que parecia ser um esforço hercúleo.
Mostrou-lhe um papel, cuidadosamente dobrado, manchado de sangue e agarrado firmemente por uma mão que estava prestes a perder as forças por completo. O jovem o fitou, e falou algo em um idioma que ele não entendia, mas seu olhar parecia traduzir tudo. “Pegue”, dizia. “Pegue, por favor!”. Lentamente ele agachou-se ao lado do rapaz, e depois de encara-lo por segundos que pareceram estender-se por um longo tempo, segurou a mão do jovem, e pegou a carta que ele lhe mostrara.
Duas mãos se tocaram. Mãos jovens, que pouco tinham visto da vida, mas vivido muito do horror que infelizmente ela podia oferecer. Mãos que tinham matado, destruído, que tinham levado a morte a tantos outros, e ao mesmo tempo a si mesmas. O toque do rapaz lhe trouxe nova onda de choque, porque a despeito do que diziam do inimigo, era um toque humano, assim como o seu.
Sentiu a mão do jovem apertar a sua, em um gesto débil, quase sem forças, a indicar que aquela vida estava prestes a partir. O soldado o fitou, com seus olhos de um azul opaco, que pareciam ter sido cheios de luz e de cor em uma vida passada antes de todo aquele horror. O soldado sorriu, e não precisou falar nada para dar a entender que estava agradecido. Então a mão perdeu a força, e a vida a deixou.
Ele ficou ali, parado, sentado ao lado do corpo sem vida, cercado pelo peso da morte e pelo som ensurdecedor do silêncio. Olhou ao seu redor, para aquele cenário hediondo, onde ele parecia ser um insulto, porque era o único que se atrevera a ficar vivo. Fitou o rosto do rapaz, de quem ainda segurava a mão com o papel cuidadosamente dobrado.
Era tão jovem, tão novo, não parecia sequer ter idade suficiente para estar em um campo de morte como aquele. Não devia ser muito mais velho ou muito mais novo do que ele, e agora estava morto, sem ter vivido o bastante para carregar ao outro mundo um número satisfatório de recordações. Por que estava ali? Por que saíra de casa deixando a esperança de uma vida inteira pela frente para agonizar e morrer em um lugar como aquele?
Fazia aquelas perguntas não apenas em relação àquele soldado desconhecido, mas também em relação a ele mesmo. Por que? Por que deixara sua família em casa, sua namorada com quem já fazia planos de uma vida inteira, deixando de viver os melhores momentos de sua existência para jogar-se naqueles que seriam seus piores? Por que fora tirar vidas, entregando a sua própria enquanto velhos discursavam na segurança de seus escritórios, dizendo para que jovens morressem por causa de pedaços de terra, muitos dos quais ele sequer chegara a ver?
Quantos filhos ele tirara de suas mães, quantos pais ele matara, quantos irmãos, namorados, maridos ele impedira para sempre de voltar para casa para ver aqueles que os amavam? E por que? Por um pedaço de pano pintado com algumas cores, que reivindicavam pedaços de chão aos quais pouco davam valor? Os velhos falavam, e os jovens matavam e morriam. Esse era o escárnio da guerra para com a vida.
“Mate-o”, a voz dissera. A voz de seu comandante. A que fora treinada pelos velhos que discursavam para ensinar os jovens a matar. Mas outra surgira, e quando ele fechara seus ouvidos para ela, o soldado moribundo a ouviu, e poupou sua vida, dando-lhe uma última lição antes de morrer. A de que nem mesmo a guerra destrói o que há de bom no espírito.
O garoto se fora, mas ele permanecera. Pegou a mão do jovem soldado e a arrumou cuidadosamente junto ao corpo sem vida. Em seguida fitou a carta, abriu-a, e não precisou ser um expert no idioma do garoto para entender a palavra que ali estava escrita. “Mãe”. Naquele momento a dor da guerra foi libertada das correntes que o tinham ensinado a forjar, e ele chorou, soluçando e dobrando o próprio corpo em espasmos enquanto as lágrimas fugiam de seus olhos como uma alma livre foge do conflito, e ele as deixou ir, uma a uma.
Chorou até que já não houvessem lágrimas para derramar. Chorou até lembrar novamente que era humano, e não uma máquina de matar. Então, dobrou cuidadosamente o papel e o guardou ao lado da carta que ele mesmo escrevera para que alguém entregasse à sua mãe caso ele fosse abatido em campo. Cobriu o corpo do rapaz com a capa que usava para abrigar-se do frio, e foi embora.
Por dias andou por campos de morte, e depois por campos de vida, com nada mais que uma força oculta a lhe guiar. Seria a mesma força que lhe dissera para poupar o rapaz? Não sabia, mas de uma coisa tinha certeza. Passaria a ouvi-la dali em diante, porque aprendera com um garoto que perdera a vida na guerra, mas que poupara a de seu adversário em seus últimos momentos.
Caminhou até que foi encontrado por pelotões aliados, sendo informado que a guerra acabara. “Mas por quanto tempo?”, pensou ele. “Quando será que teremos uma nova chance para demonstrar nossa estupidez e começar tudo novamente?”. Não sabia. Mas de uma coisa tinha certeza, que a lição que o soldado desconhecido lhe ensinara não seria esquecida. E que a voz doce e cristalina que ouvira não seria mais ignorada. Uma voz que parecia ter vindo do alto, preocupando-se o bastante com ele para ir a um campo de morte pedir que amasse a vida.
Voltou para seu mundo. Para entregar a uma mãe devastada as últimas palavras de seu filho, que perdera a vida no campo. E voltou, para abraçar novamente sua própria mãe, trazendo-lhe de volta a sua vida, que fora poupada naquele mesmo campo. Porque alguém deixara de ouvir os discursos inflamados daqueles que adoravam o ódio, preferindo escutar, em seus derradeiros momentos, uma voz carregada de amor.
Cultivar
O jardim brilhava diante de seus olhos cansados, mas satisfeitos. Rosas, narcisos, orquídeas, girassóis, azaléias, petúnias e tantas outras que faziam aquele lugar cheio de cor, de luz, de vida. Ali Seu Antônio se sentia mais jovem, apesar dos noventas anos que carregava no corpo. Ali, mal sentia a necessidade de apoiar as mãos nodosas e enrugadas na bengala que levava a tiracolo para onde quer que fosse.
A passos lentos, porém decididos, caminhou por entre aquela infinidade de matizes, fitando a beleza de cada uma delas, sentindo o aroma que exalavam e que enchiam seu corpo de vida e sua alma de alegria. Naqueles momentos sua vista turvada ficava limpa, e assim podia enxergar a plenitude e a maravilha de todo aquele jardim, que tinha plantado com suas próprias mãos no decorrer de toda uma vida.
Cada canto, cada canteiro, cada adorno tinha sido feito por ele, desde que construíra aquela casa onde passara os momentos mais felizes de sua vida. Cada flor, cada árvore, cada broto fora por ele plantado, alguns sozinho, outros com uma ajuda especial, cuja lembrança agora lhe vinha à mente enquanto olhava as cores daquelas flores.
Fazia aquela caminhada todo início de manhã, surgindo no jardim junto com os pássaros que se erguiam à primeira luz da aurora, ouvindo seu canto, que como uma sinfonia completava a beleza daquele lugar, alimentando as doces lembranças que permaneciam vívidas em sua mente, voando nas asas de sua memória, ainda cheias de vida e de cores, como aquele mesmo local, que guardava tantas delas.
Enquanto caminhava tocava delicadamente as pétalas de cada uma delas, sentindo em seus dedos a suavidade de sua textura, e conversava, perguntando como estavam e o que tinham visto enquanto estiveram cercadas pelo véu de mistério da noite que findara recentemente. Ao passar também cantava para elas, tendo a certeza de que se sentiam felizes e se abriam cada vez mais ao ouvirem a doce melodia que saía de sua voz. Mesmo velho ele recordava de cada uma das canções de sua mocidade, e apesar de modesto, era reconhecido pela beleza de sua cantoria.
Assim cantava, falava, tocava e admirava cada uma delas, às quais tinha como filhos, que plantara, que cultivara e que amara todos os dias de sua vida. Ao lembrar-se deles sua expressão mudou temporariamente, e as rugas acentuaram-se um pouco mais por causa da tristeza que repentinamente o abraçou, e pensou em como estavam distantes agora, e em como os via tão pouco naqueles anos de sua velhice.
Com uma careta momentânea sentou na cadeira macia que ali mantinha para descansar enquanto admirava aquela beleza singular, e com a lembrança dos filhos em sua mente fitou um a um lugares específicos daquele jardim, que tinham um significado especial. Olhou para o cravo que se erguia belo sob a luz daquele dia ensolarado. Para a roseira que se abria esplêndida em sua formosura. Fitou o girassol, que voltava sua face dourada para o sol que brilhava no alto. Contemplou a tulipa que coloria o ambiente ao seu redor. Vislumbrou o Lírio que abria-se para seus olhos e viu a maravilha do Ipê, que florescia em toda a sua plenitude.
Sorriu com as lembranças que guardava dos dias em que plantara cada uma daquelas flores, e ao mesmo tempo entristeceu-se pelos filhos, que agora estavam tão distantes. As flores que cultivara no jardim de sua casa estavam ao seu alcance, e próximas uma da outra, mas as que plantara em sua vida tinham se distanciado uma a uma, e agora estavam ligadas apenas por um fio, que se fragilizava a cada dia que passava. Ele mesmo.
Os filhos tinham seguido suas vidas, formado suas famílias e se afastado na distância física e sentimental uns dos outros, frequentando encontros que se limitavam a datas especiais, como natais, passagens de ano e seu próprio aniversário. Mas agora ele pensava consigo que quando partisse, e achava que aquilo logo aconteceria, aquelas reuniões provavelmente se tornariam cada vez mais esporádicas, até se tornarem apenas lembranças em um álbum empoeirado no canto da estante.
Tentara criar a todos da melhor forma possível, mas a vida corria para cada um deles, e todos tinham seguido seus próprios planos, afastando-se lentamente até que aquilo acabara se tornando um hábito, e os problemas do dia a dia de cada um os tomara a ponto de afastá-los um dos outros, ao menos intimamente. Sentia isso nas reuniões de família, em que os irmãos falavam apenas de negócios ao invés de relembrarem o passado e celebrarem o presente. Havia proximidade naqueles momentos, mas apenas física. A sentimental parecera ter se perdido no tempo.
Então, enquanto estava lembrando do passado, pensando no presente e preocupado com o futuro uma luz surgiu em sua mente, a semente de uma ideia, que passaria a germinar, como tudo o que ele plantara naquele jardim. A diferença era apenas que ele não veria o resultado daquele florescer. Ao menos não em vida. Mas ainda assim era uma ideia animadora. Sorriu, e voltou a contemplar seu jardim, pensando numa forma de plantar novamente as flores que haviam se distanciado com o passar do tempo.
Meses se passaram desde que tivera aquela ideia, a qual ele plantou e deixou para germinar depois que fosse embora, até que chegou o dia em que não mais levantou junto com os pássaros para saudar a chegada da alvorada e contemplar seu jardim. Naquele dia as flores pareceram murchar um pouco mais, pareceram menos coloridas, e por um momento, o orvalho que descia de suas pétalas podia ser confundido com as lágrimas de quem vira alguém amado partir, para nunca mais voltar.
Seus filhos vieram, de longe, cada um carregando nos olhos as lágrimas que fugiam para declarar a saudade e a dor que já não cabiam no peito, trazendo também as lembranças dos momentos vividos e das lições que tinham aprendido com tanto carinho daquele pai por quem guardavam um amor que nunca diminuíra, apesar do afastamento natural que a vida e as obrigações tinham imposto.
Foram ao velório, e sorrindo ouviram as histórias de parentes e amigos próximos, que traziam consigo, cada um, alguma história engraçada ou divertida daquele homem tão sisudo nos negócios, e tão carinhoso quando se tratava de cuidar da família e de seu principal passatempo, o jardim que por décadas cultivara em sua casa.
Depois choraram, ao despedir-se do homem que tanto amaram, e de quem agora teriam apenas a lembrança para visitarem e os bons ensinamentos para aplicarem. Mas quando saíam do cemitério foram surpreendidos pelo amigo de longa data do pai, que sempre fora advogado da família, e que naquele momento os convocava para um encontro na casa onde tinham crescido, segundo ele, a pedido do próprio Antônio.
Surpresos com aquilo, e curiosos com o que viria, foram todos juntos ao local marcado, mantendo o silêncio do luto durante todo o caminho. Ao chegarem em casa lembranças brotaram nas mentes de cada um deles, de momentos marcantes vividos em um passado distante, mas a despeito daquelas memórias, nenhum pareceu dar-se conta do jardim que fora tão cuidadosamente mantido pelo pai.
Sentados na velha sala que guardava tantas lembranças, e absortos nas memórias que surgiam enquanto aguardavam o advogado surgir com aquele repentino e inesperado recado póstumo de seu pai, eles sequer se entreolhavam, sentindo-se mais como estranhos do que como irmãos, em virtude do tempo e da distância que se impusera entre eles, fazendo reinar o silêncio em um local que no passado fora tão cheio de vida e de vozes com seus encontros e reencontros.
- Boa tarde, meus jovens. – A voz rouca a cansada surgiu repentinamente, chamando-os de volta à realidade, e quando perceberam viram o corpo já frágil do idoso advogado, que era como um tio para eles, tendo acompanhado o nascimento e crescimento de cada um.
O velho adentrou no recinto a passos lentos e vacilantes, um pouco curvado, mas em nada abatido. Lembrou-lhes o vigor e a força do pai, e por um momento passou por suas memórias os inúmeros encontros que aqueles dois amigos tiveram naquela casa por décadas, fosse para tratar de negócios, fosse para varar as madrugadas bebendo e conversando sobre toda uma variedade de assuntos. Agora restava apenas ele, e aquelas reuniões amistosas tinha sido interrompidas pelo curso natural das coisas.
- Boa tarde, tio. – Respondeu Aquiles, o filho mais novo, que fora escolhido para ser seu afilhado, e fez menção de levantar para ajudar o velho a chegar até uma das cadeiras, sendo logo repelido pelo homem com um gesto impaciente, de quem indicava que não precisava ser ajudado.
- Já nos vimos em circunstâncias melhores, eu confesso. – Disse ele, depois de sentar-se com um breve grunhido. – Já nos vimos em circunstâncias bem melhores. Uma pena que com o tempo elas se tornaram tão vagas.
Os irmãos se entreolharam constrangidos, indicando que tinham esquecido o quão direto aquele tio adotado pelo sentimento podia ser, característica que era inclusive admirada pelo pai deles.
- Me desculpem. – Continuou o velho. – Certas manias não somem com a idade, pelo contrário, apenas ficam mais acentuadas. Não vim aqui para apontar dedos e julgar. Vim apenas cumprir um dos últimos pedidos do seu pai. – Aquela era outra de suas características, a de ser direto e evitar rodeios, o que também se acentuara com o passar dos anos, especialmente numa idade em que o tempo parecia se esvair rapidamente a cada momento que passava.
- E agradeceríamos se dissesse do que se trata. – Disse Thomás, o mais velho deles, que também nunca fora um adepto a discursos e conversas cheias de floreios e rodeios.
- Trata-se, meus jovens, do testamento de seu pai.
O velho ficou impassível diante das expressões confusas de todos eles e dos murmúrios de surpresa que saíam de suas bocas.
- Testamento?! – Quis saber Maria, a primeira das filhas e segunda na ordem de nascimento. - Mas isso não faz sentido!
- Não faz mesmo! – Exclamou Aquiles. – Tio, você melhor do que ninguém sabe que nosso pai dividiu todos os bens em vida, ficando apenas com o usufruto deles. Não faz sentido ele ter um testamento.
- Mas ele tem. – Respondeu o velho, direto como sempre. – E se quiserem saber, fiquei tão surpreso quanto vocês quando soube disso, afinal, eu que cuidei de toda a papelada.
- Justamente. – Prosseguiu Thomás. – Como pode então haver um testamento?
- Pode, e há. Mas não oficial. E antes que me façam mais perguntas deixem-me terminar logo de explicar tudo. No dia em que ele me contou isso, e ouviu de mim as mesmas perguntas que vocês fizeram e provavelmente ainda querem fazer, acabou me explicando que não se tratava de nenhuma herança oficial, mas de algo mais, digamos, pessoal.
- Não entendi. – Elisa, a filha do meio, estava tão confusa quanto os demais.
- E nem vai entender se não me deixar terminar. É isso mesmo o que ouviram, uma herança de natureza pessoal. Na verdade um recado, uma mensagem, ou se preferirem, as últimas palavras dele para vocês.
- E que mensagem é essa? – Quis saber Alice, a mais bela das mulheres, e que ainda mantinha, mesmo com a idade avançada, a beleza que tanto encantara a todos em sua juventude.
- Ele não me mostrou. Apenas me entregou isso. – E retirou do bolso do paletó um envelope lacrado, com apenas um selo no formato de uma flor a fechá-lo. – Me pediu para que não olhasse, e de fato não o fiz. Disse que entregasse a vocês, e que quando estivessem sozinhos ela fosse lida em voz alta por Thomás, para que ouvissem todos ao mesmo tempo.
O velho advogado levou a mão trêmula em direção ao filho mais velho de seu melhor amigo, e emocionado entregou-lhe a carta, levantando-se em seguida, não sem um pouco de dificuldade, para deixar os irmãos a sós.
- Antes de ir. – Disse ele, virando-se novamente para os demais. – Quero que saibam que seu pai foi como um irmão para mim. O melhor amigo e confidente que alguém poderia ter, e como confidente, ele me dizia que seu maior desejo era que o laço que unia vocês não fosse quebrado pela partida dele. E espero que não seja. Ele construiu uma família bonita demais para ser separada apenas pela distância, porque a distância, meus jovens, pode até afastar, mas separar quem se ama, isso ela nunca será capaz de fazer.
Com os mesmos passos lentos, porém seguros, o velho deixou a sala, sem olhar para trás, como se não quisesse ver novamente algo que tanto lembrava o amigo que acabara de perder. De outro lado, os filhos ficaram todos em silêncio, ainda confusos e aturdidos, olhando para o envelope nas mãos de Thomás como se fosse algo vindo de outro mundo, e de fato não deixava de ser. Palavras que vinham do além vida. Um último recado de seu pai.
Depois de fitar o envelope por um longo momento, indeciso quanto ao que fazer, Thomás acabou tomando sua resolução e delicadamente o abriu, sem rasga-lo ou amassa-lo, lembrando do que o velho Antônio lhe dissera uma vez em sua infância, ensinando-lhe como as flores deveriam ser tratadas. Ao terminar de abrir o invólucro ele levou a mão à boca e reconheceu a caligrafia esmerada do pai, o que fez com que lágrimas brotassem de seus olhos.
Como se quisesse fugir delas, e ao mesmo tempo desejando saber do que se tratava aquele recado tão importante que só poderia ser dado depois que seu pai fechasse os olhos para sempre, ele respirou fundo, para recuperar a segurança que a voz perdera com o choro contido, e voltando-se para os irmãos, que o fitavam com a ansiedade estampada no olhar, começou a ler.
“Minhas crianças, por que, como devo chamá-los, senão de minhas belas e adoráveis crianças, que nunca cresceram em definitivo aos meus olhos? Sei que devem estar confusos com essa chamada repentina, essa mensagem inesperada que deixo para vocês, e enquanto a escrevo sorrio, primeiro por imaginar a expressão de seus rostos, a mesma que faziam quando eu mostrava pela primeira vez um truque bobo que nunca tinha visto quando eram crianças, ou quando lhes explicava algo que ainda não tinham entendido, mesmo depois de adultos. E sorrio também por poder, ainda que de um modo tão peculiar, falar algo para todos enquanto estão assim, um ao lado do outro, algo que tão poucas vezes passou a ocorrer com a passagem desse gingante incansável que é o tempo.
E é exatamente sobre isso que quero falar, porque apesar de sempre ter sido um homem paciente para acompanhar o crescimento gradativo de meu jardim, nunca gostei de fazer rodeios com as palavras. Deixo aqui essa carta, com palavras que escrevo com o coração, para alertar-lhes de algo, repetir-lhes uma lição que lhes dei há muito tempo, mas que parece ter sido perdida com o passar dos anos e o surgimento das preocupações. A força de uma união. Uma união chamada família.
A vida apresenta seus próprios caminhos, e muitas vezes temos de desviar do trajeto original para encontrarmos nossa própria senda, o que é natural, e assim aconteceu com cada um de vocês. Construí minha família com sua amada mãe, que partiu antes de mim, e como é natural que os frutos de uma árvore se espalhem pelo mundo, eu aceitei e fiquei feliz quando os meus próprios fizeram isso.
Cada semente que vocês plantaram foi acompanhada por um sorriso meu. Cada conquista, cada degrau que subiram e cada obstáculo que venceram me trouxeram uma felicidade que sempre suplantou a tristeza da saudade que a distância me impunha. Os filhos são para o mundo, e aceitei quando buscaram seu próprio espaço nessa vasta terra.
Alguns ficaram, a maioria foi, e em momento algum fiz disso motivo de lamento, vendo com olhos cheios de orgulho vocês plantando suas próprias sementes e cultivando seus próprios jardins, da mesma forma e com a mesma dedicação que cultivei o meu. Porque é isso que uma família representa, um grande jardim, diversificado e colorido, que deve ser amado, regado e cultivado com carinho, para que as flores que ali habitam não murchem e não venham a morrer, e acredito que tenha ensinado isso a cada um de vocês.
Não lembra, Thomás, quando plantei com você o cravo no lugar que escolheu no jardim dessa casa? Tinha pouco mais de nove anos, e era impaciente e impetuoso, sempre com pressa, sempre querendo voar por aí como o vento, e de fato foi o primeiro a ir embora viver sua própria vida. Mas era também dedicado e amoroso, mostrando-se pronto a ajudar a quem quer que fosse, não importava o momento ou a necessidade.
Por isso escolhi o cravo para que plantássemos nesse jardim, uma flor que representa o amor puro e latente, a entrega e a liberdade, e assim você se manteve por toda sua vida, e levou sua semente para outros lugares nesse mundo, espalhando a beleza daquele cravo, da mesma forma que meus netos fazem hoje em dia.
E você, minha doce Maria, a primeira das minhas meninas? Meu pequeno Lírio que me desconcertou desde a primeira vez que olhou para mim? Sempre pura, doce e inocente, mas pronta a proteger e defender tanto os que amava como os que sequer conhecia. Por isso escolhi essa flor, símbolo de pureza, inocência, doçura e proteção, para plantar com você no jardim de nossa casa quando ainda era uma criança.
E ela cresceu, assim como você, que espalhou sua doçura pelo mundo, sendo a melhor filha, irmã, mãe e esposa que alguém poderia desejar.
E como tive sorte com minhas filhas, flores tão lindas que cultivei. Você, Alice, sempre tão bela e vaidosa, forte e independente, como a tulipa que plantamos quando ainda era uma garotinha que adorava se enfeitar, e que deu frutos para esse jardim, frutos ainda mais belos do que o que você foi.
E minha radiante e sorridente Elisa, sempre iluminando a todos com essa alegria contagiante e esse sorriso cheio de luz, como um girassol, que se volta para o astro rei brilhante e dourado, a mesma flor que você me ajudou a plantar quando ainda era só uma criança com cachinhos presos em uma Maria Chiquinha. Minhas meninas, que só não foram tão belas quanto a mãe de vocês, que comigo plantou a roseira que fica no meio do jardim.
E como não lembrar do meu caçula? O meu jovem Aquiles, que não viajou a Tróia, mas saiu pelo mundo para viver suas próprias aventuras. Tão belo quanto o herói, e tão tímido e discreto, a ponto de esconder por diversas vezes seus talentos, mostrando-os tão pouco, mas encantando a todos sempre que o fazia, como o Ipê, que floresce apenas uma vez ao ano, revelando ao mundo o quão maravilhoso é. O mesmo Ipê que plantamos há tanto tempo, e que ainda está lá, no mesmo lugar, cada vez mais firme e mais forte.
São vocês o meu jardim. Minha família, minhas flores, meus maiores amores. E é nesse ponto que volto para minhas palavras anteriores, o significado de família, um grande jardim, diversificado e colorido, que deve ser amado, regado e cultivado com carinho, para que as flores que ali habitam não murchem e não venham a morrer, mas cresçam, floresçam e irradiem toda a sua beleza e seu aroma para encantar e levar alegria à vida das pessoas.
Uma única flor? Sim, é belíssima e cheia de encanto. Mas um jardim. Ahh, um jardim carrega em si a vida e a beleza de muitas delas, encantando, acolhendo, enriquecendo a vista e o sentimento de quem o vê, de quem o visita, de quem o vive. Um pequeno mundo cheio de vida, de cores, de alegria e de aconchego, onde um conjunto de matizes e aromas se formam para nos fazer sonhar acordados.
E sabem o que é mais belo em um jardim? O conjunto, o grupo, a união que o forma. Como em uma família. Quando eu me for não sei o que será do que plantei nos limites da minha casa, mas o que mais me inquieta é não saber o que será do que plantei na extensão da minha vida... vocês. Por isso, minhas crianças, eu lhes faço um último pedido. Não esqueçam do que plantei.
Não as flores, não as árvores, mas vocês. Não esqueçam do jardim de onde vieram, e para o qual sempre poderão voltar, porque nele há uma semente mais bela que a flor mais bonita, e mais forte que a árvore mais resistente. A semente do amor, e essa eu tenho certeza que germinou em plenitude em nossas vidas. Plantem seus próprios jardins, mas não esqueçam daquele de onde vieram, porque isolados vocês são lindos, mas juntos... ah, minhas crianças, juntos vocês são as cores mais lindas que já vi em minha vida.
É esse o último pedido desse velho que tantos os amou. Cultivem!
Com amor,
Um pai, um homem, um simples jardineiro.”
Terminada a leitura os irmãos silenciaram, como se um mundo de lembranças e pensamentos voasse por suas mentes tomadas por um misto de sentimentos conflitantes. Lágrimas de tristeza se mesclavam com sorrisos trazidos pelas doces memórias dos dias que passaram com aquele velho e tão amado pai. Mas ao mesmo tempo se entreolhavam, envergonhados pela distância que tinham aberto entre eles mesmos.
Mas ao menos agora viam. Era como se as lágrimas de seus olhos lavassem uma sujeira há muito formada, que embaçara e confundira suas vistas. Repentinamente eles, que há pouco pareciam estranhos parentes que raramente se encontravam em encontros esporádicos, passaram a enxergar-se novamente como o que de fato eram, irmãos, amigos... família.
Thomás e Maria lembraram das brincadeiras da infância, quando ainda eram pequenos, correndo pelo jardim ao redor do pai enquanto ele cuidava de suas flores e jogava água da mangueira nos dois, que sorriam e enchiam o ar com os pequenos gritos que só as crianças sabiam dar.
Alice lembrou-se dos namoros no banco do jardim, e do olhar ciumento de seu pai, que brincava com ela logo que o pretendente ia embora, dizendo-lhe que quem quisesse uma flor tão bela teria que se mostrar digno de leva-la dele, guardião daquele palácio e da beleza que o envolvia.
Elisa recordou as piadas que contava e as peripécias que aprontava, fazendo o pai, a mãe e os irmãos se dobrarem de tanto rir, sempre iluminando seus rostos com seu doce e contagiante sorriso.
E Aquiles olhava pela janela, lembrando que um dia aquele jardim que havia lá fora tinha sido seu mundo de faz de conta, onde nos momentos em que, deixando a timidez de lado, brincava com os pais e os irmãos dando a cada um os personagens que criava em sua cabeça, e vendo o encantamento e a diversão deles em desempenhar cada papel.
Foi aquele mundo de faz de conta e os sorrisos e a admiração que via nos rostos daquelas pessoas tão queridas que o encorajaram a ser um escritor, e levar para o resto do mundo o encantamento das coisas que ali vivera e que tinham aberto para ele um mundo de fantasia, e concluiu que nunca fora tão feliz em sua vida como naqueles dias, em que dividira o jardim de sua vida com as flores tão belas que formavam sua família.
Com lágrimas nos olhos e um sorriso no rosto ele pegou na mão de Elisa, que pegou na de Alice, e assim por diante, até chegar na de Thomás, e sem precisar de qualquer aceno ou explicação eles foram, de mãos dadas e corações unidos, ver uma vez mais o belo jardim que havia lá fora.
Depois daquele dia cada um voltou para sua própria vida, e Elisa permaneceu tomando conta do jardim do pai. Mas foram com algo novo dentro de si. Uma semente, que o velho Antônio havia regado novamente com suas últimas palavras, e que cada um agora iria cultivar com aquele amor puro e incondicional que sentiam.
Daquele dia em diante os reencontros se tornaram mais frequentes, e sempre que alguém passava por aquele jardim tão bonito e via aqueles irmãos sorridentes e alegres pensava, em seu íntimo, que aquelas sim, eram as flores mais belas que Seu Antônio tinha plantado.
A flores de um jardim chamado família.
Mãe
Nervosa ela olhava para o médico à espera de uma resposta, sentada em uma cadeira desconfortável dentro de uma sala fria e estéril de consultório. Sem perceber que o fazia, apertava os dedos de uma mão com os de outra em uma troca contínua de posições que denotavam sua apreensão, consumida pela expectativa da notícia que estava para receber daquele homem que a fitava impassível do outro lado do birô.
- Os exames confirmaram o que já suspeitávamos. Você vai ser mãe. Parabéns. – Disse ele, mudando a expressão fria e ilegível que sustentara até pouco tempo antes, para um sorriso que destacava a satisfação indubitável de dar aquele tipo de notícia.
Repentinamente o tempo pareceu parar ao seu redor. As mãos já não se apertavam de nervosismo, e sequer sentiu quando o marido as segurou ternamente, não ouvindo também as palavras de alegria que ele lhe destinava em uma irrefreável torrente de felicidade causada pela notícia de que iria ser pai.
“Grávida”, ouviu sua própria voz ecoando nos recônditos de sua mente. “Grávida! Mas o que isso quer dizer? O que significa? O que eu faço agora? O que devo fazer daqui em diante”? As perguntas se multiplicavam em sua cabeça, dúvidas em sequência que pareciam surgir em uma fila sem fim de questionamentos e incertezas.
Desde que começara a ter capacidade de planejar algo ela sempre traçara seus objetivos de forma precisa, e buscara cumpri-los de forma pormenorizada, guiada por uma lógica de planejamento que desenvolvera e se acostumara a aplicar em tudo o que fazia ou almejava fazer. Na vida familiar também não fora diferente. “Noivado, casamento, família, estabilidade na profissão que escolhera seguir, um tempo de mais ou menos dois anos para poder viajar e aproveitar a vida à dois e depois de tudo isso, engravidar.
Mas a vida não é lógica, e por mais que se faça planos e se trace objetivos, nem sempre o caminho escolhido é o que vai levar ao lugar desejado, e desvios surgem a todo tempo na estrada que se percorre desde o primeiro abrir de olhos até o último fechar deles. E com ela não fora diferente. Alguns meses de casamento, algumas poucas viagens, a casa ainda sendo decorada, e repentinamente surgem os primeiros enjoos para mudar tudo e dar uma verdadeira reviravolta no trajeto da senda que fora cuidadosamente traçada por ela.
“Grávida”. A palavra ecoava em sua cabeça confusa, lenta e demoradamente, como uma fita cassete tocada em um gravador cuja pilha está chegando ao fim. E agora? O que faria? Como agiria? Para onde correria? Aquilo não estava nas linhas do livro que tinha escrito para os dias que viriam em sua vida. Ao menos não para aquele capítulo, e repentinamente alguém parecia ter pulado as páginas até o momento em que ela receberia aquela notícia, em um outro tempo, em um contexto totalmente diferente.
Com quem falaria? Como aprenderia a ser mãe? Sua própria mãe morrera quando ela ainda era uma criança, e crescera ao lado de um pai que a educara da melhor forma possível, com todo o amor que podia dar, mas que ainda assim não sabia nada sobre carregar um filho dentro da barriga por nove meses. Amigas? Novas demais ainda. Algumas poucas casadas recentemente, ainda vivendo os planos que ela traçara para si mesma.
E a casa? E o trabalho? Como se estabeleceria no emprego e construiria uma carreira em uma época onde o mercado só dava atenção e espaço aos homens? O que seria de sua vida dali em diante? A sensação de tempo parado foi repentinamente substituída por um senso de aceleração que a deixou desnorteada, como se a fita de um filme fosse repentinamente adiantada e os personagens passassem a movimenta-se em uma velocidade estonteante.
Não conseguiu entender as palavras do médico, nem as do marido, que sorria para ela com um misto de alegria e confusão pela reação de espanto que era nítida na expressão que ela sustentava no rosto naquele momento. Então, tudo o que conseguiu fazer foi olhar para a própria barriga, ainda reta, sem uma curva sequer que mostrasse que carregava um filho em seu ventre.
Lentamente levou as mãos até ela e a tocou, sentindo uma espécie de calma que surgiu tão repentinamente quanto o nervosismo desenfreado que a acometera momentos antes. “Uma vida”, disse a si mesma. “Meu DEUS, me ajude, porque aqui dentro tem uma vida, e não faço a menor ideia do que fazer a partir de agora”.
Nervosa ela olhava para o marido que a fitava e segurava sua mão, à qual apertava com uma força descomunal sempre que uma contração a atingia. Atrás dele as luzes de um corredor iluminado passavam velozmente, como as lâmpadas de postes vistas da janela de um carro em alta velocidade. Deitava na maca ela tentava lembrar-se das aulas sobre aquele método de nome estranho que ensinava a respirar para poder acalmar-se em um momento como aquele.
“Qual é mesmo o nome?”, perguntava-se. “Lamaze! DEUS, aqui estou eu com a barriga do tamanho de uma melancia, atacada por essas dores terríveis e tudo o que consigo fazer é tentar lembrar o nome de um método que sequer estou conseguindo aplicar. Ah, seu filho da mãe, isso é tudo culpa sua”. Dizia a si mesma enquanto com olhos arregalados e dentes à mostra olhava para o marido, que a fitava com um medo tão nítido quando as luzes que passavam velozmente atrás dele.
Queria que a dor acabasse, que aquilo passasse, que a barriga diminuísse e que pudesse voltar a fazer as coisas que normalmente fazia antes de engravidar. Mas então lembrou-se das palavras da sogra, única mulher que tivera uma experiência materna, única a quem pôde recorrer naqueles momentos cheios de dúvidas e perguntas. “Sua vida nunca mais será a mesma novamente. Você nunca mais terá a paz que teve um dia. Sempre ficará preocupada com o que sua criança estará fazendo, mesmo que sua criança já seja adulta e tenha construído sua própria família. Nunca mais...”, as palavras ecoavam, “nunca mais terá paz. Mas quer saber de uma coisa? Cada momento valerá à pena”.
Mas naquele momento, com toda aquela dor e toda a apreensão que sentia, aquilo não parecia valer à pena nem um pouco, nem mesmo da forma mais remota, e ao mesmo tempo em que queria colocar para fora aquela criança, queria também que ela ficasse ali dentro, para que a paz que sua sogra dissera que nunca mais teria não lhe fosse retirada. Queria que a dor acabasse, mas não queria que a responsabilidade começasse.
Mas invariavelmente ela começaria, e começou. Depois de um bom tempo lutando contra a dor ela ouviu um som que mudou sua vida completamente. Um som estridente, vivo e reverberante. Um som que traduzia em sua pequenez a grandeza que era a vida, e ainda desnorteada por tudo o que estava acontecendo, viu nos braços da enfermeira o pequeno ser que carregara dentro de si, e que continuaria carregando todos os dias, mas agora dentro da mente e do coração.
Sorriu para o marido, com lágrimas nos olhos, com alívio no peito, com o amor aquecendo seu coração, e naquele momento esqueceu todas as preocupações, todos os planos traçados que tiveram de ser mudados, toda a apreensão com a paz que jamais teria novamente, e tudo o que quis foi que o tempo parasse enquanto segurava aquela pequena vida em seus braços. Era uma menina. Era mãe.
Nervosa ela fitava o médico enquanto ele examinava sua filha, pálida e deitada na maca do hospital. O peito apertado, comprimido de preocupação, os olhos atentos, sem perder um movimento sequer, as mãos apertando umas às outras naquele seu gesto característico que buscava uma forma de dar vasão à apreensão que a tomava por dentro.
Anos haviam se passado desde que segurara aquela pequena vida pela primeira vez, e desde então a impressão que a assaltava a cada dia era a de que havia dado um salto no tempo, e que repentinamente a filha crescera a olhos vistos, tornando-se a seus olhos a criança mais bela que existia. Oito anos dividiam aqueles momentos, mas ela ainda sentia o mesmo amor, e era dominada pela mesma preocupação. Lembrou novamente das palavras da sogra, “nunca mais terá paz... mas cada momento terá valido à pena”, e até então tinha valido.
Olhou apreensiva para o médico quando ele terminou o exame, seguindo-o com olhos cheios de ansiedade, querendo saber o que acometera aquela criança tão ativa e cheia de vida para deixa-la pálida e sem forças a ponto de deixa-la de cama e sem vontade de fazer nada que não fosse dormir. Em sua mente preocupada a filha corria risco, e faria de tudo para impedir que qualquer mal acontecesse a ela.
- Resfriado. – Ouviu o médico dizendo, sem acreditar em uma palavra sequer. – Um simples resfriado que a deixou indisposta. Vou passar uma receita e aconselho apenas que permaneça com o repouso que ela já vinha tendo. Além de uma alimentação reforçada.
- Mas Doutor... – Ela começou, já preparando um rol de doenças alternativas das quais ouvira falar, e que achava que estavam atacando a menina. Enfrentaria a todas incansavelmente até ver a garota curada.
- Resfriado. – Interrompeu o médico, que já conhecia de longa data as preocupações às vezes exageradas daquela cuidadosa mãe. – Pode ficar tranquila e fazer o que estou dizendo.
O médico deu um meio sorriso com a intenção de tranquilizá-la e saiu em direção ao birô para preparar a receita, deixando mãe e filha sozinha. Ela então aproximou-se da garota, que já crescera, que já corria e brincava. Que já subia em árvores e parecia voar quando subia em um balanço ou em uma bicicleta, fazendo peripécias a ponto de deixa-la maluca, porque para ela aquele ainda era seu bebê, tão frágil quanto fora no dia em que saíra de sua barriga.
Afagou os cabelos da filha e rezou para que o médico tivesse razão, aproximando-se da garota e dando-lhe um beijo na testa, que foi retribuído com um sorriso que pareceu iluminar aquela sala fria. Não havia preocupação que fosse maior do que era a recompensa que recebia por aquele sorriso.
Nervosa ela olhava para a filha, enquanto esta girava em rodopios com um enorme e enfeitado vestido branco, girando tal qual uma princesa saída de um conto de fadas. No rosto um sorriso resplandecente, aquele mesmo sorriso que viu pela primeira vez ainda sem dentes no dia em que aquele bebê abrira os olhos pela primeira vez. O mesmo sorriso que afastara a preocupação que a torturara quando a garota estivera doente na maca de um consultório.
Agora era um sorriso de felicidade plena, de quem encontrara o que sempre estivera procurando. De quem estava prestes a realizar um sonho. Vestida de noiva a filha rodopiava enquanto provava o vestido que usaria em sua noite encantada, hipnotizando a mãe, que a contemplava se perguntando onde tinham ido parar todos aqueles anos em que a menina passara de um bebê para uma mulher feita, agora com a mesma idade que ela tinha quando se casou cheia de planos que tiveram de ser modificados com a chegada daquela vida que mudara sua existência.
Seu peito era um misto de tristeza, preocupação, ansiedade e felicidade. Estava triste, porque a filha estava casando, dando seus próprios passos e consequentemente seguindo a ordem natural das coisas para sair de casa e começar sua própria família. Preocupada e ansiosa porque torcia para que tudo desse certo, e não queria que ela se machucasse ou não tivesse sucesso em algo tão almejado como aquele casamento. E feliz, porque não havia como, e nunca houvera como ficar sequer remotamente infeliz com aquele sorriso que tanto iluminava sua vida.
Lembrou, assim como fizera tantas vezes antes, das palavras que ouvira no passado. “Jamais terá paz novamente, nem quando eles formarem suas próprias famílias... mas cada momento valerá à pena.” Dias depois via a filha entrar na igreja, radiante de felicidade, tal qual um anjo, e como sempre acontecera desde seu nascimento, aquele sorriso a tocava por dentro, afastando cada preocupação, cada tristeza, cada incerteza que pudesse existir.
Apreensiva ela esperava sentada na recepção do hospital, lembrando-se do dia em que percorrera os corredores daquele mesmo local para ter ela própria um bebê. E agora era sua criança, que crescera na velocidade do pensamento quem estava para dar à luz à sua própria filha. Lembrou-se da dor, do nervosismo, da incerteza e do medo do que estava por vir. Das mudanças, da responsabilidade, da preocupação que perduraria por toda uma vida, como naquele momento, em que ansiava por notícias do estado de saúde da filha e da primeira neta que estava por vir.
Pernas inquietas que mexiam-se sem pausa, mãos entrelaçadas, apertando-se ansiosamente, como se fossem encontrar uma na outra a paz de que necessitavam, olhos que moviam-se ao menor sinal de movimento na expectativa de alguma notícia. À exceção da dor, parecia até que era ela quem estava para dar à luz. Então seu coração bateu mais forte e pareceu logo em seguida parar dentro do peito quando viu o médico se aproximando, não reparando, tamanho era seu nervosismo, que ele vinha com um largo sorriso no rosto.
- É uma menina. – Disse ele, para os ouvidos confusos daquela avó apreensiva, que demorou alguns instantes até assimilar o significado daquelas palavras, enquanto era abraçada pelo marido e pelo genro. Uma menina. Uma menina para sua menina.
Depois que tudo fora arrumado ela caminhou até o quarto onde a filha repousava, e antes de olhar para o bebê que ela tivera, olhou primeiro para o seu. Adulta, casada, mãe, mas ainda assim era seu bebê, e sempre seria. Nunca deixaria de ser e neném que segurou no braço tantos anos antes. Nunca deixaria de ser a menina que tanto a preocupou deitada na maca daquele consultório.
Beijou a filha, e depois seus olhos se encheram de lágrimas ao verem a neta ressonando ao lado da mãe. Era mágico dar à luz, mas era mais mágico ainda ver o fruto que saíra de sua barriga tendo a mesma alegria que tivera em um dia que agora fazia parte do passado que vivia em suas lembranças. Sorriu e acariciou delicadamente a testa da neta que dormitava como se o mundo fosse um reduto de paz. Então lembrou-se de algo que ouvira um dia, já não se lembrava onde ou de quem. “Vó é mãe duas vezes”, e era justamente aquilo que sentia. Seus dois bebês, um ao lado do outro. Seus dois bebês que amaria para sempre.
Sentada em sua cadeira ela observava tranquila e com um sorriso leve no rosto marcado pelo tempo, enquanto a filha arrumava nervosamente as coisas para levar a neta ao hospital. Seu olhar então perdeu-se momentaneamente, fitando o vazio enquanto seus pensamentos viajavam no tempo, dividindo-se em dois momentos que agora estavam guardados na estante da memória. O dia em que fora mãe, e o dia em que fora mãe duas vezes.
Olhou para a neta, para a barriga que se estendia adiante, guardando um fruto de amor. Contemplou cada detalhe daquela cena, tentando lembrar se em seu passado se aqueles mesmos gestos tinham sido feitos por ela, mas daquele dia tudo o que conseguia lembrar agora era a felicidade que sentira ao ouvir o primeiro choro, ao ver os pequenos olhos se abrindo pela primeira vez, ao sentir um amor que só uma mãe poderia sentir nesse mundo.
Fitou a filha, que agora seria avó, que seria mãe duas vezes, que partilharia da alegria que ela sentira um dia, de ver a magia repetir-se com quem tanto amava. Viu a preocupação em seus olhos, a mesma que tivera tantas vezes no passado, e naquele momento lembrou-se uma vez mais das palavras que a sogra dissera, mas recordando-se especialmente das últimas. “Vai valer à pena”. E valia.
Valia e tinha valido cada minuto, cada noite mal dormida à espera da filha que saíra para alguma festa, cada apreensão sentida nas vezes que a sua menina tinha ficado doente. Cada aguardar ansioso pelo resultado de um vestibular, de uma seleção que marcara as subidas dos degraus que a sua garotinha galgara na vida. Ali estava ela. Com marcas finas surgindo no rosto. Com cabelos brancos insistindo em aparecer na cabeça. A sua menina.
A pela já não era viçosa, o corpo já não era esbelto como fora um dia. Já era uma senhora. Mas aos seus olhos ela ainda era a mesma garotinha. O seu bebê. Preocupada, a filha dirigiu seu olhar para ela, e ambas se fitaram, uma parecendo entender perfeitamente o que se passava com a outra, em uma conexão que apenas mães e filhos possuem. Naquele momento o passado abraçou o presente, e ela sentiu a mesma onda de amor que sentira no dia em que em seus braços o seu bebê tinha aberto os olhos pela primeira vez.
Sim, tinha se preocupado, mas as preocupações de uma vida inteira não chegavam perto de ofuscar o brilho daquele olhar, o brilho daquele sorriso, e a luz da sensação única que só quem era mãe podia sentir.
O tempo passara, e continuaria a passar. Ela sempre a amara, e continuaria a amar o seu bebê, a sua menina, a filha que se tornara mulher, mãe e avó. Sim, valera, valia e sempre valeria à pena, porque ela era algo que nem todos podiam ser, e sentia algo que nem todos podiam sentir.
Valera, valia e sempre valeria à pena. Porque no início e no fim de tudo ela era algo único. Ela era mãe.
Minha melhor lembrança
Parado na entrada da velha casa ele parecia fitar o vazio, com o olhar perdido em pensamentos que voavam em sua mente fértil. Encostado à porta, com alguns fios grisalhos aparecendo em seus cabelos, com as finas rugas que começavam a ganhar espaço em seu rosto ele olhava para algo que parecia transcender o espaço, que parecia transcender o próprio tempo. Nas mãos um livro, antigo e gasto, mas que segurava com o cuidado que só aqueles que amavam algo seguravam. Nas mãos um livro antigo, e nas mente lembranças igualmente antigas, nas quais começava a mergulhar, viajando para um passado distante, onde estivera no mesmo lugar em que estava agora...
A tarde avançava enquanto a algazarra tomava conta da casa, ecoando pelo espaço cheia de vida e animação. Risadas espalhavam-se pelo ambiente, correndo pelos corredores e salões, tornando o ambiente normalmente calmo e silencioso em uma mistura de vozes que se alternavam animadamente, contagiando qualquer um que as ouvia. Qualquer um menos o menino sentado na pequena escada de pedra que dava para o portão de entrada.
Com o queixo apoiado nas mãos o garotinho fitava silenciosamente o jardim colorido, ricamente adornado que se estendia pela entrada da casa. O céu azul era iluminado pelo sol que brilhava em sua plenitude e jogava sua luz dourada pelo verde e resplandecente gramado e pelas flores multicoloridas cuidadosamente arranjadas no local, mas toda aquela paisagem destoava do humor do menino, que acabrunhado a tudo olhava, sem parecer reparar em nada do que via.
O fato era que enquanto a alegria e a algazarra se espalhavam pelo local, havia um lugar que naquele momento ela não conseguia alcançar, o coração daquela criança, e o motivo daquela tristeza repentina era que justamente toda a animação que se espalhava pelo ambiente advinha da última reunião que a família fazia antes de uma despedida que em nada agradava o garoto.
Com poucos amigos, que via apenas na escola e que se distanciavam no tempo das férias, o garotinho era obrigado a ficar só em uma casa enorme, com uma área esplêndida, mas que tinha apenas ele como criança. Aquela era uma das desvantagens de se morar em uma casa longe da cidade, opção que podia até agradar os adultos, mas em pouco alegrava crianças que precisavam de amigos e brincadeiras para passar o tempo, que naquele local parecia caminhar preguiçosamente.
Mas naquelas férias o menino experimentara algo diferente. Uma visita há muito esperada, que sempre que acontecia enchia seu peito de alegria, e daquela vez não tinha sido diferente. A visita dos avós. Morando distantes dele, o avô e a avó eram vistos ao menos duas vezes por ano, uma nas férias de inverno, e a outra no período das festas de fim de ano, e eram encontros que sempre deixavam o garotinho repleto de contentamento.
A relação entre avós e neto seguia todo o regramento que deve existir entre estes parentes. Os mais velhos o mimavam até o limite do aceitável, e o garoto se deixava mimar e aproveitava ao máximo cada momento daquela relação. Naquelas visitas ele esquecia a distância da cidade e a saudade que sentia dos amigos, dedicando cada momento àquele casal que tanto o alegrava.
Com a avó gostava de sentar-se na mesa da cozinha, empanturrando-se com os doces que ela preparava, raspando a cobertura de chocolate que ela fazia para os bolos que logo mais ele devoraria, e dela recebendo beijos e abraços cheios de carinho. Mas era com o avô que o menino dividia suas melhores horas, e isso porque, se houvesse em todo aquele mundo um contador de histórias melhor que aquele simpático velho, essa informação tinha sido mantida oculta de todos.
Passava horas e horas ouvindo os contos, aventuras e poesias contadas e cantadas pelo avô, com ouvidos atentos e olhos brilhando enquanto o velho contava histórias que lhe enchiam o peito de emoção, e naqueles momentos o tempo parecia sair de uma lentidão irritante para chegar a uma velocidade frustrante que punha um rápido fim a uma diversão tão grande. As melhores experiências eram as que passavam mais depressa.
E assim como o tempo voava na velocidade do pensamento enquanto ouvia aquelas histórias, também voou durante aquelas semanas, que pareceram ter passado em um piscar de olhos, chegando àquele momento de despedida, onde a tristeza e a solidão antecipada invadiam o peito do garoto naquela tarde em que os avós já estavam de malas prontas para voltarem ao seu lar.
Enquanto a algazarra continuava a espalhar-se, e o menino fitava silenciosamente o jardim à sua frente, passos foram dados perto de onde ele estava. Passos lentos, porém seguros, de alguém que já vivera muito, mas que ainda não se cansara de viver. O menino então foi retirado do isolamento de seus pensamentos quando o som das pisadas se tornou alto o suficiente para ser percebido, e ao olhar para cima viu o rosto enrugado e sorridente do avô, alegre e iluminado, como ele se acostumara a ver no momento de suas narrativas.
- Mas vejam só o que temos aqui. – Disse o homem, o fitando de cima. – Já vi pessoas tentando entrar em festas para as quais não tinham sido convidadas, mas é a primeira vez que vejo um convidado fugir da festa, especialmente uma tão boa como a que estamos fazendo no quintal.
O garoto limitou-se a voltar à posição em que estivera antes da chegada do velho, e voltou a apoiar o queixo nas mãos, com a tristeza estampada na expressão. Percebendo aquilo, o avô agachou-se, dando um curto gemido com o esforço, e sentou-se ao lado do menino no batente da escada.
- O que houve garoto? Não o vejo com essa cara de decepção desde que perdeu-se momentaneamente daquela linda princesa, que ficou oculta pelas ilusões da floresta encantada.
- Você sabe que eu não me perdi de princesa nenhuma vô. Quem se perdeu foi o personagem da história que você contou.
- Como assim? – Disse o velho, fingindo uma cara de espanto. – Mas é claro que você se perdeu naquele dia. Sempre que alguém escuta ou lê uma história, essa pessoa entra nessa história, e muitas vezes se imagina como algum personagem, como o príncipe, por exemplo. Vai dizer que não se imaginou como o príncipe naquele dia?
E piscou de forma divertida um olho para o neto, que por um momento sentiu vontade de rir. Mas o ensaio de um sorriso voltou a ser substituído pela tristeza que tinha no olhar.
- Vamos garoto. Já te contei tantas histórias durante esse tempo todo, por que então não me conta uma? Por que está com essa cara de quem está lendo os últimos capítulos de um livro que não quer que acabe?
- Porque a história de que gosto tá acabando. – Respondeu o menino, com uma voz ainda mais acabrunhada causada pela pressão das mãos onde o queixo se apoiava.
O avô então entendeu o motivo daquela tristeza, e sorriu por dentro, um sorriso de compreensão, de quem entende bem que as melhores coisas são as que passam mais rápido, mas que deixam lembranças que duram pela eternidade.
- Então está triste porque eu e sua avó estamos indo embora.
- É. – Limitou-se a responder o menino.
- E por que um garoto de dez anos, cheio de coisas para fazer por aí, iria ficar triste com a partida de dois velhos que ocupam boa parte do seu tempo de diversão fazendo apenas as coisas que os velhos podem fazer?
Sabia que a pergunta fora feita apenas para puxar um pouco mais a linha da história que o neto contaria, ou em outras palavras, queria apenas puxar conversa. Lembrou-se de sua época de criança, e de como gostava da companhia do avô, por mais calado que ele fosse.
- Eu gosto de ficar com vocês. E quando vão embora fico muito sozinho aqui. Gosto dos doces da vovó e das coisas que ela conta sobre as receitas, sobre a vida dela e sobre as traquinagens do papai quando tinha a minha idade. Mas gosto principalmente das suas histórias.
- Ah, então você gosta das minhas histórias também. Pensei que apreciasse apenas as fofocas da sua avó. – O velho deu um leve escorão no menino com o cotovelo, e ambos começaram a rir.
- Não queria que fossem. Agora vou ficar aqui sozinho.
- Mas você tem seus pais.
- É diferente. O papai passa o dia trabalhando, e a mamãe tem que cuidar da casa. Quando fico perto é para escutar ela falando do capítulo da novela ou reclamando que queria trabalhar em algo que não fosse cozinhando, lavando ou dando ordens a empregados, e que as mulheres deveriam fazer uma revolução nesse mundo.
- É, eu escuto a sua avó falando isso direto. E quer saber? Elas têm razão. Mas me diga, e os seus amiguinhos da escola? Por que não os chama para brincarem aqui? Tem espaço de sobra. Esse lugar é praticamente uma granja.
- Eu já fiz isso. Mas alguns estão viajando, e os que ficaram disseram que os pais não os trariam aqui porque é longe demais. Não entendo porque o pai e a mãe escolheram esse lugar, que é afastado de tudo. Não é nem um pouco animado.
- Quando você crescer um pouco mais vai entender a escolha deles. – Os olhos do velho correram por todo o lugar, como se fosse um desejo íntimo viver em um ambiente como aquele.
- Não vou entender não. Nem quero. Só queria amigos pra brincar. Alguém para passar o tempo. Você é o único amigo que tenho aqui vô, e agora vai embora.
- Não diga isso garoto. – E assanhou o cabelo do menino, puxando-o para si e dando-lhe um abraço. – O seu pai é seu amigo, ele só chega um pouco cansado do trabalho, e só faz isso porque quer dar o melhor para você. Mas está se esforçando. Já tivemos algumas conversas sobre isso, e me prometeu que vai se esforçar mais. – O menino pareceu não se importar muito com aquela informação, o que fez o velho continuar. – E olha só, tenho uma coisa que vai fazer você se animar.
- Duvido!
- Pois vai dar de cara com o chão seu bobo. Quando estava falando com seu pai ele me disse que você estava tomando gosto pelos livros. Bem, fazia um tempo que queria te dar um presente, algo que o meu pai me deu, e depois eu o dei a seu pai, mas ele acabou esquecendo em minha casa quando foi morar só. Algo especial.
- O que é? – O menino virou-se, curioso e com os olhos brilhando diante da perspectiva de receber um presente, o que fez o velho dar um de seus sorrisos enrugados, mas simpáticos.
- Isso aqui. - E colocou a mão dentro do paletó marrom que usava, tirando de lá um pacote embrulhado, que foi seguido de perto pelos olhos atentos do garoto.
- O que é isso vô?
- Isso meu garoto, é algo que vai se tornar um dos seus melhores amigos. Me diga, qual foi a última vez que viajou?
- Nas férias de verão, quando fui visitar vocês, lembra?
- Sim, lembro. Mas qual foi a última vez que viajou sem sair do lugar?
- Eu nunca fiz isso.
- Ah, fez sim. Ontem mesmo eu e você fizemos isso. Veja bem, sempre que alguém conta uma história para outra pessoa, elas estão viajando. Uma fazendo o papel do guia, apresentando a outra a novas paisagens e locais que ela ainda não conhecia.
- Não entendi. – O menino estava confuso, mas continuava atento ao pacote que permanecia na mão do avô.
- Qual foi a história que contei ontem?
- A do pequeno rapaz que foi além das montanhas misteriosas, para ir atrás do espírito que poderia tornar realidade seu maior sonho.
- E por onde ele passou nessa jornada?
- Por matas fechadas, rios cheios de correntezas, florestas misteriosas onde vários seres habitavam e no fim, pelas montanhas enfeitiçadas, morada dos mais diversos espíritos. – O avô sorriu ao ver que o entusiasmo voltara ao garoto, concluindo que o menino de fato gostava de histórias, e que o presente que tinha para ele estaria sendo entregue em boas mãos.
- E você já tinha ido a esses lugares antes?
- Nunca!
- Então. Fizemos uma viagem sem sair do lugar, eu fui seu guia e lhe apresentei mundos novos e pessoas novas. Entendeu agora?
O menino ponderou um pouco, tirando pela primeira vez os olhos do pacote, e depois deu um tímido sorriso, mostrando ao avô que compreendera tudo.
- Ótimo! – Disse o velho. – Agora imagine ter um agente de viagens desse tipo, um guia em tempo integral, que poderá leva-lo a vários lugares, a hora que você quiser, não importa o local e nem o momento. O que acharia disso?
- Eu iria gostar bastante.
- Pois você já conhece ele. Ou ao menos já conheceu alguns deles.
- E quem são?
- Os livros meu rapaz! Os livros são guias, são veículos, são naves, navios, foguetes, aviões, carros, carruagens, cavalos, tudo o que possa te levar de um lugar ao outro. São portais para outros mundos, que você pode abrir e passar em um piscar de olhos, sempre que quiser. Eles te levam ao desconhecido, te apresentam pessoas novas, e uma vez que você já conhece esses lugares e personagens, sempre que quiser pode revisita-los, bastando, para tanto, abrir esses portais. Livros, meu menino! E seu pai me disse que você tem gostado bastante deles.
- Tenho sim. Eu estou até lendo um sobre uma viagem para a lua.
- Ah, Júlio Verne. Um dos melhores meu jovem. Um dos melhores. – E sorriu, olhando momentaneamente para o céu, como se estivesse viajando no tempo, para uma época distante em que fora apresentado àquela história pela primeira vez. – Mas antes que me perca em uma das minhas viagens, vou dar logo seu presente, afinal, daqui a pouco sua avó chegar para lembrar que temos um voo a pegar, e temos que chegar a tempo.
O velho entregou o pacote ao garoto, que já tinha esquecido dele, distraído pelo rumo que a conversa tomara. O menino o pegou e o pesou nas mãos, sacudiu para checar se tinha algo dentro, e depois rasgou avidamente o embrulho, mas a expressão que fez deixou claro para o avô que tinha se decepcionado com o presente.
- Não gostou? – Perguntou o velho.
- Gostei. – Respondeu o menino, sem jeito e sem o mínimo talento para a mentira.
- Como uma pessoa que cria histórias quase o tempo todo, eu desenvolvi uma certa experiência para identificar quando alguém está mentindo, e sei bem que essa é uma dessas ocasiões. Não se preocupe garoto, eu desconfiava que você faria essa expressão. Raramente meninos de dez anos vibram quando recebem um livro de presente, preferindo aqueles bonecos ou caminhões, estilingues ou armas de brinquedo para brincar de cowboy. Não se preocupe, não estou chateado. Quando meu pai me deu ele de presente eu esperava ganhar um estilingue, e provavelmente fiz essa mesma cara. O seu pai também, e pelo jeito ele continuou a não gostar do presente, já que o deixou em casa quando foi embora. Mas uma coisa eu garanto... se você gostar de ler como esse seu velho avô gosta, ah, esse vai ser o melhor presente que vai ter recebido. Um portal para muitos, muitos mundos.
O garoto olhou para o presente e fitou atentamente cada detalhe. Passou as pontas dos dedos pela capa ricamente encadernada, cheia de adornos, feita em couro. Virou o objeto em suas mãos, aproximou-o do nariz e o cheirou. Ao fazer aquilo inspirou profundamente, fechando os olhos, e por um momento o avô recordou-se de todas as vezes que fez o mesmo, repetindo o gesto por anos e anos, sempre que pegava em um livro.
“Livros têm vida”, pensou consigo. “Têm forma, têm cheiro, têm toque e sabor, como as histórias que contam”. Naquele momento ele viu que o garoto amaria os livros tanto quanto ele amava. Que eles seriam amigos daquele menino, assim como foram dele, e que o neto visitaria tanto aqueles portais para mundos fantásticos quanto ele tinha visitado.
- Não tem título.
- O que? – Perguntou o velho, que voltara a entrar em seus devaneios temporais.
- Não tem título vô. Nem na capa e nem ao lado... e nem dentro. – Disse, depois de abrir o livro para conferir, e olhou confuso para o avô.
- Não garoto. Não tem.
- E como vou saber o nome da história?
- Você vai saber. O nome é você quem vai dar.
- Qual nome você deu? – Perguntou o garoto, depois de analisar novamente o volume.
- Ah, isso eu não posso dizer. Se eu disser posso acabar lhe influenciando. É você que tem que escolher, depois que visitar cada um dos mundos que tem aí dentro. Só depois que fizer isso poderá escolher o título. Aqui... – e apontou com o dedo para a cabeça do menino. – E aqui. – A dirigiu o dedo ao coração do garoto.
- E como vou saber?
- Vai saber. – E sorriu seu sorriso enrugado para o neto, piscando um olho para ele. – Vai saber.
O garoto voltou a olhar para o livro, perdido em seus próprios pensamentos enquanto pesava também as palavras do avô, tentando decifrar o significado delas, não percebendo quando a avó e seus pais se aproximaram, trazendo consigo gargalhadas e comentários altos e animados sobre algum assunto sobre o qual ele não fazia a menor ideia do que se tratava.
A tristeza voltou a tomar conta do menino quando as despedidas tiveram início, e ele relutou em acompanhar os avós até o portão de saída, só o fazendo por causa da insistência dos pais. Deu um longo e apertado abraço na avó, sentindo toda a doçura de seu perfume, que o remeteu a todos os doces saboreados e às conversas de fim de tarde que tinha com ela na mesa da cozinha com vista para o pôr do sol que se desvelava no horizonte, muito além das árvores do pomar que ficava no quintal.
Mas foi a despedida do avô a mais difícil. Adiantando a solidão que tomaria conta de seu dia nas semanas seguintes ele lembrou-se das histórias de que tanto gostava, contadas de um jeito que só o velho avô sabia contar, cheias de emoção, gestos, coreografias e vozes criadas para cada personagem. Com ele, as narrativas de fato ganhavam vida.
Mas agora que iria embora, não haveriam histórias cheias de vida. Haveria apenas o silêncio solitário das tardes sem amigos e sem visitas, em que ele era seu único companheiro.
- Não vou dizer para mudar essa cara e fingir que está tudo bem. – Disse o avô, ajoelhando-se diante dele. – Mas não esqueça do que falei sobre o livro.
- Eu gosto de ler vô. Mas os livros não são a mesma coisa que ouvir você contando as histórias.
- Não, não são. São melhores, porque você vai imaginar do seu próprio jeito. Vai criar a forma que acha mais interessante ao ler cada palavra. Vai desenvolver o seu próprio método de pensar e imaginar. O jeito que conto é o meu jeito, mas se você usar bem sua melhor ferramenta, vai criar uma forma muito melhor que a minha.
- E que ferramenta é essa?
- A sua imaginação. – Disse o avô, dando um leve cutucão bem no centro da testa do neto. – Ela é um universo inteiro a ser explorado. É dela que vêm as histórias garoto. As que eu contei pra você, e as que são contadas nesse livro e em todos os outros. E a maior graça desses grandiosos universos impressos em papel é que você imagina tudo o que está aí do seu jeito. Não desperdice essa imaginação. Quem sabe um dia não seja você a criar suas próprias histórias?
O velho então deu um beijo na cabeça do neto, abraçou-o por um longo tempo e ao levantar-se assanhou seus cabelos, como sempre fazia quando queria anima-lo.
- Você tem a passagem. Use-a. – Foram suas últimas palavras antes de partir, e quando chegou ao portão, piscou o olho como fazia de um jeito que era só seu, acenou, e entrou no carro, deixando para trás o neto pensativo e com uma expressão de desolação que podia ser reconhecida a quilômetros de distância.
Quando o carro se afastou com seu pai dentro guiando seus avós até o voo que os distanciaria. Quando a mãe entrou em casa após lhe dar um beijo e um abraço de consolação, para depois cuidar da arrumação da cozinha e da orientação dos demais empregados. Quando o vento soou, acariciando as árvores que com seu farfalhar lançavam música ao mundo naquele fim de tarde... quando tudo isso aconteceu quase desapercebido para ele, o menino pegou o livro que o avô deixara, olhou-o por um momento, sem muito interesse, e entrou cabisbaixo em casa.
Naquela noite ele demorou a dormir, lembrando das histórias do avô e das tardes cheias de alegria em que foram contadas, com a saudade apertando-lhe o peito e lhe dando uma sensação de vazio que parecia toma-lo por dentro, deixando-lhe um vão interior que roubava-lhe o sono. Naquela noite o livro ficou largado em um canto da escrivaninha do quarto do menino. Naquela noite o garoto não sonhou... nem acordado, nem dormindo.
No dia seguinte o silêncio ecoava por quase toda a casa, sendo quebrado apenas pela mãe e pela empregada, que já se revezavam na cozinha nos afazeres do dia. Tomou café sem muito ânimo para comer, praticamente sem reparar no gosto da comida, e depois foi tentar arrumar algo para fazer. Era impressionante que em momentos como aquele ansiasse pela volta das aulas. Ao menos no colégio ele teria companhia, ainda que o recreio não durasse mais que meia hora.
Foi ao jardim, ao quintal, à sala de visitas, à garagem, olhou para a bicicleta apenas para desistir da ideia de pedalar pelas redondezas por causa do desânimo que tomava conta dele. Foi à cozinha, mas logo saiu ao ver que não teria da mãe a mesma atenção que o preparo do almoço tinha dela. Foi à biblioteca, mas nada ali o interessou, então resolveu voltar ao quarto para pensar em fazer algo ou simplesmente dormir caso não conseguisse pensar em nada.
Jogou-se de bruços na cama e ficou com o rosto quase que totalmente enfiado na colcha, com apenas um olho de fora, passeando com a vista pelo quarto apenas com o intuito de passar o tempo. Em uma dessas corridas de olhar que deu, bateu com a visão em um objeto que reconheceu de imediato. No desânimo que tomara conta dele no dia anterior, ele deixara o livro que o avô lhe dera esquecido em um canto da escrivaninha.
“Você tem a passagem, use-a”. As palavras do avô ecoaram em sua memória, e por um momento ele pensou que o velho estivesse as pronunciando bem ali, do seu lado. Por um tempo ele ficou fitando o objeto com apenas um olho, imaginando se valeria à pena deixar uma boa soneca de lado para ler um livro estranho e sem título, mas diante da ausência de sono, aliada à falta do que fazer, ele resolveu usar a tal da passagem da qual o velho falara.
Levantou-se um pouco relutante, e lentamente foi até a escrivaninha. Pegou o livro e pela segunda vez desde que o recebera do avô parou para examina-lo detalhadamente, perscrutando cada parte dele, desde a capa, na qual passou a mão para sentir os detalhes, até a parte interna, passando rapidamente as páginas entre os dedos para ver se havia alguma figura interessante que chamaria sua atenção, mas não havia nada.
Aquele era um livro sem figuras, o que era ainda mais interessante, segundo seu avô, já que assim o menino poderia criar cada detalhe ali descrito da maneira que conseguisse imagina-lo, usando suas próprias ferramentas naquele processo mágico de faz de conta. Despretensiosamente o garoto sentou-se no chão, abaixo da janela que dava para o quintal e abriu a capa.
Passou a mão pela primeira página, que estava em branco, sentindo a textura do papel. Depois levou-o ao nariz e cheirou longamente, como vinha fazendo com costume sempre que pegava em um livro, sentindo um prazer inexplicável ao fazer aquilo. Passou à pagina seguinte, ouvindo o som característico que saía daquele gesto, e viu escrito em letras grafadas com esmero e beleza a frase:
“Tudo começou...”
O menino então sentiu-se repentinamente jogando em um mundo diferente, onde a percepção das coisas era ampliada por um estado de concentração ao qual não sabia definir. Era como se estivesse vivenciando a tudo, e ao mesmo tempo assistindo de fora o que acontecia, como se fosse igualmente personagem e espectador.
As primeiras palavras que foram avistadas por seus olhos contavam a história de um jovem ladrão, criado nas ruas e que fora obrigado a crescer buscando sobreviver de todas as formas. Um dia, o larápio invadiu o palácio do rei e de lá levou uma pequena corrente de ouro e diamantes, fugindo em seguida e sendo logo descoberto pela guarda real, que passou a persegui-lo incessantemente em uma corrida contra o tempo pelos labirintos da cidade.
A perseguição se tornou feroz, e o rapaz contou com a ajuda de vários de seus amigos que também dividiam a moradia na rua com ele, mas sempre que estava prestes a despistar os guardas enfurecidos, estes voltavam a localiza-lo, alcançando-o e chegando a tocar suas roupas enquanto se aproximavam. Mas o jovem era mais rápido que eles, e sempre conseguia desvencilhar-se.
Depois de horas pulando de telhado em telhado das casas pobres da periferia do reino, escondendo-se em becos, pulando muros altos e desviando-se da multidão, o rapaz, já exausto conseguiu despistar a guarda, e sentou-se encostado à parede de uma sarjeta imunda, uma das quais ele estava acostumado a dormir. Mas o que ele não percebera era que apesar de ter despistado os guardas, não conseguiu desvencilhar-se do rei, que saíra ele mesmo em perseguição do ladrão que entrara em seu palácio.
Vendo o garoto ofegante no escuro da sarjeta o monarca lhe explicou que não se importaria se ele tivesse roubado qualquer outra joia ou bem que ali houvesse, mas não aquela. Aquele era o bracelete que dera ao seu filho quando ainda era bebê, o mesmo filho que desaparecera quando uma das criadas o levara do castelo, e que nunca mais tinha sido encontrado.
O rei prometeu ao rapaz que se ele não fugisse, que se entregasse de bom grado aquela joia tão importante, não seria punido por seu crime, e o rapaz, confiando no tom de voz daquele homem, o qual ele achou estranhamente familiar, levantou-se para entregar-lhe o bem. Mas ao sair da sombra que o ocultava e aparecer diante dos olhos do monarca, o jovem se assustou com a expressão de seu governante.
Atônito, o rei fitou o rapaz como se estivesse olhando-se em um espelho que retratava sua imagem na juventude. Os mesmos olhos, o mesmo cabelo, o mesmo maxilar e porte físico, diferenciados apenas pelos traços preservados pela mocidade que o rapaz ainda mantinha. Com lágrimas nos olhos o monarca pediu então ao jovem ladrão que lhe mostrasse o pulso direito, e quando o ladrão ergueu a manga da camisa suja e surrada o homem não mais se conteve, e com lágrimas nos olhos puxou para si o jovem, abraçando-o e soluçando. A semelhança, os traços de igualdade, e a marca no pulso. A marca de nascença com a qual o filho sumido nascera, e que ele também tinha. Um traço de família que lhe revelava sem qualquer dúvida que reencontrara a criança perdida que fora tomada de seus braços quando ainda era um bebê.
O reino se encheu de júbilo ao saber da notícia. O jovem príncipe, há tanto sumido, retornara naquilo que ficaria conhecido nos anos vindouros como o roubo abençoado. E o rapaz, feliz por finalmente ter uma família, mostrou ao pai o que ele não via dos cômodos luxuosos de seu palácio, a pobreza que assolava grande parte daquele povo, obrigando-o a dormir ao relento, viver na sarjeta e roubar para sobreviver.
Nunca um lugar teve um reino mais altruísta como aquele. Nunca um lugar teve um príncipe mais sábio e bondoso, que junto do pai acabou com a pobreza que ainda assolava o local. Nunca um povo foi tão feliz como aquele que viveu sob o governo daqueles dois monarcas. O pai, que tinha reencontrado o filho. O filho, que encontrara uma família. E o povo, que encontrara a alegria de ter governantes que de fato sabiam de sua realidade e se preocupavam com ele.
Ao terminar a história, na qual estivera inteiramente absorto, o garoto sentiu o cheiro de comida chegando ao nariz, vindo do andar de baixo onde sua mãe já terminara o almoço e o chamava para comer. Sem muito interesse na refeição, e ansiando por ler o próximo conto, o menino comeu apressadamente, sendo repreendido por algumas vezes pela falta de educação e pela pressa com que o fazia.
Como o pai não fora almoçar ele não precisou esperar que o homem se levantasse da mesa, como era costume naquela época, e liberado pela mãe ele correu de volta para o quarto, ansiando pelo que leria a seguir. Abriu o livro onde começava a segunda história, e sem esperar mais um momento sequer, começou a devorar as letras impressas naquela página que já estava amarelada pela ação do tempo.
Leu então sobre a história de um casal apaixonado. Ele, um jovem e simples trabalhador do campo. Ela, a única filha do dono de todas as propriedades que se estendiam na região, e que também era o patrão do rapaz enamorado. Sabendo do temperamento do velho homem, o casal manteve a relação em segredo, e todas as noites encontravam-se embaixo de uma enorme cerejeira ao lado de uma cachoeira para viver aquele amor enquanto o mundo dormia.
Mas um dia o pai da moça descobriu o romance proibido, e mandou embora o rapaz que para ele trabalhava, ameaçando-o de morte caso ele voltasse a pôr os pés ali. O rapaz foi, mas depois de um tempo voltou, porque para que ama, a vida sem a pessoa amada parece ser uma morte a cada dia que passa, e o casal voltou a encontrar-se secretamente, achando que o velho já baixara sua guarda e vigilância sobre a filha.
Doce ilusão a que permeia a vida dos enamorados, que sedentos pelo amor um do outro não viram o que de fato se passava ao seu redor. Um dos lacaios do pai da moça a seguira e vira o encontro proibido, indo de pronto avisar ao velho o que se passava. Tomado pelo ódio, o fazendeiro cercou a filha e seu amante, e cumprindo a ameaça que fizera matou o rapaz diante dos olhos de sua amada, enterrando-o naquele mesmo local, como um aviso a quem se atrevesse a desafiar suas ordens.
A moça, desesperada com a partida de seu amor desistiu aos poucos da vida, indo ao local chorar todos os dias sobre o túmulo do amado, sem perceber que ali havia um broto de cerejeira crescendo, recebendo as lágrimas da triste moça que lamentava a ausência de seu amor. As visitas dela aconteciam sempre no mesmo horário em que dantes se encontravam, no ápice da noite, indo até o início da manhã.
Com o tempo, a garota definhou e morreu de tristeza, caída sobre o túmulo do jovem a quem dera seu coração e sua vida, deitada ao lado da flor de cerejeira que começava a germinar. O velho pai, arrependido e tomado pela amargura lamentou a morte da filha, e pela primeira vez em sua vida chorou. Resolveu então fazer na morte o que não fizera na vida, e ordenou que a garota fosse enterrada ao lado de seu amado, para que partissem juntos pela eternidade.
Mas não foi percebido que a partir de então, sempre um pouco antes do dia nascer, as folhas das árvores e de todas as plantas passaram a amanhecer com gotículas em sua superfície, e com o tempo os observadores daquele fenômeno o batizaram de orvalho. Mas todos os demais que viram de perto ou souberam da história daquele casal sabiam, em seus corações, que aquelas gotas vinham das inúmeras lágrimas derramadas pela jovem apaixonada no túmulo de seu amor, o que acontecia sempre naquele horário... pouco antes do dia surgir.
O menino fechou o livro, triste pelo destino do casal de que tratara a história que acabara de ler. Achara o conto anterior melhor, e com final feliz. Mas lembrou-se das palavras do avô, que lhe dissera uma vez que nem todas as histórias acabavam com um “e foram felizes para sempre”, mas que cada uma delas carregava uma lição que para sempre poderia ser levada.
Apesar de triste com a história, e temendo encontrar outra que não acabasse tão bem para os personagens como a primeira, o menino ainda assim passou a página, sentindo novamente aquela sensação de estar sendo jogado dentro de um mundo novo, como espectador e ao mesmo tempo personagem. Então começou a ler o conto do homem do céu, que narrava a história de um apaixonado que prometera à sua amada entregar-lhe a estrela mais bela que existia.
Atrás desse objetivo ele vagou pelo firmamento, buscando sempre a estrela mais bela, sem porém encontrá-la, enquanto na terra sua amada lhe esperava, cheia de tristeza e saudade.
Um dia , frustrado e cansado ele resolveu perguntar às constelações onde estaria a estrela mais bela que existia, e todas elas apontaram para a terra, para o exato local em que sua amada estava, e de lá, ele viu que de fato aquilo era verdade, pois no coração dela brilhava a estrela do amor, tão cintilante quanto todas as outras, mas entristeceu-se porque não sabia como voltar para casa. Então uma das estrelas, lamentando por ele e querendo ajudar, disse-lhe que cairia à terra para levá-lo de volta em sua cauda.
- Por que faria isso? - Perguntou o homem.
- Porque acima de todas as estrelas brilha o amor. - Respondeu ela. - E porque todas as noites a sua amada faz um pedido olhando para o céu. O de que você volte para ela.
O homem então aceitou e montou na cauda da estrela, voltando para aquela que era a mais bela de todas, a sua amada. E desde então, sempre que uma estrela cadente aparece no céu, as pessoas fazem um pedido a ela. Pois um dia uma jovem apaixonada foi atendida, para reencontrar seu grande amor, que fora atrás do que era mais belo, sem saber que o que era mais belo era o amor que ele tinha.
Naquela tarde ele leu e leu, sem conseguir parar, sem ter noção do tempo e de toda a realidade que o cercava, porque ao mesmo tempo em que era leitor, era também personagem, entrando em cada conto, em cada mundo para de mãos dadas partilhar das aventuras, dos romances, das histórias que lhe eram desveladas. Naquela noite sonhou com tudo o que lhe fora apresentado, continuando nos mundos dos sonhos as fantasias que conhecera na leitura, apenas para acordar no dia seguinte ainda mais ávido por desvendar mais e mais lugares e pessoas que aquelas páginas tinham para lhe revelar.
E assim se sucedeu nas semanas seguintes, em que ganhou novos amigos, em que conheceu novos lugares, em que viajou por um universo inteiro sem sair do lugar, exatamente da forma como seu avô lhe dissera que poderia fazer. No dia que terminou o livro o pai lhe perguntou se estava animado com a volta das aulas, e o garoto se deu conta de que teriam início no dia seguinte.
O momento pelo qual tanto ansiara antes da partida do avô lhe passara completamente despercebido, e agora ele fitava a última página, como se não quisesse termina-la, como se deixando de lê-la as histórias, como em um passe de mágica, se renovariam e se estenderiam diante de seus olhos.
Mas então lembrou-se das palavras do avô, quando lhe disse que poderia visitar aqueles mesmos amigos e lugares fantásticos sempre que quisesse, e com o alento trazido por aquele lembrança ele terminou o restante da história, sorrindo ao ler as últimas palavras ali escritas...
O fim?
O livro acabou, as aulas voltaram, os dias continuaram e o amor pela leitura cresceu no menino com uma força que ele não sabia mensurar. Mas não foi apenas o gosto por ler que surgiu e foi ampliado. Havia algo mais. Um pedido. Vozes que surgiam dentro dele e clamavam para que contasse suas histórias. As histórias que estavam na cabeça daquele garoto de imaginação fértil.
Sentindo aquela vontade crescente de lançar ao mundo o que crescia dentro dele o menino sentou-se na cadeira de sua escrivaninha, e ao pegar lápis e papel recordou uma vez mais do avô, dizendo-lhe que cabia a ele dar um título às histórias que lera. Mas e se não quisesse dar apenas o título? E se quisesse mais? E se quisesse ser ele também um guia para levar outros a lugares longínquos e personagens fantásticos.
Com uma ideia na cabeça e um lápis na mão, ele começou a escrever, sem saber que depois daquela história surgiria outra, e depois mais outra, e inúmeras outras, até que seus livros corressem o mundo e suas histórias chegassem aos ouvidos de milhões de pessoas...
Ali, parado na porta, com os cabelos grisalhos surgindo, com as rugas tomando espaço, ele voltou da viagem que fizera no tempo de suas lembranças. Olhou para o livro e sorriu, com uma saudade que deixara de ser dolorosa para tornar-se agradável. Enquanto absorvia os últimos detalhes daquela memória recentemente vivida ele sentiu uma mão tocando-lhe o ombro, e ao virar-se e ver um senhor de idade ao seu lado por um momento pensou que fosse o avô, saindo de sua mente para lhe prestar uma última visita.
- Oi pai. Pensei que estivesse dormindo. – Disse ele, constatando que era o pai quem ali estava.
- Olá filho. Já dormi demais por um dia. Acho que já dormi demais por uma vida inteira. Quando se fica velho o sono aumenta. Talvez seja uma preparação para o sono permanente que se avizinha. – E sorriu, caminhando a passos curtos até ficar ao lado do filho e vislumbrar a mesma paisagem que este fitava. – Estava viajando no tempo?
- Como?
- Viajando no tempo. Papai, o seu avô, me fazia essa pergunta quando eu passava muito tempo olhando para o vazio. Ele costumava dizer que a nossa mente é a melhor máquina do tempo que existe, nos levando a qualquer lugar, a hora que quisermos.
- O vovô dizia tanta coisa. E todas elas tinham um encantamento especial. Mas eu estava sim, viajando no tempo. Para a tarde em que ele me deu esse livro.
O pai olhou para o livro nas mãos do filho e sorriu, como se tivesse sido visitado por uma recordação.
- Ele me deu esse livro quando eu era pequeno. A princípio eu gostei, mas nunca fui muito afeito às palavras, à fantasia. Sempre fui um homem de lógica, de números, e com o tempo acabei esquecendo dele. Mas também lembro desse dia.
- Foi a última vez que o vi. – Disse o homem, sentindo que as lágrimas desejavam fugir de seus olhos.
- É. Foi a última vez que o vi também. – Respondeu o velho, dando um longo suspiro. – O coração é algo engraçado não é? Bate tanto, ama tanto, e um dia para. Sem anúncio, sem aviso. É como o amor, que às vezes desaparece com a mesma rapidez com que surge.
- Mas olha, vejam só. Um homem de números, mas de palavras também. – Brincou o filho.
- Influência dos genes do seu avô. – Sorriu o velho. – Ele estava feliz, sabe? Digo, naquele dia. No último dia em que o vimos. Disse que achava que tinha plantado uma semente.
- Como assim?
- Uma semente. Tenho certeza que se referia a você. Acho que de alguma forma ele sabia que você seria um escritor famoso um dia. Que seria, como ele falava? Ah, sim, um guia para apresentar mundos e personagens para outras pessoas. Ele tinha razão. Você puxou a ele.
- Realmente puxei. Ler é uma das minhas maiores paixões.
- Não falo só de ler. Mas de criar histórias também, como essas que ele escreveu nesse livro.
O homem ficou sem reação por um momento, fitando o pai como se ele acabasse de ter lhe revelado algo difícil demais de acreditar.
- O que quer dizer? O que quer dizer com “esse livro”?
O velho sorriu, e percebeu que seu velho pai nunca tivera tempo de contar ao neto a verdade de tudo.
- Ele te contou aquela história de que ganhou esse livro do pai quando ainda era uma criança? – Perguntou o velho, e sorriu, como se estivesse se lembrando de algo. - Ah, pai. Você e sua mania de inventar as coisas.
- Quer dizer então que ele mentiu? Que foi ele que escreveu tudo o que está aqui?
- Não diria que mentiu. Mas apenas criou um conto em cima de uma realidade.
- Mas isso. Isso é inacreditável. O que tem aqui é muito bom pai. É melhor até do que tudo o que escrevi. Foi esse livro que acendeu em mim a vontade de escrever. Se soubesse que era dele teria publicado há muito tempo.
- Mas você publicou garoto. Cada obra que você criou tem um pouco do seu avô, pois foi ele que abriu seus olhos para enxergar o caminho que tinha pela frente. A cada história que você contava, germinava um pouco mais, passando de uma semente para uma árvore forte, que se estendeu mundo afora. Meu pai era um contador de histórias, e meu filho se tornou um graças a ele. Esse é o maior legado dele, maior até do que esse livro que escreveu. Para ele bastava que uma pessoa lesse e amasse as histórias, a pessoa certa. E você foi essa pessoa filho. Acho que foi isso que vi no olhar de felicidade dele no dia em que foi embora. E quer saber? Essa se tornou a melhor lembrança que tenho dele.
O homem olhou para o livro velho e gasto, segurando-o com a delicadeza com que se segura um filho recém-nascido, e sentiu as lágrimas brotando dos olhos sem qualquer barreira para impedir sua passagem. Então lembrou-se das palavras que o avô lhe dissera no último dia em que o vira.
“É você quem deve dar o título”.
- Minha melhor lembrança. – Disse ele, sorrindo enquanto as lágrimas desciam por sua face.
- Como? – Perguntou o pai, sem entender.
- O título que nunca dei. Para o livro que ele escreveu. “Minha melhor lembrança.”
O velho então deixou que as lágrimas descessem por sua face enrugada, e abraçou forte o filho, dizendo-lhe, com uma voz que carregava um mundo de lembranças:
- É um ótimo título filho. Um grande título... para uma grande história. Uma grande história. Cheia de lembranças.
Bons e velhos hábitos
Dias e dias trancado, saindo apenas munido de uma parafernália que lhe cobria a face quase que por completo. Garrafas de álcool em gel espalhadas pelo apartamento, pelo carro, e um tubo de reserva para levar no bolso onde quer que fosse. Sapatos na entrada no momento em que chegasse, roupas retiradas cuidadosamente e colocadas à parte em um cesto, onde seriam lavadas separadamente. Já estava cansado daquele constante e incômodo estado de alerta.
Máscaras tapando-lhe o rosto, tolhendo-lhe a identidade quando saía às ruas para fazer apenas o que era essencial, mantendo distância de todos, desviando ao menor sinal de outro ser humano, evitando contatos, conversas, sentindo-se continuamente sujo, maculado, infectado. Um prisioneiro em sua própria casa. Um prisioneiro do medo.
Sentado na poltrona de seu apartamento ele olhava para a tela desligada da televisão, cansado das mesmas notícias, dos mesmos filmes, da mesma rotina. Fitava o retângulo apagado e inerte à sua frente assistindo um programa imaginário, onde ele estaria na rua, com amigos, com a família, divertindo-se, papeando, namorando, abraçando.
O irônico era que oportunidades de fazer aquilo não tinham faltado nos anos pré-quarentena, e muitas vezes ele as evitava, torcendo o nariz diante da mera ideia de encontrar familiares para sentar-se por uma hora de café e conversas agradáveis, ou mesmo para saídas constantes com amigos, adotando como ideia de prazer e descanso isolar-se naquele mesmo apartamento. O que antes lhe parecera liberdade, agora se mostrava como uma prisão.
Enquanto seus pensamentos vagueavam na programação imaginária que passava na tela desligada da tv ele foi retirado de sua sequência de devaneios por um barulho na rua, e sem dar-se conta de que o fazia, ergueu-se em um ato reflexo e correu para a varanda em uma velocidade que mal foi percebida por sua mente. Buscava vida, movimento, algum sinal de existência, algo novo que pudesse lhe retirar daquele marasmo. Em tardes como aquela observar a movimentação na rua, por mínima que fosse, tornava-se algo que beirava a definição de único.
Chegando ao parapeito decepcionou-se ao ver que o ruído fora causado por cachorros que se amontoavam ao redor de uma lata de lixo nas proximidades. A natureza aproveitava-se da ausência do homem para ocupar de volta aquilo que um dia fora dela. Com a frustração estampada na expressão ele manteve-se escorado à varanda, correndo os olhos pelas ruas vazias e silenciosas, em busca de algo que ocupasse sua mente, que afastasse a sensação de que o tempo se arrastava lenta e gradativamente.
Enquanto esperava, ouviu um discreto som, baixo o bastante para não incomodar, mas alto o suficiente para chamar sua atenção. O som de um suspiro, algo que nos últimos meses tinha se acostumado a ouvir saindo de si mesmo, mas não de outra pessoa que não fosse ele. Olhou para baixo, novamente para a rua, então para a direita, e nada viu, mas ao virar-se para a esquerda pôde ver na varanda colada à sua um homem, fitando o ambiente na mesma posição em que ele estava.
O homem pareceu perceber seu olhar, e quase automaticamente seus olhos se encontraram e se fixaram por alguns segundos, como se ambos buscassem fazer um reconhecimento enquanto ao mesmo tempo se espantavam por aquela repentina presença humana em um mundo que inesperadamente impusera um isolamento a todos.
Na busca pelo reconhecimento ele percebeu que aquele era seu vizinho de apartamento, lembrando-se das feições que via quase que diariamente, fosse no elevador, fosse no estacionamento do prédio. Mas embora tivessem todos aqueles encontros, nunca tinham feito mais que trocar algumas palavras de bom dia ou boa tarde, substituídas por um aceno de cabeça ou grunhido, a depender da disposição que tinham para cumprimentar um ao outro.
À distância, separados por alguns poucos metros e por uma parede de concreto eles repetiram o gesto que incontáveis vezes tinham dirigido um ao outro, e cada um a seu modo acenou a cabeça em cumprimento, voltando automaticamente os olhares para a rua vazia que se estendia adiante. Mas diferente das outras vezes, onde a vontade que dominava era a de apressar-se para cumprir os trabalhos e afazeres diários na corrida desenfreada que o mundo exigia, onde nunca chegavam a tempo em lugar algum, daquela vez havia um desejo que dominava seu peito, uma vontade, na verdade uma necessidade de dirigir àquela pessoa algo mais que não fossem palavras vagas e reticentes de cumprimento forçado em respeito à boa etiqueta.
Daquela vez havia tempo, havia margem, e o mais importante, havia a vontade de manter algum contato com alguém que não fosse ele mesmo e a tela da tv com os programas diários de notícias ruins e títulos repetidos.
- Boa tarde vizinho. – Disse ele, um pouco reticente de início, espantando-se em ouvir a própria voz em uma conversa com outra pessoa, e tentando lembrar-se qual fora a última vez que fizera aquilo.
- Boa tarde. – Respondeu o homem ao lado, permanecendo em silêncio por tempo o suficiente para que ele sentisse vontade de recuar e voltar para a sala e para sua solidão, até que o vizinho deu-lhe mais algumas palavras. – Apreciando a movimentação da rua?
Ele sentiu um tom de sarcasmo animado na voz do homem, e aquilo ajudou a derreter um pouco a parede de gelo que costumeiramente existe entre pessoas que iniciam uma conversa sem possuírem qualquer intimidade.
- Cansei da monotonia da sala, então resolvi checar a monotonia da rua. Ao menos a paisagem é diferente.
- E verdadeiramente animadora. – Respondeu o vizinho, novamente com o sarcasmo estampado na voz. – Qual o seu nome?
- Carlos. – Respondeu ele. – E o seu?
- João. Sinta-se cumprimentado, Carlos, porque contato, bem, você já sabe não é?
- Acordo com essa instrução e vou dormir com ela. A tv não me deixa esquecer, o rádio não me dá um segundo de paz, e o celular, bem, não preciso nem falar. Às vezes acordo no meio da noite e corro para o banheiro para lavar as mãos só por ter sonhado que tive contato com alguém.
O vizinho sorriu discretamente, o que fez com que Carlos se perguntasse se não teria dado detalhes demais para alguém que mesmo morando ao lado ainda se tratava de um estranho.
- É. Complicado. Não posso dizer que não passei pela mesma coisa. Uma noite dessas acordei e quando dei por mim estava trocando de roupa, porque tinha sonhado que havia chegado em casa e tinha ido dormir sem separar a já famosa “roupa de rua”. No meu tempo, “roupa de rua” era o nome que minha mãe e minha avó usavam para as vestes mais chiques, que só podíamos usar em festas e outras ocasiões sociais mais importantes.
Os dois riram daquilo, e Carlos lembrou-se de que em sua casa a mesma lei se aplicava, só que o nome utilizado era “roupa de festa”. Agora, a regra era tirar a vestimenta, jogar em um local específico e lava-la separadamente.
- Roupa de festa. – Disse Carlos, fitando a rua com um meio sorriso que denotava que visitava lembranças de tempos distantes.
- Como? – João perguntou, sem entender as palavras do vizinho.
- Era como minha mãe chamava naquele tempo. “Roupa de festa”. – E permaneceu calado por um momento, lembrando-se do passado. – Sinto falta dela. – Deixou escapar. Fazia tanto tempo que não conversava com ninguém que as informações lhe escapavam da boca antes que pudesse pensar em conte-las.
- Isolada também? – Perguntou João. – Faz tempo que não a vê?
- Não a vejo há muito tempo. E talvez não a veja nunca mais. Ao menos não nesse plano. Ela faleceu há alguns anos.
- Sinto muito. – Disse João, depois de permanecer um tempo em silêncio. – E o restante da família?
- Um pai e uma madrasta vivendo em outro estado. Converso com eles todo dia, mas, bem, nunca é a mesma coisa falar com alguém por uma tela de celular.
- É como se faltasse algo. – Concluiu João.
- É como olhar por uma janela ou uma varanda, sem poder ir até o lugar para onde se olha. Você vê, mas não tocar e nem visitar.
- Acho que não tenho uma forma melhor de traduzir isso. – Concordou João.
- E você? – Perguntou Carlos. – Tem família aqui?
- Pais em outra cidade. E uma irmã. Fica a um pulo daqui, mas nem pular mais nós podemos com toda essa situação, então, padeço do mesmo problema que você.
- Olhando pela janela. – Disse Carlos.
- Sem poder ir até lá. – Concluiu João.
Ambos ficaram em silêncio, pensando cada um na sua história, nas suas vidas, nos caminhos percorridos até aquele momento solitário em suas varandas. Duas figuras desoladas que fitavam o mundo vazio, dois prisioneiros que continham a chave de sua própria prisão, mas que não podiam usá-la porque naquele momento a liberdade era algo arriscado demais para ser vivido. Pela primeira vez em suas vidas a liberdade era algo que lhes causava medo.
- É estranho. – Carlos quebrou o silêncio. – Depois de tanto tempo, ouvir uma voz que não esteja em uma tela de celular ou abafada por uma máscara de proteção.
- É realmente estranho. – Concordou João, dando um meio sorriso enquanto olhava os cachorros que tinham derrubado as latas indo embora com alguns pedaços de comida na boca. – Mas sabe o que é realmente curioso?
- Não faço ideia.
- É curioso o fato de que moramos há tanto tempo aqui, e sequer nos conheçamos. Há quanto tempo se mudou?
- Dois anos... ou quase isso. – Respondeu Carlos.
- E eu há cerca de um e meio. Em todo esse tempo trocamos apenas alguns cumprimentos e acenos de cabeça. Não que vizinhos tenham que ser melhores amigos, mas isso é algo que, bem, é algo com que não fui acostumado na minha vida. Quero dizer, não sou daqui, venho de uma cidade do interior onde todos os vizinhos se conhecem, e aqui as coisas parecem ser tão diferentes, tão distantes. O pior é que com o tempo você acaba se habituando e repetindo o comportamento, e quando percebe, já está agindo da forma que antes achara estranha.
- Não precisa sair da cidade para ver isso. Sou daqui, mas na minha infância era desse jeito também. Todos os vizinhos da minha rua se conheciam, se cumprimentavam, e até frequentavam as casas uns dos outros. Mas com o tempo isso mudou. A cidade cresce e os hábitos mudam. E nós mudamos com ambos.
- Nesse ponto eu acho que não houve crescimento algum.
- Sou obrigado a concordar. E posso completar a lista de curiosidades?
- À vontade.
- Foi necessário que um vírus nos confinasse para que passássemos a valorizar coisas que ainda tínhamos, mas que não dávamos importância. Foi necessário que algo tão pequeno nos mostrasse a importância de uma coisa tão grande, como o contato. Como você mesmo disse, quantas vezes passamos um pelo outro sem perguntar sequer nossos nomes? E ironicamente fomos postos diante de um aumento exponencial de algo que optáramos por usar, e que agora repudiamos, que é o uso excessivo desses celulares, trancados em nossas casas. Passamos a detestar o estilo de vida que tínhamos adotado de bom grado, e a sentir falta de algo que tínhamos à nossa disposição, mas que rejeitávamos, sem sequer pensar duas vezes.
- É como o namorado que põe fim à relação, e que depois de um tempo se arrepende ao ver que a mulher que o amava já não ama mais. É só no momento da perda que ele passa a valorizar o que tinha.
- Mais ou menos isso. Mas para além da curiosidade, o que insiste em minha mente é um questionamento.
- Quando isso vai acabar? – Quis saber João.
- Não. Não quando vai acabar. A pergunta é, quando acabar, mudaremos para melhor, ou seremos superficiais o suficiente para voltarmos a agir como agíamos antes? O mundo já passou por inúmeras privações, e aprendeu a lição... por um tempo. Mas é só afrouxar a corda que voltamos a cometer os mesmos erros. Puxa vida, já atravessamos duas guerras mundiais, e continuamos com conflitos bélicos ao redor do globo. Já enfrentamos fome e destruição, e nem por isso consertamos o foco de tais problemas. Já enfrentamos pandemias antes, doenças que chegaram a dizimar milhões de vidas, e olhe agora. Governos que preferem investir em armas do que em tratamento de saúde, em pesquisas, no desenvolvimento de medicamentos, esses mesmos governos agora estão pagando por seus equívocos. Mas quando a poeira baixar, eles ou seus sucessores agirão de forma diferente?
João adotou uma expressão sombria, e fitou a rua silenciosa. Aquele era um pensamento que ainda não tinha passado por sua cabeça preocupada demais com o fim do isolamento. Mas de fato, aquela pergunta gerava uma apreensão maior. Uma coisa era ter esperança no fim da pandemia, e outra, totalmente diferente, era ter esperança na mudança de comportamento ao redor do mundo, isso sim algo bem mais difícil de acontecer.
- Meu amigo. – Disse ele, olhando firmemente para Carlos. – Você acaba de me tirar mais algumas horas de sono por dia com essa preocupação extra.
- Lamento. – Respondeu Carlos, um pouco desapontado. – Tanto tempo sem falar com alguém e quando começo uma conversa acabo estragando as coisas com assuntos desnecessários.
- Pensar nunca é algo desnecessário meu caro. Você me tirou algumas horas de sono, mas me deu uma vida inteira de perspectiva, porque daqui em diante, sempre que pensar em voltar a agir da forma que agia antes, vou lembrar de nossa conversa. Podem até me dizer que serei só um passarinho tentando apagar o incêndio de uma floresta, mas ainda assim serei.
- Então seremos dois. – Continuou Carlos. – Quem sabe não consigamos mais adeptos. Posso tentar tirar o sono de muito mais gente por aí.
- Pode contar comigo para isso.
Sorriram um para o outro, e passaram o restante da tarde conversando sobre coisas menos importantes. Coisas triviais, como bons vizinhos faziam em dias de outrora, na época em que a vida era menos corrida e as pessoas mais unidas umas com as outras. Quem sabe depois daquilo eles não continuariam com esse novo, mas tão antigo hábito?
Quem sabe aquela não era uma oportunidade de resgatar do passado as coisas que realmente valiam a pena?
Isso, só o fim do isolamento poderia... ou poderá dizer.
Juntos
Há muito tempo, quando o mundo ainda era jovem e as estrelas brilhavam com mais força na escura solidão do firmamento, duas almas se encontraram em frente ao mar bravio. No tapete de areia que era acariciado pela eterna dança das ondas, pela primeira vez eles se olharam e tão logo o fizeram, se apaixonaram.
Ele, intenso, forte e expansivo parecia brilhar, iluminando o ambiente ao seu redor. Ela, calma, bela, e discreta, apaziguava o coração de quem quer que a visse de longe ou de perto. No exato momento em que se viram, tudo pareceu perder importância, e foram de imediato tomados pelo desejo de permanecerem juntos enquanto houvesse existência.
Juntos eles ficaram, e naquele lugar em que fixaram morada tudo pareceu mudar, com luz, calor, beleza e paz. Juntos eles ficaram, e de sua união nasceu a criança mais bela. Ágil, sorridente, encantadora. Rápida o bastante para surgir repentinamente, sem aviso e sem alerta, e cuja beleza era tamanha que a todos encantava. A essa criança deram o nome de amor.
O tempo passou, e o amor cresceu. Alimentado pelo sentimento que provinha dos pais ele se tornou tão grande que logo sentiu tomar-lhe a vontade de sair pelo mundo. Mas o mundo era um lugar ainda escuro demais, diferente daquele pedaço de chão onde viviam, e por isso o amor ali permaneceu por mais tempo, ansiando pelo dia onde tudo seria tão cheio de luz quanto o lugar onde morava. E assim, sonhador como sempre fora, ele deitou e dormiu.
Um dia, enquanto seus pais se namoravam e o amor ressonava viajando em sonhos, a tristeza e a inveja, que viviam na escuridão do mundo, foram repentinamente atraídas por aquela luz que irradiava daquele ponto perdido no espaço. Quando ali chegaram, esgueirando-se pelas sombras que rodeavam o lugar, avistaram o casal apaixonado.
A tristeza abaixou os olhos, e ficou ainda mais triste ao perceber que não tinha o que o casal possuía, e pelo mesmo motivo a inveja encheu-se de raiva, desejando que toda aquela felicidade fosse destruída. Se não podia ter aquilo, ninguém poderia ter. Ardilosa e cheia de rancor, a inveja tramou com a tristeza, bolando um plano para separar aquele casal.
Fortalecendo-se com a escuridão que as rodeava, elas foram para pontos distintos, sinalizando para que cada um dos amantes fosse ao seu encontro. Distraídos com aquilo, os dois foram adormecidos, e assim levados pelas duas figuras rancorosas. O homem foi jogado a um ponto escuro de um lugar que chamavam de céu, e ali deixado para que fosse esquecido.
A mulher foi levada para o outro lado do firmamento, e ali deixada sozinha na escuridão. Assim, as duas senhoras escuras partiram, satisfeitas com o mal que haviam causado. Mas em sua ânsia pela infelicidade, elas não repararam no amor, que ainda ressonava, perdido em sonhos, e foram embora sem causar-lhe dano.
Quando amor acordou procurou por seus pais, e não os vendo ali se entristeceu. Buscou e buscou, chamando-os por todos os lugares, e quando estava prestes a desistir ouviu um sussurro em seus ouvidos. Era a brisa do mar, dizendo-lhe onde eles estavam. Triste por não poder alcança-los, já que estavam tão longe, o amor sentou na areia e observou o mar, e todos naquele lugar prenderam a respiração por um momento, temendo que ele desistisse de tentar ajudar de alguma forma.
Mas se há algo que pode ser dito é que o amor não desiste nunca, e não importa o tamanho do obstáculo, ele sempre consegue encontrar uma forma de transpô-lo. Com um lampejo surgindo em sua mente ele ergueu-se, recolheu toda a luz que seus pais haviam deixado naquele lugar e pediu ao vento que a levasse até onde cada um estava.
Triste pela situação e querendo ajudar o vento abraçou a luz e subiu aos céus, voando o mais rápido que conseguia. Primeiro chegou ao homem a quem entregou a maior parte da luminosidade, e depois, como restante de suas forças foi até o outro lado do firmamento e tocou a mulher com o restante do brilho que levara.
Revestidos novamente da luz que surgira quando se encontraram pela primeira vez, eles se viram novamente, e a felicidade que sentiram foi tamanha que uma explosão foi vista no céu, e o mundo, que antes estivera na escuridão, foi repentinamente iluminado por todo aquele brilho que aqueceu os corações frios e iluminou os pontos mais escuros que existiam.
Do lugar onde estavam, a tristeza e a inveja se desesperaram quando viram tamanha luz, e se ocultaram nos lugares mais obscuros dos corações dos vivos, surgindo apenas nos locais que luz não alcançava.
De onde estava, ao ver tudo aquilo o amor ficou radiante, e sorrindo de felicidade percebeu que agora que a luz a tudo alcançava ele poderia viajar pelo mundo, contagiando-o com sua energia. Mas antes de ir, ele fitou os pais que brilhavam, cada um em um ponto do firmamento, e despediu-se deles chamando-os pela primeira vez por seus nomes verdadeiros. Sol e Lua.
E desde então, todos os dias e noites o sol toca sua amada com seus raios, refletindo nela seu sentimento, e mostrando que a distância, diante do amor, torna-se um simples detalhe.
E assim é possível ver a luz que brilha no céu, representando a relação da qual o amor floresceu.
Desde então, junto a essa luz, ele passeia pelo mundo tocando o coração de todos, aquecendo o desejo dos amantes e apaziguando suas almas, mostrando a todos que distância, inveja, tristeza, ou qualquer obstáculo não resistem quando o que habita no peito é o amor verdadeiro.
A maior prova de amor
O dia estava quente, abafado, e o calor agarrava-se a ele avidamente, fazendo com que gotas e gotas de suor emanassem de sua pele, colando-lhe os extensos cabelos ao rosto e grudando a pesada túnica ao seu corpo cansado. Depois de dias trabalhando fora da cidade ele finalmente voltara, e tudo o que queria era banhar-se, comer e descansar até que seus músculos parassem de gemer.
Das sandálias gastas ecoavam sons secos conforme ele caminhava pesadamente pelo chão árido, quase desértico do lugar, mas enquanto avançava e via os grandes portões e muros diante de si o cansaço parecia diminuir, e sentia-se renovado pelo pensamento de estar chegando em casa. Aquela era sua casa, a casa de sua família, de seu povo. A cidade santa.
Com um sorriso no rosto ele passou pelos portões abertos, como tantas vezes fizera desde que tinha lembrança, mas sua animação sumiu momentaneamente ao avistar os centuriões romanos que ali se postavam, guardando a entrada daquele que era seu lar, mas que eles tinham invadido. Estranhos em uma terra que era sua. Não eram bem-vindos ali, assim como Roma não era bem-vinda no coração de seu povo. Roma, aquela grande prostituta que atraía e engolia a quase todos, com suas belezas e seus pecados.
Passou pelos portões, abertos como ficavam na maior parte do tempo, mas algo chamou sua atenção, um detalhe que poucas vezes vira em sua vida. Apenas dois guardas se punham na entrada da cidade. Desde que tivera idade suficiente para perceber que sua terra era dominada por um povo indesejado, ele sempre vira a entrada da cidade guarnecida por vários soldados.
Homens de rosto impassível e expressão orgulhosa e desafiadora, que fitavam os judeus com desprezo e repúdio, como se fossem uma raça inferior. Guardas que velavam e asseguravam o poderio que Roma exercia não apenas ali, mas em todo o mundo conhecido, chamando a atenção de todos não apenas por sua força e altivez, mas por seu número infindável, que parecia não terminar nunca, como se os romanos fossem ervas daninhas que aparecessem repentinamente e crescessem sem o empreendimento de esforço algum.
Perguntou-se o por que de haverem tão poucos soldados guarnecendo a entrada da cidade, e chegou a cogitar perguntar a um deles o motivo daquilo, mas demoveu-se de imediato da ideia. Não queria sofrer represália daquele povo pecaminoso, ao mesmo tempo em que não via dignidade alguma em dirigir a palavra a qualquer um deles, fosse qual fosse o motivo do diálogo.
Adentrou na cidade, tomado em parte pelo desejo de comer e descansar, e sentindo uma crescente curiosidade, que foi avolumada pela ausência de sua gente nos primeiros pátios que percorreu. Jerusalém era sempre cheia naquela época, naquele horário, mas repentinamente estava vazia. Um estranho sentimento apoderou-se dele, fazendo com que esquecesse qualquer traço de cansaço ou fome que seu corpo sentisse. Uma estranha sensação de algo diferente estava acontecendo. Algo que de alguma forma mudaria o rumo dos acontecimentos.
Com a curiosidade latente e a sensação de mudança crescendo em seu peito ele seguiu adiante, à procura de alguém de seu povo que pudesse lhe dar uma luz para esclarecer aquele repentino mistério com o qual se deparara, até que seus ouvidos captaram um som que vinha à distância. Um som semelhante ao que ouvira dias antes, quando deixara a cidade para viajar a trabalho.
Naquele dia vira uma algazarra formando-se na entrada de Jerusalém, e ao perguntar o que se passava ouviu da boca de um dos seus compatriotas que o povo saudava a chegada de um Nazareno, um homem cujos ecos dos feitos já tinham chegado àquela cidade e em toda a região havia muito. Balançou a cabeça em sinal de reprovação porque não acreditava em nada daquilo, e tomava aquelas histórias como lendas ou bravatas que cresciam conforme se espalhavam pela boca do povo. Mas lembrou-se que antes de sair, viu à distância a imagem de um homem montado no lombo de um pequeno jumento, atravessando um corredor de ramos formado pela população que o recebia.
Agora que voltara, nova algazarrava se formava, e ele imaginou se o motivo não seria novamente o homem que vislumbrara à distância. Apertou o passo e percorreu becos, ladeiras e corredores da cidade santa, sentindo uma estranha ansiedade crescendo em seu peito no mesmo ritmo em que crescia em seus ouvidos o barulho dos ecos da multidão.
Mas o barulho que tomava seus ouvidos e atingia-lhe o peito conforme ecoava mais e mais em nada tinha a ver com o som ouvido no dia em que deixara a cidade. Daquela feita, a voz do povo era de alegria, e celebrava a chegada de alguém há muito esperado. Mas agora, o que escutava era escárnio, desdém e raiva direcionados a uma pessoa que não era desejada.
Correu e correu, sentindo nos ouvidos o som que crescia como o bramir das ondas quebrando à beira do mar, no peito a ansiedade por saber o que era aquele evento que a ele parecia de alguma forma ser um divisor de águas, e na cabeça a torrente de dúvidas acerca do que estava se passando. Correu e correu até deparar-se repentinamente com uma muralha de pessoas que se acumulavam em uma estrondosa gritaria enquanto alguém passava em meio a elas.
Ao ver aquela cena ele ficou estagnado, engoliu em seco e sentiu o coração bater pausadamente em seu peito enquanto um vazio parecia crescer em sua barriga. Ecos de raiva e desprezo eram lançados ao ar por aquelas bocas, acompanhados por uma expressão de desdém. Vozes que xingavam, zombavam e menosprezavam. Punhos cerrados de forma feroz, exigindo uma morte, mas antes da morte, o sofrimento.
Abriu caminho em meio à turba enlouquecida na tentativa de ver o que se passava, e ao correr os olhos pela via que se estendia adiante ele os parou em uma figura curvada, uma figura que à distância parecia encolhida, reduzida, quase... consumida.
Lá, à distância, ele viu um homem trôpego, cambaleante, quase sem forças, vergastado, espancado, açoitado, sujo e ensanguentado enquanto carregava um símbolo que para seu povo representava morte, medo e humilhação. Uma enorme cruz que a seus olhos parecia por demais pesada, por demais dolorosa. Colada àquele corpo maltratado em um misto de sangue, sujeira e suor havia o que restara de uma túnica, retalhada por chicotes e pelas quedas sofridas por aquele pobre sofredor naquele trajeto devastador.
O corpo magro e curvado do caminhante, igualmente retalhado pelos ferimentos que pareciam ter vindo de todos os lados, dava-lhe a impressão de que se quebraria a qualquer momento, mas mesmo diante das quedas mais severas e das pancadas mais brutais que ele recebia no caminho, ainda assim recolhia forças que não se sabe de onde vinham, para uma vez mais erguer a pesada cruz e seguir seu trajeto de dor e humilhação.
De onde estava o observante assistia a tudo estarrecido, perguntando-se de onde vinha tamanha força, tamanha resistência, e como aquele povo podia odiar tanto alguém a ponto de reunir-se para inflingir-lhe tanta dor. Tentando imaginar a hediondez do crime que aquele sofredor cometera ele resolveu parar uma das pessoas que brandiam a mão para perguntar-lhe o motivo de toda daquela raiva.
- O que fez este homem de tão grave? – Perguntou a um dos menos agitados.
- O que fez não sei, mas sei o que farão com ele. – Respondeu, antes de bradar mais xingamentos contra o pobre sofredor.
- Se não sabe o que ele fez, então por que lhe lança tais palavras obscenas?
O homem o fitou com um misto de raiva e incômodo na expressão, olhando de uma forma agressiva o suficiente para que o observador resolvesse sair dali. Adiantou-se mais alguns passos em meio à multidão enfurecida, que parecia enraivecer-se mais conforme ele chegava mais perto da via por onde o pobre sofredor se aproximava. No caminho viu algumas pessoas chorando, lamentando aquela cena. Eram poucas, mas ainda assim estavam ali, em meio àquela turba enlouquecida.
Aos tropeços ele avançou mais, abrindo caminho movido por uma necessidade à qual ele não sabia explicar. Queria estar em casa, descansando da viagem extenuante, comendo para matar a fome que sentia, revendo a família da qual já sentia saudade. Mas havia algo maior que o atraía, e que não sabia explicar o que era. Como se alguma coisa o impelisse em direção àquela via, onde um homem caminhava à custa de muito esforço, parecendo carregar o peso do mundo em suas costas.
Andou, ansiando por aproximar-se, ao mesmo tempo em que o homem com a cruz nas costas andava em direção ao ponto ao qual ele se dirigia. Andou por entre pessoas que bradavam e pessoas que choravam, enquanto o homem que era alvo daqueles bramidos aguentava o peso de sua dor, de sua humilhação, dos golpes que recebia no rosto e no corpo. Andou sem saber porque o fazia até que chegou a um ponto em que podia ver nitidamente a cena que se desenrolava.
E foi nesse exato ponto que o homem tombou, com a cruz caindo às suas costas em um baque seco e reverberante, indo de encontro ao chão e espalhando gotas do sangue que jorrava de suas feridas, mescladas à poeira levantada com a queda. Olhando aquilo ele pensou que o sofredor não teria mais condição alguma de erguer-se novamente. Não ferido do jeito que estava.
Mas antes que ele pudesse ter a chance de concluir aquele raciocínio, foi tomado de surpresa quando o homem magro e ferido, tirando forças de algum lugar, apoiou um dos braços no chão e ergueu-se lentamente, abraçando a novamente a cruz que carregava, sem abandona-la um momento sequer, sem sequer cogitar a ideia de fugir dela.
Naquele momento os olhares dos dois se cruzaram, e para ele o tempo pareceu parar. Naquele momento ele viu nos olhos do homem todo o sofrimento que carregava sem culpa alguma, sem nada ter feito para sofrer aquela punição. Mas viu também algo mais. Naquele olhar ele viu que o homem fazia a tudo de bom grado, sem remorso, sem arrependimento.
Naquele olhar ele sentiu um amor que jamais sentira em toda a sua vida. Naquele olhar ele viu paz, e repentinamente sentiu-se... salvo. E foi tomado por uma torrente de arrependimento, sentindo dentro do peito uma vontade crescente de deixar para trás uma vida de pecados, e pedir perdão por todos os que havia cometido.
O homem ergueu-se lentamente, ainda olhando para ele, parecendo ler seus pensamentos, e por um breve momento pôde ver no rosto ensanguentado e machucado daquele sofredor um sorriso. Em meio a toda aquela dor o homem sorria para ele. Um sorriso puro, de quem compreendia o que o observador sentia.
Parado, sem reação e com o peito cheio de um sentimento que não conseguia definir, ele olhou enquanto o homem se distanciava, arrastando lentamente a enorme cruz que carregava, indo adiante sem qualquer dúvida, sem qualquer incerteza. Naquela tarde ele não foi para casa descansar, rever a família e alimentar-se.
Naquela tarde ele ficou parado naquele exato ponto, fitando o vazio enquanto o rosto e o sorriso daquele homem passeavam em sua memória. De lá ele viu quando a hora se adiantou, quando o céu escureceu e o som de trovões ribombou no ar. De lá ele sentiu o chão tremer embaixo de seus pés, enquanto uma tristeza infinita invadia seu peito. De lá ele saiu, quando a noite chegou fria e solitária, atingindo-o com um silêncio ensurdecedor.
Nos dias que se seguiram ele não foi o mesmo, andando cabisbaixo e pensativo pela casa, para espanto de sua família, que nunca o vira daquele jeito. A todo momento lembrava-se do sorriso no rosto do homem que carregava uma cruz de bom grado, sem dela tentar desvencilhar-se, e a cada momento em que vislumbrava aquela expressão resiliente e cheia de bondade seu coração se enchia de um sentimento que ainda não conseguia descrever.
No terceiro dia andou pela cidade, ainda pensativo, ainda com a imagem do homem a invadir-lhe a mente, e enquanto o fazia ouviu uma movimentação a se formar nos arredores de Jerusalém. Não com a mesma força da torrente humana que se formara para assistir à condenação e morte do homem que invadia seus pensamentos, mas que ainda assim era grande o suficiente para chamar a atenção de quem passava.
Pessoas corriam de um lado para o outro, com o espanto nas vozes e nos rostos, enquanto as mesmas palavras eram ditas cheias de assombro por todo lugar. “Ele ressuscitou”, todos diziam. “Ele ressuscitou”. Tomado de espanto ao ouvir aquilo o homem perguntou aos passantes quem havia ressuscitado, recordando-se de uma história recente que ouvira dentro daqueles muros. A de alguém chamado Lázaro.
Seu espanto foi ainda maior ao saber que a pessoa a quem todos se referiam era o Nazareno de olhar sincero e sorriso acalentador que ele vira carregando uma cruz pesada enquanto toda a dor do mundo parecia trespassar-lhe o ser. Correu com um grupo a ver se aquilo era verdade, e seus olhos inexplicavelmente se encheram de lágrimas ao perceber, vendo a tumba do crucificado, que ali já não havia nenhum corpo.
Alguns diziam que era uma mentira, que os discípulos do Nazareno haviam levado seu corpo durante a noite e espalhado aquela história logo depois. Mas ele não acreditava naquilo. Em seu coração sentia e sabia, de alguma forma, que o homem que vira carregando o peso do sofrimento de fato voltara à vida, e aquilo lhe trouxe um alívio momentâneo para o sentimento que lhe fustigava havia dias, e que ele não sabia definir qual era.
Nos meses que se sucederam àquele fato assombroso ele acorreu aos locais onde o Nazareno pregara, tentando encontrar seus discípulos, levado por uma vontade que brotava de seu interior sem explicação, uma vontade de encontrar novamente aquele homem. Mas sempre parecia atrasado, chegando após a saída de um ou de todos eles. Assim fez por meses, sem nunca obter sucesso em sua busca, e ainda fustigado por aquele sentimento que o perseguia sem dar-lhe sossego.
Meses após a crucificação ele saiu uma vez mais da cidade a trabalho, em uma viagem que duraria dias. Consigo levou suprimentos, para o caso de ter de dormir ao relento, como esporadicamente ocorria quando o trajeto era longo demais. Um dia após deixar a Cidade Santa ele foi pego pela noite que chegara sem que percebesse, distraído demais pelos pensamentos que corriam por sua mente, e teve de montar acampamento para dormitar sob as estrelas.
Fez fogueira, armou tenda, e sentou-se diante do fogo para aquecer-se e alimentar-se. Ainda absorto nas lembranças do homem que vira caminhando em direção à morte sem carregar consigo nenhuma queixa, ele teve um sobressalto ao ver uma figura aproximar-se em meio à escuridão que o rodeava.
- Salve amigo. – A voz do estranho ecoou enquanto ele já buscava com uma das mãos a faca que carregava sob a túnica para defender-se. – Peço desculpas se o assustei. Venho em paz. Estava me preparando para levantar acampamento quando vi a luz de sua fogueira e resolvi aproximar-me.
- S-salve. – Ele ouviu a própria voz saindo reticente de sua boca, ainda assustado com a chegada repentina daquele estranho.
- Mas posso ir embora, se não quiser ser incomodado. – O homem usava uma túnica branca, simples, como a que os pastores usavam, e o som de sua voz não lhe causava temor, mas uma espécie de tranquilidade. – Sei que me aproximei sem convite, mas deixo claro que meu feitio é entrar nos lugares quando me permitem fazê-lo.
- Eu... não, não precisa. Sente-se. Fiquei apenas um pouco assustado com sua chegada. Em dias como esses devemos ter cuidado em meio ao deserto. Não leve a mal o que digo. Mas devemos ficar atentos.
- Não fico ofendido. Entendo o que diz e concordo. Devemos vigiar para não sermos pegos de surpresa quando a hora chegar.
O homem ficou observando enquanto o estranho sentava-se ao seu lado próximo à fogueira, pesando aquelas palavras, que de alguma forma pareciam ter um significado bem mais amplo do que o que aquela conversa abarcava.
- Qual o seu nome? – Perguntou, tomado pela repentina impressão de que já vira aquele rosto sereno em algum lugar.
- Pode me chamar de Emanuel. – Disse o estranho, dando ao homem um sorriso que lhe trouxe uma calma que não sentia havia um bom tempo.
- E o que o traz a estas paragens Emanuel? Se me permite a pergunta.
- Sou pastor. – Respondeu, lançando-lhe um sorriso singelo e aumentando no homem a impressão de que já vira aquela pessoa antes.
- E onde estão suas ovelhas?
- Em todo lugar. – E sorriu novamente.
- Você as perdeu? Está à procura delas?
- Não as perdi. Mas elas se afastaram. Vim para recolhe-las novamente.
O homem continuou a observar o rosto de Emanuel, ainda tentando lembrar-se de onde o conhecia, sem ter prestado muita atenção nas palavras que ele dissera.
- Você parece preocupado com algo meu amigo. Alguma coisa o incomoda?
- Como? – O homem ficou perturbado com a percepção do estranho.
- Sua voz, seus olhos, algo emana de você. Uma espécie de tristeza. Um peso que parece carregar.
O homem desviou os olhos do olhar do estranho, tendo a impressão de que ele enxergava mais do que apenas seu exterior. Durante meses guardara para si aqueles sentimentos, aquela sensação de tristeza que o tomava, de insatisfação que o invadira desde o dia em que vira o Nazareno carregando sua cruz. Não contara a ninguém aquilo, apesar de ter certeza de que sua família a tudo percebera.
Mas aquele homem era diferente, seu olhar parecia ir além do que os demais tinham a capacidade de perceber, e era um olhar que ele tinha a impressão de já ter visto antes em algum lugar. Repentinamente foi pego de surpresa pela necessidade que sentiu de revelar o que se passava para aquele homem, logo ele, um estranho que chegara apenas alguns minutos antes, quando sequer para sua família ele quisera se abrir em todo aquele tempo.
- Conheceu o Nazareno que entrou nos muros de Jerusalém alguns meses atrás? – Falou, sem mais desejar guardar em seu peito aquele peso.
- O que foi crucificado? – O rosto de Emanuel pareceu ficar momentaneamente absorto em lembranças. – Sim, eu soube do ocorrido.
Cansado de guardar para si aquele sentimento que o consumia, ele resolver então narrar tudo o que se passara para aquele estranho, desde sua chegada em Jerusalém, até o momento em que vira o Nazareno carregando sua cruz e olhando de volta para ele com aquele olhar que parecia perscrutar todo o seu espírito, e todas as tentativas posteriores de travar conhecimento com os discípulos daquele homem. Quando terminou, sentiu uma paz surgindo dentro de si, como se um peso incômodo tivesse sido reduzido.
- Então você sentiu-se tocado pelos ensinamentos do crucificado, e sente o desejo de segui-los. – Disse Emanuel. – No entanto, sente-se indigno de fazer isso.
- É o sentimento que carrego desde o dia que aquele homem me fitou enquanto carregava sua cruz.
- Você sabe o que é isso?
- É o que tenho desejado descobrir desde aquele dia.
- Isso, meu amigo, é culpa. É culpa o que sente, por todos os erros cometidos em sua vida perante os olhos de DEUS. E sabe por que sente isso?
- Não. – A voz do homem saiu quase inaudível, tendo a sensação de que sua mente estava a um passo de lembrar-se de onde conhecia aquele homem.
- Porque se arrepende. Se arrepende desses pecados, e essa é a cruz que tem carregado.
- Sim. – Disse ele, com os olhos brilhando. Sim! É isso! E por isso me sinto indigno Dele. De seus ensinamentos, de segui-lo. Porque não sei como expiar esses pecados.
- Você crê nele? No Nazareno?
- Mais do que em qualquer outra coisa que já vi ou ouvi na vida.
- Você quer de fato segui-lo?
- Mais do que qualquer outra coisa.
- Então largue seus erros no solo, meu filho. Porque eles foram lavados no dia em que aquele homem se entregou na cruz. Foi esse o preço que Ele pagou para lavar seus pecados. Você já se arrependeu deles, filho, e por isso hoje há festa o céu.
Um sentimento novo se apoderou daquele homem, um misto de alívio com felicidade. Lágrimas brotaram de seus olhos enquanto uma nova e cristalina vontade de sorrir parecia emanar de dentro dele. Sua vista ficou turva, e tudo o que ele quis, embora sem saber explicar porque, foi abraçar aquele homem, aquele estranho que ali chegara sem aviso, e colocar para fora o resto de dor que sentia.
- Como sabe disso? – Foi tudo o que conseguiu perguntar enquanto o choro misturado ao sorriso lhe embargava a voz.
- Acredite! – Disse Emanuel, erguendo uma mão para segurar a mão trêmula do homem ao seu lado. – Acredite, meu filho, eu sei! – E deu a ele o mesmo sorriso que ele vira no rosto do Nazareno no dia da crucificação.
Tomado de espanto ele fitou a mão do homem, vendo ali uma marca, como se algo tivesse a trespassado, e então percebeu quem Ele era. Com a vista turva e ardendo, levou as mãos aos olhos para enxuga-los, mas ao recuperar o foco da visão acabou tendo um sobressalto ao perceber que o lugar que um segundo antes era ocupado por Emanuel estava agora vazio.
Levantou-se de um pulo e correu sua vista em todas as direções, tentando enxergar no escuro da noite algum sinal do homem que estivera ali um momento antes. Correu ao redor da fogueira, correu na escuridão, chamando pelo nome de Emanuel, não o vendo em lugar algum, mas de alguma forma o sentindo tão próximo como estivera enquanto esteve ao seu lado.
Então foi assaltado pela lembrança do sorriso no dia da crucificação, e de como ele se repetira momentos antes, quando se abrira para aquele estranho, sabendo então, naquele instante, que o andarilho que surgira do nada de alguma forma sempre estivera com ele, e sempre estaria, até o fim dos tempos.
Então chorou, mas não de tristeza, e sim de alegria, porque quando a felicidade é grande demais para se externar em um sorriso, ela veste a roupa da humildade e surge na forma de uma lágrima. Ali, no meio da noite, ele sentou-se em frente à fogueira, chorando e sorrindo com a plenitude tomando-lhe o espírito, e assim louvou a DEUS, porque Emanuel estava com ele, e sempre estaria. Porque Emanuel havia ressuscitado depois de morrer para limpa-lo de seus pecados, e com aquele ato havia lhe livrado da pior morte que poderia existir, a morte do espírito.
Em meio à noite silenciosa, sob as estrelas que se estendiam no céu, sua alma ficou leve como uma pluma, porque um Homem dera sua vida por ele, e não havia prova de amor maior do que aquela. Naquele momento ele soube que o Nazareno, que Jesus, que o Messias que surgira no mundo não pedia nenhum sacrifício em retorno, mas apenas uma coisa, uma coisa tão fácil de fazer quando há sinceridade, uma coisa tão pura como o vento que corria em meio àquele noite estrelada.
Ele queria apenas o amor daquele homem. O amor da humanidade.
E não há sacrifício algum em amar.
Louvado seja o Cristo ressuscitado, que deu a vida para lavar nossos pecados. Que amemos a Ele, porque Ele nos amou primeiro.
Seguir em frente
Tudo parecia igual, e ao mesmo tempo tudo estava diferente. Em sua mente as lembranças eram resgatadas aos poucos, conforme ele observava os detalhes tentando traçar um paralelo do que um dia fora a paisagem que fitava com o que era naquele exato momento em que seus olhos a perscrutavam. Olhos físicos que contrastavam o que viam com o que os olhos da memória enxergavam.
Mas não eram apenas a lembranças dos detalhes da paisagem que surgiam conforme os segundos passavam e ele caminhava entre um misto de realidade e imagens resgatadas do armário de memórias, algumas delas das quais ele gostaria de ter se livrado há muito, muito tempo.
Cenários daquele prédio, do jardim externo, do portão de entrada, do corredor que dava para as salas mesclavam-se com a figura de um garoto tímido e isolado, que parecia ocultar-se a cada momento, como se invejasse as sombras, como se quisesse tornar-se uma delas para não ser visto, para não se destacar em meio aos demais alunos que o circundavam. Em uma época em que garotos sonhavam com heróis e em ter superpoderes, tudo o que ele quisera fora ter era a habilidade de ser invisível.
Caminhou pelo corredor vazio, enquanto os sons de seus passos ecoavam no chão encerado, sendo invadido a cada metro que avançava por uma torrente de lembranças, algumas boas, que ativavam a nostalgia em sua mente, em seu peito, e outras nem tanto, causando-lhe um desejo repentino de delas livrar-se. Mas não conseguia. Não conseguira antes, e não conseguia agora.
Continuou andando por aquele corredor vazio de gente e cheio de lembranças, até chegar à porta que dava acesso ao ginásio, lugar marcado para o encontro de ex alunos que fora organizado por alguém que tinha boas memórias daquela época a ponto de querer revivê-las em uma reunião que duraria apenas algumas horas, mas que suspeitava que para ele fosse parecer muito mais tempo.
Abriu a pesada porta de metal, que rangeu diante de seu esforço, fazendo mais barulho do que ele desejava que tivesse feito. Repentinamente sentiu-se novamente como aquele pequeno garoto, aquele menino gordo e com espinhas no rosto, que buscava esconder-se dos outros, para que os outros dele não zombassem. Mas parado à porta, tudo o que ele viu foram olhares voltados para ele, vários, inúmeros, como se apenas estivessem esperando por sua chegada, como se ele fosse o centro de todas as atenções.
Sentiu o rosto ficar rubro e o calor percorrer seu corpo, e subitamente uma indesejada gota de suor surgiu em suas costas e por elas desceu lentamente, por segundos que pareceram durar uma eternidade, até sumir no limite em que sua calça circundava a cintura. Mas o incômodo não sumira, continuava ali, insistente, assim como sua vontade de desaparecer.
Tão repentinamente quanto o desconforto surgiu, ele sentiu algo brotar dentro de si. Uma espécie de comando, uma voz de autoridade que criara, que desenvolvera com o passar do tempo e que parecia dizer, “Ei garoto, está tudo bem, eu estou aqui e não vou deixar que nada de mal te aconteça.” Era o ele de agora conversando com aquele menino inseguro, com o menino que queria esconder-se, com o garoto que fora um dia e de quem por tanto tempo quisera livrar-se, até entender que fazia parte dele, e que devia acolhe-lo e ama-lo, como nunca fora amado anteriormente.
O calor sumiu, o suor desapareceu, o rosto voltou à sua coloração normal, e com um sonoro “Foda-se!” que ecoou em sua mente ele caminhou em meio às dezenas de pessoas que se espalhavam por aquela quadra que em um passado distante lhe fora tão estranha quanto parecia agora. Com os olhos firmes e erguidos ele fitava e sustentava o olhar de cada pessoa que o encarava, não lembrando em nada o menino inseguro que por tantas vezes correra a vista para o chão na busca por um refúgio para sua insegurança.
As pessoas que o olhavam pareciam confusas. Não o reconheciam, entregavam com suas expressões incertas que não lembravam dele. Não sabiam quem era aquele homem sem crachá de identificação. Aquele homem bonito, com cabelos bem penteados, com um rosto liso e sem rugas, usando um terno que parecia agarrar-se sob medida a um corpo em forma, diferente de tantos outros que havia ali. Comparado aos demais, ele sequer parecia possuir a mesma idade, aparentando ser mais um estranho um pouco mais jovem que entrara por engano naquela reunião de ex-alunos.
Foi até a enorme mesa preparada no fundo da quadra, ciente dos olhares que algumas das mulheres lhe lançavam. Mulheres que no passado tinham sido meninas que pareciam há anos luz de seu alcance. Que tinha desejado em segredo e amado platonicamente sem nunca ter dito nada, temendo ser humilhado como tantas vezes fora antes. Abriu uma das garrafas de bebida que ali havia e encheu o copo até a metade, virando-se para continuar a reparar naqueles rostos dos quais tanto fugira um dia.
- Boa tarde. Acho que não nos conhecemos. – Aquela voz lhe retirou de seu estado de observação, e ao virar-se para o homem que aparecera ao seu lado ele pareceu ser invadido por uma torrente de lembranças... e nenhuma delas era boa.
Sim, ali estava ele, um dos motivos para ele ter relutado tanto em comparecer àquela reunião. Já não era o garoto de porte avantajado que fora um dia, um dos atletas da escola, um dos “caras” que usavam o físico para compensar a falta de sensibilidade e de intelecto para impor respeito àqueles que considerava como membros de uma casta humana inferior à sua, deles abusando física e psicologicamente em uma sessão diária de bullying que parecia não terminar nunca.
A vasta cabeleira que um dia ostentara dera lugar a um amplo e lustroso espaço no meio de sua cabeça, denotando uma inconfundível e considerável calvície, tão destacável quando a barriga protuberante que fazia volume na camisa que o valentão do passado agora usava. Olhando para ele, o jovem estranho podia encarar de igual para igual seu algoz, que décadas atrás tinha quase o dobro de sua altura, vantagem que usava para intimidá-lo, para persegui-lo, para tornar seus dias naquela escola em um suplício que só ele podia definir.
Palavras como “bola de sebo”, “suíno”, “baleia” e tantas outras começaram a ecoar em sua mente, liberadas repentinamente tal qual uma torrente de água vê-se livre da represa que a contém. Surras constantes, perseguições, brincadeiras humilhantes, e xingamentos que feriam tanto quando pancadas físicas. Sentiu seu maxilar estalar e os músculos do pescoço retesarem quando lembrou-se de tudo o que tinha passado na mão daquele homem que um dia fora um valentão de escola, mas procurou acalmar-se, afinal, ao longo da vida tinha construído o pensamento de que as pessoas mudavam, e da mesma forma que a aparência de quem estava à sua frente tinha mudado, o seu interior também podia ter se modificado.
Antes que pudesse se identificar uma terceira pessoa se aproximou. Um homem um pouco mais alto que ele, mas que parecia ser ao menos dez anos mais velho. Magro, curvado e com algumas rugas profundas no rosto ele lembrava o segundo algoz de sua infância, mas já sem a agressividade que tivera no olhar naquela época. E agora estavam ali, os três, décadas depois, como se o tempo tivesse dado um salto repentino entre o passado e o presente, uma passo de segundos no que para ele pareciam ser eras inteiramente distintas.
Um velho e conhecido tremor voltou a percorrer seu corpo, mas antes que aquilo pudesse perturba-lo mais ele ouviu novamente aquela voz de segurança, a sua voz de agora ecoando em sua cabeça. “Calma garoto. Tá tudo bem. Eu estou aqui.” Então, sem dar oportunidade para que o outro falasse, ele se apresentou aos dois, ainda com aquela ideia de que as coisas tinham mudado. De que a fachada de determinadas casas era modificava juntamente com seu interior.
- Bola de sebo! É você cara? – Disse o homem calvo e barrigudo assim que ele terminou de se apresentar. – Nossa, como você mudou garoto. Onde foi parar toda aquela banha?
Ao ouvir o sorriso, a risada de desdém, a mesma que ouvira tantas vezes em seu passado, ele sentiu uma raiva fria subindo por seu corpo, um sentimento cortante que parecia paralisa-lo ao mesmo tempo que o impelia a fechar a mão e lançar o punho com toda a força naquela boca que sorria de forma desprezível para ele. “Algumas coisas não mudam”, pensou consigo, enquanto tentava controlar o ímpeto que o seduzia a esmurrar o homem que o provocara.
- Ei, uou, o que é isso? – Soou a voz do homem magro e encurvado que chegara depois. – Isso é jeito de tratar o cara? Não somos mais moleques. – E voltou-se para ele, erguendo uma das mãos para cumprimenta-lo. – Seja bem-vindo amigo, qual é mesmo o seu nome?
Ele olhou para a mão do homem estendida por um tempo que para os três pareceu passar devagar demais, estudando-a, analisando-a, esperando que por trás daquele gesto estivesse uma armadilha, uma cilada que o pegaria desprevenido, como tantas vezes acontecera no passado, onde aquele mesmo que lhe oferecia um cumprimento oferecera sofrimento.
“Ei, estou aqui. Tá tudo bem”, a voz voltou a soar, e com uma confiança renovada ele ergueu a mão para retribuir o gesto.
- É um prazer revê-lo meu caro, embora confesse que realmente não lembrei de você, já que mudou bastante com o tempo. – O recém chegado sorria para ele, um sorriso sincero, diferente de todos os outros que lhe dera no passado.
- Claro que mudou. – Disse o que o olhava com desdém. - Só quero saber onde foi que guardou toda aquela banha. Sem falar nas espinhas que ele ganhou com o passar do tempo. Olha cara, eram tantas espinhas que você parecia um abacaxi. Como é mesmo que te chamávamos? Droga, tá na ponta da língua. Hum... Ei, lembrei, ralador de queijo! – E deu uma gargalhada que chamou a atenção dos que estavam mais perto deles.
Nova onda de raiva. Algo que crescia dentro dele e estava prestes a explodir. Apertou as mãos com tanta força que sentiu os ossos dos dedos estalando. Naquele momento imaginou que se um vulcão tivesse consciência, provavelmente se sentiria daquela forma momentos antes de uma erupção.
- Você não cresce nunca cara? – Disse o homem magro e encurvado. – Será possível que não vai deixar de agir dessa forma?
- E por que você se incomoda tanto com isso? – Retorquiu o provocador. – É só uma brincadeira cara. Relaxa. O mundo ficou chato demais. Ninguém pode mais brincar, colocar uns apelidos, tirar sarro da cara de alguém que já chega esse tal de politicamente correto querendo censurar tudo. Ah, vá... E além disso, se alguém tinha que ficar irritado, esse seria o bola de sebo aqui. E pelo que vi até agora ele está levando numa boa. Não é bola de sebo? – Disse, dando-lhe um tapa nas costas.
- Me incomoda porque não somos mais crianças, e mesmo naquela época estávamos errados. – Devolveu o mais magro, nitidamente incomodado com aquele comportamento.
- Olha, eu prometo que paro, se o nosso colega aqui pedir. Certo cara? – E novamente ergueu a mão para dar-lhe um tapa nas costas. Mas seu braço foi impedido a meio caminho de distância.
- Pare! – Disse, enquanto segurava com força o braço do homem que o provocava. – Por favor, pare! – Repetiu, cravando mais fundo os dedos em sua pele.
- Ei! Que é isso? Calma! – Retorquiu o homem, puxando o braço na tentativa de desprender-se. – Eu só estava brincando.
- Não, você não estava. Você nunca esteve. E mesmo que achasse que aquele tipo de comportamento doentio fosse uma brincadeira, que liberdade eu te dei para fazer isso quando eu era criança? E que liberdade eu te dei agora para repetir o gesto?
- Calma amigo. Calma. – Disse o provocador, recuando apreensivo. – Não quero confusão. Não sou de briga.
“Não é agora”, pensou consigo. “Não quando não tem mais a vantagem que tinha anos atrás. Não quando já não possui o dobro do meu tamanho. Não quando finalmente eu consegui desafiar você”. Naquele momento ele quis dizer tudo aquilo ao homem careca e barrigudo que um dia fizera de sua vida um tormento. Quis fazer isso pelo garoto inseguro e retraído que fora um dia, para mostrar a ele que agora podia arrebentar a cara de alguém que parecera não ter mudado nada em tantos anos.
Mas em meio a toda aquela raiva ele se perguntou sobre como aquilo ajudaria. Qual a sensação que traria a ele? Orgulho? Poder? Uma falsa noção de superioridade? Se socasse a cara daquele homem ele seria alguém melhor, ou simplesmente se colocaria no mesmo nível daquele que durante muito tempo fora seu algoz?
Não. Aquela atitude não levaria a nada. Não era seu porte físico agora que lhe dava força. Não era sua musculatura, sua estatura, seu olhar brevemente intimidador. Não fora isso que o levara a se tornar uma pessoa melhor. Não fora o homem externamente bonito que era agora, mas sim a beleza que sempre levara dentro de si. A beleza de um garoto gordinho e com o rosto cheio de espinhas. A beleza de um menino resiliente, inteligente e sensível, que a despeito de ter sido inseguro durante um período de sua vida, sempre se mostrara corajoso e forte o suficiente para seguir em frente, mesmo diante de tantas perseguições, de tantas humilhações.
Não era o homem que tinha se tornado que se mostrava melhor que seu adversário. Mas sempre fora aquele garotinho que ele achava que tinha que proteger, e que na verdade o protegia agora, mostrando-lhe uma vez mais que a resiliência tinha tanta força quanto a agressividade. Não, ele não arrebentaria a cara de seu algoz. Mas precisava fazer algo, não apenas por si mesmo, mas por aquele homem que insistia em persegui-lo.
- Você diz que está brincando. Que tudo nunca passou de uma brincadeira. Então me diz, o que acharia se eu levantasse a voz aqui, na frente de toda essa gente e te chamasse de aeroporto de mosquito, de cabeça de ovo, de Kojack, de careca de merda. O que acharia se eu dissesse bem alto aqui para tomar vergonha na cara fazer alguma coisa para tirar essa banha toda que carrega aqui. – E empurrou um dedo em direção à protuberante barriga do homem, o que fez com que ele desse um passo para trás.
“O que diria se eu perguntasse quanto tempo falta para parir o que carrega nessa barriga, se te chamasse de Homer Simpsom aqui, em alto e bom som, rindo da sua cara enquanto você fica aí parado com cara de idiota? Hein? Me diga!”
O homem que um dia fizera de sua vida um suplício o fitava assustado e ao mesmo tempo com uma expressão desolada, como se seu orgulho tivesse sido atingido com a força de uma carreta desgovernada.
- Pela cara que está fazendo eu diria que não acharia que é uma brincadeira. Pela sua expressão eu diria que está humilhado, e isso pelo simples fato de eu ter lhe falado essas coisas em voz baixa, sem que nenhuma dessas pessoas pudesse ouvir. Dói não é? Dói quando é com você, quando são seus ouvidos que são atingidos, quando é seu orgulho que é posto no chão. Machuca, não machuca? Incomoda? Massacra? Pois é. Foi isso que eu senti por anos. É isso que estou sentindo agora. Bola de sebo? Ralador de queijo? Suíno? Por que você acharia que eu não me incomodaria com isso hoje?
- Eu, eu... – o homem não conseguia completar uma simples frase, porque não havia o que ser dito.
- Sabe qual é minha maior vontade meu chapa? É partir a sua cara ao meio, é dar a você só um pouco do que você me deu por anos. Garanto que não precisaria de muito para fazer isso. – Os olhos do homem se arregalaram denunciado o medo que sentia. – Mas sabe porque não vou fazer isso? Porque um garotinho está aqui, segurando minha mão. Um garotinho que eu achava que devia ser protegido, ensinado, preparado, mas que na verdade está me ensinando algo nesse exato momento. Algo que anos de raiva acumulada me fizeram esquecer. Ele acabou de me lembrar que certas coisas não valem a pena. E que a pureza de um menino, a paciência, a resiliência dele para aturar pessoas sem sensibilidade alguma são melhores do que a agressividade de um homem revoltado. Então meu velho, agradeça àquele garotinho que você tanto atormentou por eu não chutar seu traseiro mole e caído aqui na frente de todo mundo. Ah... e nunca... nunca mais me chame de bola de sebo, por que se fizer isso novamente comigo ou com mais alguém que eu conheça, eu juro que vou fechar os ouvidos para os conselhos daquele menino. Você entendeu?
O homem limitou-se a balançar a cabeça careca, com olhos esbugalhados que em nada lembravam o menino agressivo que fora um dia.
Então ele pôs o copo em cima da mesa, olhou ao redor, viu que não tinha nada mais a fazer ali e virou-se para ir embora, deixando para trás os últimos resquícios de medo, insegurança e raiva que ainda carregava. Caminhou a passos largos até a porta, mas antes que tivesse a oportunidade de abri-la, sentou dedos finos mas firmes agarrando seu braço, e viu que era o homem magro e encurvado, o que em uma época que agora parecia distante também fora autor das humilhações que sofrera.
- Escute. – Disse ele, fitando-o novamente com a mesma expressão sincera que em nada lembrava o garoto que fora um dia. – Por favor, me escute um pouco antes de ir. Eu... bem... por muito tempo eu pensei no que tinha feito no passado. Nas pessoas que persegui e em todas aquelas coisas estúpidas e sem graça, que nada tinham de brincadeira. E a imagem que quase sempre vinha à minha mente era a sua. Durante anos eu me perguntei o que faria se tivesse a oportunidade de encontra-lo de novo. O que falaria, e tudo o que vinha à minha mente eram só duas palavras. Apenas duas que por décadas ficaram presas em minha garganta, e que pediam desesperadamente para sair todas as vezes que eu me lembrava de você.
- E que palavras eram essas? – Perguntou, diante do silêncio que se estabeleceu.
- Me perdoe. – Disse o homem magro. – Me perdoe por tudo aquilo. Pela minha estupidez. Pela minha idiotice.... pela minha fraqueza. Porque mesmo achando que eu era mais forte que você naquela época, a verdade é que eu era fraco, e era atrás daquela postura de valentão que eu escondia minha fragilidade. A verdade é que era você o mais forte de todos nós. Era você que passava por aquilo e que seguia em frente. E foi aquele menino que o transformou no homem que é hoje. Um homem que acabou de mostrar na minha frente o tipo de fibra do qual é feito. Não sabe o quanto eu invejo aquele menino agora... e não sabe o quanto eu invejo a pessoa que ele é hoje. E por isso eu lhe peço perdão.
Surpreso com o que ouvira ele viu mais uma vez as lições que a vida podia dar. Duas pessoas que tinham tornado parte de sua juventude um pesadelo, que tiveram praticamente as mesmas experiências de vida, que cresceram e conviveram juntas por anos, uma delas mantendo-se dentro dos erros do passado, e a outra arrependendo-se deles e buscando seguir em frente.
Aquelas duas pessoas tinham lhe mostrado o quanto o ser humano podia pender para os dois extremos na tênue linha das escolhas que temos no caminho da existência, e o quão importante era o ato de evoluir e seguir adiante, algo que ele faria a partir daquele dia.
Contente por ter superado uma fase passada que ainda lhe incomodava, e contente pela lição que acabara de receber, ele sorriu para o homem à sua frente, apertou sua mão e apenas acenou com a cabeça, denotando com um simples gesto algo tão vasto e grandioso como o perdão. E partiu, deixando para trás um peso que carregara durante anos. Um peso que pertencia exatamente ao local onde ficava agora. Ao passado.
Lutar pela vida
Fumaça. Fumaça que subia debilmente e dançava no ar frio de uma noite sem estrelas, dissipando-se tão rapidamente quanto tinha surgido quando o cigarro aceso fora tragado pelo homem de jaleco branco e uniforme verde, o mesmo homem que desejava avidamente que as lembranças que passeavam em sua mente desaparecessem tão rapidamente quanto a fumaça que se extinguira momentos antes.
A noite estava fria, gélida, e uma brisa frágil e pausada tocava suas vestes, atravessando-as e enroscando-se em sua pele onde poros brotavam em pequenas protuberâncias em virtude do frio que sentia. De pé, com o jaleco branco balançando levemente ao vento fresco ele observava do alto do prédio a rua vazia que se estendia lá embaixo.
Ao seu redor prédios se amontoavam, a maioria com janelas apagadas, mostrando que àquela hora o mundo ressonava despreocupado enquanto ele trabalhava, levando solitário nos ombros a carga do que vira, do que ouvira, e do que não conseguira fazer. Deu uma nova tragada, sentindo a fumaça morna e reconfortante entrar por seu esôfago e preencher seus pulmões com a nicotina que o acalmava. E como precisava se acalmar naquele momento.
Soprou a fumaça, que voltou a dissipar-se, perdendo-se no vazio da noite escura e sem estrelas, enquanto ele se perdia em seus pensamentos, em suas lembranças. Flashes de imagens surgindo em sua mente, desfilando de forma caótica, lançando-se diante de seus olhos e parecendo ampliar-se à medida em que ele tentava expulsa-las de sua cabeça. Imagens de um homem gritando, sacudindo-se em desespero e pedindo por tudo no mundo para que não o deixassem morrer, para que salvassem sua vida, enquanto um jato de sangue jorrava do buraco onde antes estivera sua perna.
Lembrou-se da tonalidade do sangue, do brilho, da cor forte que contrastava com o branco e o verde estéril da ala de emergência. Aquele mesmo sangue que um dia abastecera um corpo vivo estava agora marcado em sua roupa, transformando seu uniforme verde em algo semelhante a uma tela de arte abstrata. Manchas que se espalhavam também por sua mente, em insistentes borrões que surgiam em suas lembranças.
Em sua mente os olhos do homem ainda o fitavam, vidrados em desespero, em angústia, e em seu rosto uma expressão que pedia, implorava que salvasse uma perna que já não estava mais ali. Uma perna esmagada, destroçada, consumida pela avidez de uma roda do caminhão que atingira a moto onde estava o paciente que agonizava, não lhe dando sequer a possibilidade de assimilar o que tinha acontecido.
Já não havia perna para salvar, mas havia sim uma vida, e tentou de todas as formas faze-lo, tentou de todas as formas estancar o sangue que fugia daquele corpo como uma corrente de água que segue em direção ao mar, tentou e tentou, até que viu os olhos de seu paciente revirarem para dentro das órbitas, até ouvir o sinal frio e insistente da máquina, ecoando de forma uníssona, a indicar que a substância que habitava naquele corpo já não estava mais ali.
Pobre homem, que perdera sangue demais, conforme indicavam seus lábios mudos e cinzentos, seus olhos revirados, sua pele sem cor, trazendo ao médico a recordação de um manequim dentro de uma vitrine em uma tarde escura de inverno.
Um corpo sem alma, vazio, assim como o médico desejava que a caixa de memórias de sua mente ficasse, para que a imagem da expressão angustiada e suplicante do moribundo desaparecessem para sempre.
Na ciranda de lembranças surgia uma nova imagem para perturbar a mente cansada do plantonista. O rosto de uma moça. Uma garota jovem, bonita, mas que carregava na face uma expressão fria e inerte, como uma estátua de alabastro que fita um ponto distante ao mesmo tempo em que parece não fitar nada.
A moça, diferente do homem que perdera o sangue, a perna e a vida não gritava, não mostrava medo ou desespero algum. Estava incólume, como alguém que ressonava em um sono tranquilo. Uma imagem amena, que contrastava apenas com o buraco hediondo que se abria em sua têmpora. O buraco onde a bala disparada por um ex namorado possessivo, ciumento e violento se alojara.
A ela fez o que pôde. A ela deu o que tinha, mas o que tinha parecia não ser o suficiente. Ao menos para traze-la de volta por inteiro. A moça sobrevivera, e ao mesmo tempo perecera. Um pé em cada mundo, ocupando duas dimensões nas quais não entrava por inteiro, presa em um limbo, presa entre o ir e o ficar.
A bala permanecera em sua cabeça, agressiva, estranha, indesejada, porque se tentassem retira-la poderiam retirar também a chance de manter a garota viva. A bala cuja presença a matava, era a mesma bala que se retirada a mataria também. Uma ironia cruel e sádica, que fustigava a mente do médico enquanto ele lembrava e dava mais uma tragada em seu cigarro, soprando para a fora a fumaça ao mesmo tempo em que tentava expulsar as lembranças, as emoções.
Enquanto isso uma nova imagem surgia para assombra-lo. Um homem de uniforme, um homem com armas, um policial que chegara alvejado, crivado de balas, carregado por companheiros desesperados, que berravam para que alguma atitude fosse tomada, para que seu amigo fosse salvo. Na mente do médico a imagem que se destacava era a mão do policial que ainda segurava firmemente a arma usada na troca de tiros, como se a ela estivesse preso o último laço que o mantinha vivo, o último limiar que o segurava naquele mundo onde provavelmente uma família o esperava ansiosamente em casa.
Mas ele não chegaria, nem naquela noite e nem em nenhuma outra. “Balas demais para um corpo aguentar”, pensou o médico consigo, e de fato o homem não aguentara. Mesmo diante dos esforços dele e de sua equipe, mesmo com sua perícia de anos usada enquanto abria o homem para ver o estrago que ficara por dentro. Mesmo com tudo aquilo, a vida uma vez mais partia sem deixar uma despedida, sem deixar uma explicação.
Teve de avisar aos colegas do policial. Teve de ver em seus rostos um sem número de emoções. Incredulidade, raiva, ódio, promessas de vingança e depois apenas expressões desoladas, algumas marcadas por lágrimas que corriam livremente e mostravam em seu trajeto que aquele homem deixara marcas na vida de seus companheiros, marcas fundas o bastante para que sentissem a devastação daquela perda. Além de ver a morte do paciente diante de seus olhos, agora tinha de vê-la nos olhos de quem amava aquele que se fora.
E agora estava ali, sozinho na noite fria, no alto de um prédio, extenuado demais, cansado demais depois de horas de um plantão exaustivo em que a morte era uma visita indesejada, mas constante.
“A morte”, pensou consigo, “A morte e seus mistérios indecifráveis. A morte indiferente, que não tem preferências. A morte fria, impassível e implacável.” Não havia como fugir dela, assim como não havia um modo de segurar entre as mãos a brisa que carregava a fumaça cinzenta de seu cigarro.
Na mente as lembranças, no corpo o cansaço, na mão o cigarro que chegava perto do fim, consumido, esgotado, assim como ele, assim como suas energias. Deu uma última tragada, sentindo novamente a fumaça preenchendo cada espaço em seu peito, tentando manter a calma para o que viria, tentando encontrar energia para enfrentar o resto do plantão que se estendia pela frente.
Pessoas viveriam, pessoas morreriam. Homens, mulheres, crianças. Pacientes se queixariam sem carregarem a mínima noção da exaustão, da fome e do vazio que carregava dentro de si. Uma máquina, era o que queriam que ele fosse. Uma máquina desprovida de sentimentos, de necessidades, que não sofresse, que não sentisse, que não comesse ou mesmo dormisse.
Uma máquina que não visse além de um homem que perdera a perna e a vida, de uma moça que vegetava, e de um policial que deixaria uma esposa sem marido e filhos sem um pai. Uma máquina que não visse além da estatística, e que estivesse ali vinte e quatro horas por dia para cuidar, tratar e curar, enquanto ele mesmo ficava doente a cada dia, adoecendo o corpo, a mente e a alma com o peso que carregava dentro de si.
Olhou para o cigarro, que já não passava de uma bituca, consumido até o limite, e imaginou que estava seguindo aquele mesmo caminho, esgotando-se até não ter mais energia alguma, até apagar-se e esvair-se como a última fumaça que agora soprava no ar. Mas ainda assim iria. Iria porque fora para isso que dera anos de sua vida estudando. Iria porque nascera para ajudar os outros, havendo ou não reconhecimento pela ajuda dada. Iria porque fizera um juramento, do qual não podia fugir, porque o maior cobrador de um homem é sua consciência, que o segue como uma sombra, e que assim como uma sombra o lembra de que há uma luz lhe iluminando. Iria porque, se não fosse, outras pessoas morreriam, outros amigos ficariam desolados, outras esposas ficariam sem maridos e outros filhos ficariam sem pai. Iria porque no mundo existiam milhares de canalhas dispostos a tirar a vida de mulheres indefesas por considera-las como objetos de sua propriedade.
Olhou para o cigarro que jogara no chão, e pisou nele tentando com aquele gesto pisar também nas incertezas e medos que carregava no peito e na mente, então virou-se e seguiu, deixando para trás a noite fria, acompanhada de suas inseguranças, de seu cansaço e das lembranças das mortes que o assolavam. Sim, haveria mortes, assim como haveria vidas, e o sol nasceria como sempre nascia todos os dias.
Assim ele iria continuar, contra o cansaço, contras as críticas, contra a morte e em busca da vida, pois era aquilo que tinha escolhido fazer.
E assim caminhou, firme e resoluto, como um soldado treinado para a guerra caminha em direção à batalha, carregado de medos, mas também de uma coragem que os suplantava e do amor pela vida que o fazia continuar a cada dia, independente do tamanho do desafio, independente da extensão da sombra da morte.
E assim caminhou, deixando para trás a incerteza e levando no peito a vontade que vencia a insegurança. A vontade de lutar pela vida.
Cura
Silêncio ecoando pela casa. Silêncio gritante, alto, reverberante, que se espalhava pelo ambiente e perturbava seus ouvidos ansiosos por algum som, por algum barulho mínimo de algo que não fossem seus passos, sua voz, sua respiração. Dias trancado, vagando pelos cômodos nos poucos momentos em que conseguira ficar acordado, trocando impacientemente canais de tv que passavam filmes que já vira tantas vezes que chegara a decorar os diálogos.
Ouvia músicas, mas elas o lembravam dos lugares que gostava de ir, dos amigos que gostava de visitar, então desligava o som e voltava a cair no silêncio ensurdecedor da solidão que lhe fora imposta. Tentava ler livros, mas mesmo eles não conseguiam prender sua atenção, que já estava atrelada à preocupação causada pelas coisas que vinham acontecendo lá fora. As coisas que tinham saído de controle, para ele, para todos.
Sua última saída, o celular, que usava para manter contato com as pessoas que com ele não podiam manter contato era ao mesmo tempo um alívio e um suplício. Falar com aqueles que não podia encontrar, ver ambientes que não podia visitar, encontrar um mundo que estava a centímetros de distância, mas que por causa de sua condição parecia estar a anos-luz da prisão à qual fora obrigado a encerrar-se era em dados momentos uma forma de acalmar-se, e em outros a causa de sua impaciência, de sua raiva, do desejo crescente de sair de onde estava.
Mas não podia. Não devia, e não podia. Desde que recebera o diagnóstico que confirmava que carregava dentro de si algo que podia ser letal ele soubera que o isolamento não era uma opção, mas sim uma obrigação. “Medidas de urgência” era como as autoridades tinham chamado aquela iniciativa, que o obrigava a permanecer distante e apartado, como um leproso que carregasse um sino preso ao corpo para avisar que estava chegando o portador de uma peste que a todos assustava.
Não condenava a medida, assim como não condenava as pessoas que dele se afastavam e que o olhavam desconfiadas quando ele se atrevia a aventurar-se até a varanda de seu apartamento. Pessoas que ainda não tinham sido acometidas pelo peso que ele levava dentro de si, e que tão logo o viam corriam para dentro de seus lares, fechando as portas, fechando as possibilidades de encontro ou contato, ainda que fosse à distância.
De sua varanda ele olhava as ruas. Antes atulhadas, engarrafadas, caóticas e barulhentas, agora estavam vazias, silenciosas, onde raras almas corajosas se aventuravam a sair. Os que tinham o mesmo problema que ele permaneciam trancados do lado de dentro por uma obrigação imposta por outros. Os que ainda não tinham sido tocados por aquela mazela também se trancavam do lado de dentro por uma obrigação imposta por eles próprios.
Cama, sofá, Tv, som, livro, celular, e sua alma gritava de impaciência, da necessidade de ver, ouvir, tocar, beijar, abraçar alguém, qualquer pessoa, estranha ou não, até mesmo as que elencava em sua lista de desafetos, até mesmo elas seriam motivo de alívio acaso pudesse fazer o que naquele momento era terminantemente proibido.
Olhou novamente para o telefone e sentiu o desejo de pega-lo e ligar para alguém, ao mesmo tempo em que sentiu a necessidade de deixa-lo ali, como uma forma de impedir que seu fardo ficasse mais pesado do que já era. Então repentinamente ele riu, um riso inicialmente discreto, que gradativamente se alargou até abrir-se em uma sonora gargalhada que obliterou o silêncio sufocante que recaía sobre o ambiente.
E riu porque deu-se conta da ironia de toda a situação, não apenas a dele, mas a que recaía sobre todos, infectados ou não, que agora se trancavam em suas casas, lamentando-se da impossibilidade de verem uns aos outros, de falarem olho no olho uns com os outros, de se tocarem e fazerem o que era feito desde que os primeiros humanos que pisaram nesse mundo tinham desenvolvido as primeiras relações sociais.
E a ironia estava justamente naquilo, nas relações sociais. Desde que a quarentena começara ele vira refletido nas notícias, nas publicações em perfis alheios, nos podcasts, nas rádios, nas tvs que um dos principais efeitos da proibição de contato era o medo e a angústia que as pessoas sentiam em ficarem sozinhas, em verem-se impedidas de contatar seus pares, seus familiares, seus amigos, amores, até mesmo os que lhes causavam dissabores.
As pessoas, assim como ele, tinham começado a temer a reclusão, o isolamento, a solidão, mesmo tendo em mãos celulares e computadores onde poderiam acessar redes sociais, sites, filmes, séries e o conteúdo que tivessem vontade de ver. As pessoas agora temiam algo que elas mesmas tinham escolhido antes da explosão da pandemia.
Antes de toda aquela mudança ele mesmo optara pelo estilo de vida que agora repudiava. Passava horas em casa, às vezes finais de semana inteiros grudado na tela de uma televisão, lendo livros, ou correndo os olhos pelas fotos e vidas de pessoas que sequer conhecia bem, e o fazia de livre e espontânea vontade, sentindo um sincero prazer naquilo.
Quando saía, se não fosse para aventurar-se em um prazer pontual com alguém que conhecesse em um desses finais de semana que ficariam perdidos em uma caixa guardada no fundo da memória, ele simplesmente pedia uma bebida e uma vez mais se isolava na tela fria de um celular, mesmo que houvessem outras pessoas na mesa, no balcão. Mesmo que estivesse acompanhado de amigos e familiares, porque afinal, todos eles faziam a mesma coisa.
E agora ele se autopenitenciava por reviver o que já se tornara uma rotina, uma habitualidade, um estilo de vida. “Por que?”, se perguntava. “Por que sentir tanto por algo que dias antes não parecera nada de mais?”. Talvez a resposta estivesse em um ditado que ele crescera ouvindo, mas ao qual nunca dera a devida importância. “Só valorizamos algo quando perdemos esse algo”.
Pensou então nos abraços que perdeu, nos beijos que deixou de dar, nos olhares que recebeu e não reparou, assim como nos que deu e não foram reparados. Toques, contatos, afagos, conversas, tudo deixado para trás junto à sua humanidade em troca de momentos em particular com uma máquina sem sentimentos, sem nada a oferecer além da fechadura de uma porta para espionar a vida alheia quando havia uma vida inteira cheia de oportunidades e sensações a ser vivida por ele.
E ali, parado em meio aos pensamentos que lhe mostravam o que fora sua vida antes, o que era sua vida agora, e o que ela deveria ter sido ele sentiu mais do que nunca o arrependimento pelo que escolhera e a necessidade de optar por algo novo dali em diante, e prometeu a si mesmo que assim que aquele mal, aquela limitação, aquele vírus desaparecesse de sua vida ele eliminaria outro que havia tomado conta de sua existência, e mudaria, deixando para trás a pessoa distante que fora.
Prometeu a si mesmo que assim que a porta fosse aberta ele de fato sairia por ela, desistindo de ficar trancado como optara por fazer um dia, e como era obrigado a fazer agora. Prometeu dar valor ao que tivera e perdera momentaneamente. Prometeu abraçar, beijar, conversar. Prometeu e prometeu. Mas no fundo de sua mente, enquanto fitava as ruas desertas e as lúgubres figuras que vagavam em outras varandas, tão próximas e tão distantes de sua vida, ele se perguntou se de fato cumpriria aquela promessa, ou se cairia novamente na infecção que de fato tinha prejudicado a humanidade, a infecção do distanciamento que a assolara antes mesmo que aquele novo vírus surgisse.
Prometeu, prometeu, prometeu... e perguntou-se, a cada promessa que fez, se conseguiria cumpri-las quando o momento chegasse.
Se quando a porta pudesse ser aberta ele sairia, ou se continuaria do lado de dentro, como tantas vezes fizera.
Se continuaria doente, ou se buscaria curar-se.
E assim permaneceu fitando o mundo deserto, à espera do dia em que se saberia se estaria de fato curado para cumprir aquela promessa. Curado da frieza, curado da distância...
Curado da indiferença.
Maria
Maria abriu os olhos, quando nem mesmo o sol lançara sua primeira réstia de luz na escuridão que abraçava a madrugada. Na penumbra do quarto fez uma careta em virtude da dor que passeava por seu corpo, dor diária, dor constante, que parecia dar-lhe paz apenas nos curtos períodos de sono aos quais tinha direito naquela vida sofrida e atribulada.
Maria ergueu-se na cama dura, de colchão fino, que tremeu sob seu peso e rangeu com seu movimento, rangido que somou-se a seu gemido sinalizando ossos sofridos e músculos cansados. Sentou-se na beirada do leito e apoiou-se nos braços grossos, nas mãos calejadas do trabalho, e por um momento, um breve momento que pareceu passar desapercebido até mesmo para o próprio tempo, ela pensou em deitar-se novamente e voltar à terra dos sonhos, onde os problemas da realidade eram meras nuvens que se dissipavam ao primeiro toque, como vapor que some com o primeiro sopro da brisa.
Maria levantou-se, com o peso dos anos recaindo sobre cada fibra de seu corpo, e arrastou pesadamente os pés cansados, calejados, rachados pelo chão áspero e frio do cômodo de poucos metros que conseguia manter com o parco resultado que recebia com seu trabalho exaustivo. Andou pouco, de tão curto que era o espaço, e parou diante de um pequeno fogão de uma boca só. Uma só boca para alimentar tantas outras que dependiam daquela mulher.
Com os olhos ainda se acostumando à penumbra e ao mundo dos despertos, ela riscou um fósforo e colocou a panela gasta na boca flamejante, que lançava um pálido fogo azulado, tremeluzindo em meio à escuridão. Na panela lançou o pouco de leite que restava, pensando consigo mesma que teria de comprar mais naquele dia, para que não passassem fome os três filhos que ainda ressonavam na cama dura da qual ela acabara de se levantar.
Pela réstia da porta começou a surgir timidamente o primeiro traço pálido da luz matinal que surgia com a alvorada, e ela soube que lá fora o sol também se erguia junto com ela, para fazer sua viagem em torno do mundo até ocultar-se por detrás da linha do horizonte, enquanto Maria faria seu trajeto de sobrevivência, não apenas a dela, mas também a dos filhos que colocara no mundo e mantinha à custa de um sacrifício extenuante.
O cheiro de leite fervendo subiu pelo ar e lhe invadiu as narinas, lembrando ao estômago de que ele fora dormir sem exercer seu ofício, lembrando seu corpo de que não fora alimentado na noite anterior. Maria então avisou à barriga, ao corpo e à própria mente que tivessem paciência. Como comer, se fazendo isso privaria os rebentos daquela mesma comida? Não havia o suficiente, e o que não havia teria de ser o suficiente para ela.
Maria fez o café, preto e ralo, única coisa que colocaria boca adentro naquela manhã. Pôs num prato os três pães dormidos que conseguira comprar na noite anterior e despejou o leite em uma pequena caneca, para que os filhos tomassem assim que acordassem. Voltou para perto da cama e abriu o armário velho, que parecia desmontar-se a cada dia passado. Passos curtos, por causa do tamanho da casa, passos parcos, como tudo o que ela possuía.
Trocou-se em silêncio, para não acordar os filhos. Ainda não era a hora deles, e preferia deixa-los descansar para terem a mente livre durante o aprendizado. Maria exigia dos rebentos a frequência nas aulas, a ida constante à escola, as notas em dia, para que no futuro pudessem evitar a vida que levaram no passado. Educara a todos daquela forma, e exigia em retorno uma resposta à altura da educação que lhes dera.
O mais velho já tinha idade para guiar os demais, para exercer em sua ausência a autoridade que ela mantinha, para ser, enquanto trabalhava, a figura presente na vida dos outros. Maria ressentia-se por não estar por mais tempo ao lado dos filhos, mas entre ficar com eles privando-os de um teto, ainda que gasto, e de uma comida, ainda que parca, e ficar ausente para proporcionar-lhes uma forma de sobreviver e crescer, ela abraçava, sem permitir-se pensar duas vezes, a segunda opção.
Em silêncio saiu de casa, fechando lentamente a porta atrás de si, enquanto boa parte do mundo ainda ressonava, e o sol mal despontava no horizonte. Maria pegou a condução, em meio a várias pessoas que assim como ela viviam a dura rotina exigida para proporcionar o parco sustento que daria à sua família um prato na mesa e um teto sobre suas cabeças.
Em meio aos rangidos do velho ônibus, cujas engrenagens balançavam e reclamavam a cada parada que fazia para que mais pessoas iguais a Maria entrassem, ela pensava em tudo e ao mesmo tempo em nada. Lembrava dos estudos, que tivera de largar quando a primeira barriga cresceu. Rememorava os sonhos que deixara de lado para que os filhos pudessem sonhar. Por sua mente passavam novamente as imagens das surras e abusos que sofria na mão do marido quando esse chegava bêbado em casa, e do lamento misturado ao alívio quando ele morrera em um acidente causado justamente pela bebida. “Ao menos não serviria de mau exemplo aos filhos”, pensava consigo. “Ao menos não faria com eles o que fizera comigo”, eram palavras que ecoavam em sua mente junto às memórias dolorosas dos maus tratos que haviam deixado marcas no corpo e na alma.
Sozinha, sem pais, os irmãos soltos pelo mundo, marido morto, ela tinha de arcar com todo o peso que a vida colocava em seus ombros, mas a despeito de tudo o que sofria, Maria não se queixava. Ganhava pouco, mas ainda assim ganhava. Era pobre, mas tinha um teto sob o qual se abrigar. Não tinha ninguém para lhe ajudar, mas tinha os filhos a quem se dedicava a cada momento, e por isso era guiada pela força, por aquela força única, sem igual, que apenas as mulheres são capazes de ter. A força de uma mãe que ama, e que não pensa duas vezes antes de se sacrificar por seus filhos.
Maria chegou ao primeiro trabalho, o início de outros que faria durante o dia. Entrou na casa que limparia, arrumaria, onde cozinharia e ao final receberia uma pequena quantia pela diária trabalhada. Arrumou, limpou, cozinhou, sob um teto que não era seu, mexendo em móveis que provavelmente nunca teria a oportunidade de comprar, manuseando alimentos os quais muitos deles ela jamais tinha visto.
Pegou o dinheiro, pegou o ônibus, pegou a coragem para mais um trabalho. Limpar, arrumar, cozinhar, eram verbos que acompanhavam Maria a todo momento, como se fossem sua própria sombra. Fazia aquilo em casas que não eram suas para que pudesse ter condições de manter-se com uma casa. Limpou, arrumou, cozinhou, pensando nas contas que teria de pagar, na comida que teria de botar na mesa, nos estudos dos filhos, na violência da comunidade onde morava. Pensando, pensando e pensando. As preocupações de Maria eram como as dores e o cansaço que assolavam seu corpo sofrido. Nunca a deixavam.
Enquanto trabalhava sem descanso Maria rezava. Pedia a DEUS que os filhos não cometessem os mesmos erros que ela. Pedia que voltassem seguros para casa, escapando aos conflitos, às balas que voavam ávidas por um ponto de chegada, onde poderiam repousar despedaçando carne, músculos... vidas. Pediu para que tivessem a mesma força que ela para buscarem seus próprios objetivos, para que fossem alguém que não precisasse sofrer tanto para manter um pouco de dignidade na vida. Para que tivessem um futuro onde não repetiriam o que viviam no passado.
Limpou, arrumou, passou, cozinhou. Hora após hora, com dedos trêmulos, com mãos cansadas, tomadas de calos, tomadas de exaustão. Hora após hora, movida por uma força extra que nem ela sabia explicar, mas que a mantinha de pé, insistente, resiliente, ignorando as queixas constantes do próprio corpo, ignorando os pedidos de parada que ecoavam em sua mente cansada.
Ouviu ordens, orientações, reclamações. “Devagar demais Maria, seja mais rápida”. “Displicente demais Maria, preste mais atenção no trabalho”. Sim, fazia as coisas lentamente, não por preguiça, mas porque era a única forma possível de conseguir terminar o trabalho com o peso da exaustão que carregava no corpo. Sim, a atenção não era suficiente, e a mente vagueava, mas não era fácil manter a cabeça concentrada quando uma fila de preocupações se formava em seus conturbados pensamentos.
E assim Maria acatava, calada, silenciosa, resiliente, mesmo que a vontade fosse de gritar, de berrar para o mundo que já não suportava, que era humana, de carne e osso, que tinha sonhos, que queria viver, que queria amar, que queria aproveitar a beleza que o peso das obrigações ainda não havia tirado dela ainda, que queria sentar e tomar uma cerveja gelada sem preocupar-se se os filhos se tornariam bandidos, ou se tomariam no peito uma bala sem rumo em busca de uma direção, de um lugar de repouso, sem consumir-se na apreensão de não ter comida na mesa no dia seguinte, ou de ser despejada por falta de aluguel.
Maria queria gritar, urrar, bradar e desabafar para as patroas, para o motorista dos ônibus que pegava na ida e na volta para seu casebre, para o marido que morrera deixando-a com três filhos no mundo para criar sozinha, para os pais que não exigiram dela o mesmo que ela exigia de seus rebentos. Maria queria, queria e queria, mas não podia.
E assim, calada se mantinha, silenciosa permanecia, ouvindo, acatando, segurando à muita custa a torrente de emoções que queria despejar sobre o mundo, porque devia, porque precisava, porque se desabafasse não teria como levar o sustento para casa, porque se aquilo fizesse, sequer teria uma casa para deixar de levar o sustento.
Engolindo as palavras Maria encerrou o serviço, guardou os pertences e parou diante do espelho para alimentar o restante de vaidade que tinha. Viu que ainda era bonita, viu que ainda era jovem, viu que ainda tinha desejo, vontade, paixão. Mas tudo aquilo se perdia assim que as preocupações retornavam à sua mente, naquela ciranda perturbadora que a impedia de sonhar, de imaginar, de desejar. Viver para o trabalho, e trabalhar para viver. Para que outros pudessem viver.
Maria pegou suas coisas, pegou sua condução, pegou seu caminho, pegou seu cansaço. Chegou em casa muito depois que o dia chegara ao seu fim, mas seu trabalho ainda não terminara. Subiu a ladeira do morro onde morava, rezando novamente, pedindo a DEUS para chegar em casa e ali ver os filhos, rezando para que nada do que temia pudesse ter acontecido. Aquele era mais um peso que carregava sobre os ombros, o peso do medo.
Parou diante da pequena casa onde vivia, vendo de fora as luzes acesas através das janelas basculantes fechadas em alguns pontos por papelões que tapavam o espaço deixado por vidros quebrados. Entrou, vendo lá dentro as crianças que deixara dormindo, ainda brincando, e assim tirou dos ombros o peso ao menos daquela preocupação. Ali começaria o último serviço do dia.
Trabalhara em inúmeras casas durante o dia, e agora que chegara à sua, ao invés do descanso, tinha mais trabalho a fazer. Preparou o jantar, parco, mirrado, mas que ainda assim era um jantar. “O pouco é melhor do que o nada”, dizia a si mesma assim que pensava em desanimar. “O pouco é melhor do que o nada”.
As crianças dormiram enquanto Maria terminava o restante dos afazeres. Então apagou as luzes, tomou um banho e arrastou os pés cansados e o corpo exausto até a cama. Sentou-se pesadamente, sentindo cada fibra reclamar pelo esforço feito, e rezou agradecendo por mais um dia. Pela comida que pusera na mesa, pelo teto sobre sua cabeça, e pelos filhos, que vivos ressonavam ao seu lado.
Maria deitou, sentindo o corpo latejar de dor e cansaço, e antes que se desse conta fechou os olhos e sua consciência desvaneceu em um pesado sono que não seria o suficiente para curar seu cansaço. Mas ao menos ali ela teria tempo, ela teria a mente livre para sonhar, para passear livremente por um faz de conta que sumia um pouco a cada dia diante, ofuscado pelas preocupações e obrigações impostas pela vida.
E Maria dormiu, sem saber que no mundo milhões de Marias faziam o mesmo, sofriam o mesmo, e sonhavam o mesmo sonho, o de um dia serem felizes, o de um dia amarem e serem amadas, o de um dia terem o que mereciam, deixando de carregar o mundo nas costas, para serem carregadas mundo afora.
Dorme Maria, e descansa sonhando com dias melhores.
O bicho humano
- Ahhh, que dia maravilhoso. Que céu lindo, que sol brilhante e cheio de esplendor, e que brisa agradável. Fazia tempo que não via um dia tão belo como esse. Se pudesse ficaria estendida aqui, cantando e aproveitando toda essa tranquilidade.
- Pelo que conheço de você, sua preguiçosa inveterada, vai mesmo ficar o dia inteiro estendida aí, cantando suas canções inúteis e irritantes.
A cigarra virou-se e lançou à formiga um olhar de deboche cheio de preguiça, que denotava que não tinha a mínima intenção de aturar as reclamações da companheira.
- Nem nas suas folgas você para de reclamar criatura. Por que não aproveita que não está carregando aquele peso todo e relaxa? Veja, olhe como o lago está lindo e a água refrescante. Vá nadar um pouco e deixe de ser tão irritante.
- Irritante é essa sua voz estridente, que machuca os ouvidos e o juízo de quem tem o desprazer de passar ao menos alguns minutos escutando essa algazarra que parece não ter fim. E quanto a você, meu consolo é que ao menos parece ter aprendido com o que passou no último inverno, e esse ano conseguiu, ainda que à guisa de muito esforço, juntar alguns mantimentos para o período de necessidade.
- Céus, terras e ventos! – Exclamou a cigarra. – Se há algo maior em você que a vontade de trabalhar, é a vontade de reclamar e passar sermões. E dobre a língua para falar de minha cantoria. Minha voz é uma das mais belas da natureza, e ecoa pela floresta acariciando os ouvidos de todos. Além disso, não ouço ninguém reclamando dela além de você.
- Não houve porque é surda para as criticas, assim como era no último outono, quando fechou os ouvidos para os meus conselhos e quase morreu quando o inverno chegou. Sinceramente cigarra, você parece ser tão teimosa quanto os humanos.
- Ei! – A voz da cigarra ecoou estridente pelo ar. – Não me compare àqueles infelizes. Se quer me ofender faça isso de outra forma, mas me comparar àquela gente prepotente e burra já é demais. Tenho cá meus defeitos, mas não é para tanto.
A revolta da cigarra foi sincera, e por um momento a formiga pensou que ela sairia voando dali, abandonando até mesmo a beleza que se estendia pela natureza naquele dia que de fato estava glorioso.
- Sinto muito. Não quis ofender. Realmente exagerei, minha amiga, e por isso peço minhas sinceras desculpas.
A cigarra mexeu as antenas e sacudiu as asas, olhando de soslaio com seus olhos multifacetados para a formiga, que parecia ter sido sincera em seu pedido de desculpas.
- Hum. – Grunhiu, com uma voz que ainda parecia irritante para a formiga. – Que bom que admitiu seu erro. Desculpas aceitas.
- Nós, formigas, além de trabalhadoras somos também humildes. Nunca deixamos de reconhecer um erro. Ainda mais um como esse. De fato, nenhum animal deveria ser comparado com os humanos. Essa é realmente a pior espécie que já pisou nesse mundo. Mundo, aliás, que eles não querem compartilhar com ninguém, apesar da imensidão que ele tem.
- A isso eu canto, amiga formiga.
- Por favor, não, amiga cigarra. – Retorquiu a formiga quando a outra já se preparava para dar início à sua algazarra.
No momento em que a cigarra já pensava em uma resposta à altura para dar, ao mesmo tempo em que se gabaria de sua voz e de seu talento para cantar, as amigas ouviram ao longe alguns grunhidos, acompanhados de um curioso som, um barulho de algo que estalava no ar e que mesclava-se com um rangido agudo e irritante. Quando se viraram para a pequena estrada de terra que havia nas proximidades do lago vislumbraram uma cena que as deixou boquiabertas. À distância, um velho cavalo andava sofregamente, com a cabeça baixa e os olhos vidrados, como se fosse cair no próximo passo que desse ou no fôlego seguinte que tentaria extrair de seus cansados pulmões.
O couro do animal era grosso e grudava-se nos ossos, fazendo com que suas costelas ficassem quase que inteiramente visíveis. O pelo estava desgrenhado, a crina parecia uma lixa, e a pele estava marcada com as feridas causadas pelo chicote que estalava no ar, fustigando impiedosamente o lombo do pobre animal, chicote este que era brandido por outro animal, mas que não gostava de forma alguma de classificar-se como tal. O homem.
Sentado no batente da carroça que rangia produzindo um irritante barulho que se espalhava pela mata, o homem estalava o chicote sobre o lombo do pangaré, enquanto grunhia ordens para que o pobre animal caminhasse mais depressa. Atrás de si levava uma pesada carga de grãos, a qual entregaria no armazém da cidade que ficava a quilômetros de distância daquele lugar, e queria chegar antes que o comércio fechasse, motivo pelo qual castigava o couro do cavalo gasto e sofrido, achando pouco que o mesmo levasse o peso da carga, da carroça, e do próprio homem, que ia sossegado sem fazer esforço algum, com um velho cigarro de palha na boca e uma expressão irritada no olhar, denotando a insatisfação que sentia com o que considerava ser uma demora interminável do animal.
- Vê o que digo? – Observou a cigarra, indignada enquanto se voltava para a formiga. - - É ou não é um bicho detestável, esse tal de ser humano?
- Concordo com toda a força que carrego. – Disse a formiga. – E você sabe que nós formigas somos bem fortes.
- Não se gabe, minha comadre. Isso não é do feitio da sua espécie. Combina mais com o comportamento daquele animal estúpido que ali vai.
- Digo o mesmo para você, que se gaba de sua cantoria. E o que é pior, se gaba achando que canta bem, assim como os homens se gabam do que acham que são, quando na verdade não são.
- Me comparando a eles de novo, minha amiga? O que quer afinal, pôr fim à nossa amizade. – Uma vez mais a voz indignada da cigarra se espalhou pelo ambiente, irritando as antenas da formiga.
- Tudo bem, tudo bem, me desculpe. Agi errado novamente.
- Desculpas aceitas. Mas não volte a fazer isso.
- Não voltarei. Você sabe que nós, formigas, além de humildes e trabalhadoras, também somos uma espécie que mantém a palavra.
- Tá, tá. – Disse a cigarra, impaciente, gesticulando para a formiga com uma de suas patas articuladas, como para pôr fim àquela discussão.
Enquanto observavam o pobre cavalo a arrastar-se sob as pancadas do chicote brandido pelo homem, a cigarra e a formiga não perceberam a onça que se aproximava para beber um pouco de água na lagoa.
- Mas o que é isso que vejo? – A voz da onça soou forte e profunda, acompanhada de um grunhido que assustou as duas amigas. – Uma formiga que não está trabalhando, e uma cigarra que não está cantando? Se as coisas continuarem assim logo mais me tornarei vegana.
- Deixe de coisa, amiga onça. Quer me matar de susto? Se eu tivesse pelos estariam todos arrepiados agora. – Disse a formiga, ainda trêmula.
- Não tenha medo minha cara. Sabe que não como formigas, então pode ficar tranquila. – Mas logo emendou, fitando a cigarra com seus olhos verdes e frios enquanto dizia de forma ameaçadora. – Mas posso abrir uma exceção para a dona cigarra, caso ela comece com uma de suas canções irritantes.
- Viu? – Disse a formiga, enquanto lançava à cigarra um olhar de vitória. – A crítica não parte só de mim.
- Ora, cale-se. – Retorquiu a cigarra, com irritação. – O problema de vocês é que não têm personalidade alguma. Além do mais, é sabido por todos que os críticos são artistas frustrados, que não deram para a coisa e destilam sua raiva em palavras que buscam menosprezar o talento dos verdadeiros astros.
A formiga limitou-se a sorrir, enquanto a onça parecia não ter ouvido a provocação da cigarra, deitando-se e lambendo uma das patas para esfrega-la na cabeça depois, com uma expressão que denotava nítida preguiça.
- Do que falavam amiguinhas?
- Trivialidades. – Respondeu a cigarra.
- Falávamos sobre os humanos. – Complementou a formiga.
- E o que é o homem, senão uma espécie rasa e trivial? – Provocou a cigarra.
- Concordo. – Disseram ao mesmo tempo a onça e a formiga, como se tivessem ensaiado uma tarde inteira aquela combinação. – E há algo que vale a pena ser dito sobre eles?
- O de sempre. – Respondeu a cigarra. – São arrogantes, cheios de si, e se acham donos de tudo em que podem bater os olhos.
- Esqueceu de falar da violência deles. – Disse a onça, depois de abrir uma bocarra enorme para espreguiçar-se. – Vez por outra eu tenho que me aboletar na mata para fugir daquele cano barulhento que cospe fogo e que eles carregam para cima e para baixo.
A cigarra ainda cogitou soltar uma pilhéria sobre o comentário, para destacar que se um bicho violento como a onça estava dizendo aquilo era porque o homem de fato era uma espécie agressiva, mas ao dar-se conta do que iria falar achou melhor permanecer calada. “As onças são muito temperamentais”, pensou consigo mesma, “e posso até não fazer parte de seu cardápio, mas sou pequena o bastante para deixar de existir com uma simples patada dela”.
- Isso é verdade. – Prosseguiu a formiga. – São violentos demais. Agressivos. E sentem uma vontade de destruir que nunca vi igual. Dia desses uma parente minha disse que metade da comunidade dela perdeu a moradia, e que a outra metade morreu quando um desses ignorantes pisou propositadamente no formigueiro onde moravam, e ainda voltou para arrastar os pés em cima até não sobrar nada daquilo que demoraram tanto para construir. Não entendo porque gostam tanto de destruir nossas moradias. Que mal as formigas fazem a eles?
- Não é apenas com as formigas que eles fazem isso. – Continuou a cigarra. – Fazem até com eles mesmos. Uma prima distante me “cantou” certa vez que morava em um lugar onde os homens atacavam uns aos outros com uma ferocidade que nunca tinha visto. E olhe que no lugar onde ela vivia existiam tigres e leões.
- Não faça julgamentos precipitados sua gasguita. – A onça levantou-se um pouco ofendida e deu alguns passos que deixaram a cigarra assustada, mas ao final ela apenas estava se dirigindo ao lago para beber um pouco mais de água. – Nós felinos podemos ser temperamentais, e até mesmo agressivos na caça, mas se matamos e comemos algum animal o fazemos apenas para matar a fome. Foi assim que a natureza nos ensinou. Então, não nos compare aos humanos. Não somos violentos como eles.
- Sua vez de desculpar-se amiga cigarra. – Disse a formiga, lembrando do quão ofendida a companheira ficara com a comparação que fizera momentos antes.
- Minhas apologias dona onça. – Respondeu a cigarra. – De onde venho existe uma canção específica que usamos para pedir desculpas. Se quiser posso cantá-la.
- O pedido é suficiente. – Disse a onça, lançando à cigarra um olhar de repreensão, como se dissesse que não estava com paciência para ouvir sua algazarra musical, o que foi de imediato entendido por ela.
Repentinamente as três foram atraídas por um ruído que partiu de um local que a princípio não conseguiram identificar. “Shhhhhh”, era o barulho que vinha de algum lugar nas proximidades, e a onça aguçou seus ouvidos à procura da fonte, enquanto cigarra e formiga estendiam sua antenas para tentar fazer o mesmo.
- Shhhhh! – Veio o som novamente, seguido de uma voz impaciente que saiu do interior de uma imensa árvore que havia ali perto. – Shhhhhhh! Calem-se! Não veem que estou tentando dormir?
A onça aguçou a visão e conseguiu identificar no buraco que havia no tronco daquela árvore, dois imensos e observadores olhos amarelos, fitando-a ainda sonolentos do lugar onde estavam, e soube imediatamente de quem se tratava.
- Nobre coruja. Saúdo a vossa sapiência, e peço desculpas pela nossa indelicadeza. Não sabíamos que essa era sua residência, e se soubéssemos teríamos tido a decência de falar mais baixo. Ao menos eu e a formiga, porque com essa outra aí, silêncio e discrição são impossíveis.
A cigarra lançou à onça um olhar atrevido, e empinou a cabeça e o traseiro em sinal de desdém enquanto virava-se em direção à coruja.
- Perdão minha amiga. Não queríamos acorda-la enquanto debatíamos.
- E sobre o que debatiam? – Conhecida por sua sabedoria e vontade de aprender a coruja saltou repentinamente para mais perto da saída do buraco onde estava escondida, tomando cuidado o suficiente para não machucar os olhos com a claridade da luz do sol. – Amo um bom debate, e se me permitirem, posso participar.
- Pensei que quisesse dormir. – Comentou a formiga.
- O aprendizado nunca cansa. – Retorquiu a coruja, levantando uma asa no que poderia ser identificado como um dedo indicador em riste, se dedo indicador ela tivesse. – O aprendizado, amiga formiga, é uma forma de descansar a mente e o espírito.
- Para mim a melhor forma de descansar a mente e o espírito é esticar o corpo e relaxar em dia como esse, à beira do lago. – Grasnou a cigarra, fazendo com que a coruja revirasse os longos e incisivos olhos amarelos.
- Sobre o que debatiam, se me permitem a pergunta?
- Sobre a imprestabilidade do homem. Sobre como é agressivo, prepotente e cheio de si. E acrescento mais um ponto, é uma espécie extremamente mal educada, não respeitando o espaço de ninguém e invadindo ou destruindo nossas casas sem sequer pedir licença. – A formiga ia ficando cada vez mais indignada conforme falava.
A coruja deu mais alguns pulinhos para fora do tronco, com os olhos já se acostumando à luz do sol, mas ainda assim preferiu ficar em um lugar coberto por uma propícia sombra. Levou então uma das asas ao bico curto e adunco, e pôs-se na já conhecia posição de quem pondera sobre algo. Enquanto o fazia era observada pelos demais, que tinham plena consciência da sabedoria daquele animal de traços curiosos, e que esperavam ansiosos pelo resultado do raciocínio que dali viria.
- Não vamos generalizar minhas amigas. – Começou ela, depois de pensar silenciosamente por alguns momentos. – Não podemos colocar em uma única toca todos os humanos.
- Como não? – A onça parecia indignada. – E você por acaso já conheceu algum que não haja da forma como falamos?
- Para falar a verdade, já. Em minhas andanças noturnas que faço para ponderar, observar a natureza e filosofar um pouco...
- Não esqueça do “comer”. – Interrompeu a cigarra. – Conheço alguns ratos e camundongos que têm verdadeiro pavor de sair no horário em que a senhora faz suas andanças, aliás, “voanças”.
- Esse termo não existe. E sim, cara cigarra, sim, eu também caço, afinal, preciso comer, e ratos e camundongos estão na minha cadeia alimentar. Foi a natureza quem assim me ensinou. Mas voltando ao assunto de que tratávamos antes de sua interrupção inoportuna, confirmo que já vi não apenas um, mas vários humanos que agem de forma diferente da que estão falando.
- Por exemplo? – A formiga parecia interessada.
- Antes de chegar por essas paragens há algumas estações atrás, eu viajei bastante, voando de árvore em árvore em busca de um lugar tranquilo onde pudesse viver em paz, longe também da interferência dos humanos, aos quais eu dava o mesmo crédito que vocês dão agora. Em uma dessas batidas de asas acabei me deparando, para minha falta de sorte, com um enorme gavião, que ao ver-me com aqueles olhos tão aguçados quanto os da minha amiga onça, investiu com voracidade para cima de mim. Não o culpo, afinal, assim como nós ele precisa se alimentar, foi assim que a natureza o ensinou. Pois bem, com a rapidez e perícia habitual dos gaviões, meu predador investiu contra mim, e acabei com uma asa meio dilacerada, na qual ainda tenho a cicatriz para comprovar o que digo, e a outra quebrada, ficando impossibilitada de voar. Caí então em uma frondosa moita nas proximidades, e essa foi minha sorte, porque o meu algoz não conseguiu me ver em meio a todo aquele mato, e acabou alçando voo para longe de mim.
“Mas o estrago já estava feito, e o que é um pássaro que não pode voar senão um animal indefeso, incapaz de caçar ou de deslocar-se a longas distâncias? Ainda tentei capturar alguns roedores dando alguns saltos vez ou outra, mas a dor da asa quebrada era insuportável, e acabei me recostando em uma árvore e fiquei à espera da última luz que meus olhos veriam. E qual não foi minha surpresa quando acabei sendo encontrada por um casal da espécie humana, que carregava estranhos recipientes com alças pendurados às costas. Ao ver-me naquele estado deplorável eles tentaram me ajudar, e ciente da fama dos humanos, tendo em vista que partilhava da mesma opinião que vocês, acabei dando algumas bicadas neles para me proteger.”
- Bem feito! – Interrompeu uma vez mais a cigarra.
- Amiga cigarra, se puder me deixar concluir a história, sem mais interrupções, eu agradecerei muito. Voltando ao assunto, como já havia dito, acabei dando algumas bicadas nos humanos, e fiquei à espera da morte imediata em retaliação pelo que eu tinha feito. Mas qual não foi minha surpresa quando um deles me pegou delicadamente com a mão, a mesma mão que eu tinha ferido, e de forma semelhante ao que minha saudosa mãe fazia quando eu era apenas uma corujinha, passou a me acalentar, falando algo naquela estranha língua deles que não entendo, mas ainda assim o que dizia parecia suave e reconfortante, e por não ter mais condições de reagir esperei para ver o que acontecia.
“Os humanos então enrolaram minha asa quebrada e fizeram uma espécie de ninho para mim, com alguns panos que carregavam, e quando o sol já havia descido mais um pouco no céu, me vi diante de uma estranha casa, como essas que esta espécie tem o costume de fazer. Um grande bloco de pedra cercado por buracos por onde as pessoas entravam e saíam. Quando entramos ali, vi que havia alguns animais, pássaros principalmente, e a maioria deles em gaiolas. Pensei que me tornaria uma cativa ali, e uma vez mais julguei mal aquela espécie.”
“Fui levada então para uma grande sala clara, e ali eles passaram uma coisa gosmenta em uma de minhas asas, que no começo ardeu, mas depois me causou uma sensação de alívio. Quanto à minha outra asa, eles fizeram um estranho engenho nela, deixando-a imobilizada por alguns dias, até que quando retiraram o objeto ela estava quase como nova, um pouco fraca, mas quase como nova, e com o tempo, em um amplo espaço que em muito lembrava nossa mata aberta, eles me ajudaram a recuperar o vigor e a capacidade de voo. Quando estava boa, pensei ainda que ali ficaria cativa pelo resto de meus dias, mas a vida me mostrou que uma vez mais eu tinha julgado mal a humanidade, e para meu espanto eles me levaram para fora e me soltaram. Claro que grudaram essa coisa estranha que tenho aqui comigo. - E mostrou o que seria um chip de localização. – Às vezes incomoda, mas não chega a doer, e para falar a verdade acho até bonito. E hoje estou aqui para contar a história de como conheci humanos completamente diferentes da descrição que vocês estão dando agora.
- Você quer mesmo que acreditemos nessa história? – Perguntou a cigarra em tom de deboche, depois de as três interlocutoras se entreolharem incrédulas quando a coruja concluiu sua narrativa. – Acha realmente que vamos crer em toda essa lorota?
- Não espero que creiam e nem que descreiam dona cigarra. O que esperava eu já consegui, que ouvissem minha história. Acreditar nela ou não fica a critério de vocês. Apenas asseguro que não tenho motivo algum para mentir, e nem sou afeita a elaborar ficções. Sabem muito bem que as corujas gostam da boa e velha lógica.
- E que lógica você aplicaria aos humanos, acaso seja de fato verdadeiro o que acabou de nos contar? – A formiga era a única das três ouvintes que parecia inclinada a crer no que a coruja dissera.
- Verdadeiro é, e quanto à lógica que eu aplicaria aos humanos, diria que seria a total ausência dela.
- Não entendi.
- Tomemos como exemplos nós mesmas, e todas as outras espécies de animais que existem embaixo desse sol. Nossa lógica é a de que seguimos nossos instintos. A onça, por exemplo, ela mata porque tem de comer, caça para sobreviver. Claro que deve gostar do sabor da carne de suas presas, mas o fato é que só faz o que faz porque segue um instinto que existe desde o tempo de seus ancestrais, até perder de vista. Por isso ela pode ser considerada cruel?
- Não. – Responderam cigarra e formiga, enquanto que a onça se ocupava uma vez mais de lamber a própria pata e passa-la em sua grande cabeça salpicada de pintas.
- E vocês me consideram cruel ou violenta por comer roedores e outros bichinhos menores?
- Não responderam as duas, seguidas da onça, que voltou a prestar atenção na discussão.
- De fato. – Prosseguiu a coruja. – Não acordei um dia e decidi que iria matar roedores e comê-los posteriormente, eu simplesmente nasci assim, sem possibilidade de escolha.
- E o que tudo isso tem a ver com os humanos e a lógica aplicada a eles?
- Tem a ver que no meu caso a lógica indica que ajo por instinto, já os humanos, eles têm a possibilidade de escolher, e muitas vezes essas escolhas não são feitas com base no instinto deles, e sim levando em conta vários outros elementos.
- Por exemplo? – Perguntou a formiga, a única que estava conseguindo acompanhar de perto o raciocínio da coruja.
- A forma como são criados é um desses exemplos. Os humanos não nascem ruins, com o desejo de matar ou destruir tudo ao redor deles. O meio em que eles cresceram e foram educados, ou adestrados, se preferirem o termo, influenciam no modo como eles agem. Existem comunidades de humanos que vivem e crescem amando a si mesmos e à natureza, e essas pessoas acabam tratando bem a fauna e a flora, e respeitam uns aos outros. No entanto, existem lugares em que o bicho humano é tratado mal, de forma violenta e agressiva, e acabam agindo dessa mesma forma, desde pequenos até quando alcançam a idade adulta.
- Mas isso é uma forma de lógica. – Retorquiu a formiga. – Se eles são criados em um ambiente leve, se tornam pessoas leves, mas se são criados em um ambiente hostil, eles se tornam hostis. Isso é a forma mais pura de lógica amiga coruja.
- Aí é que está. – A coruja levantou o que seria o equivalente a um dedo humano para explicar seu ponto de vista. – Eu falei que vários outros elementos influenciam nisso, e alguns são desconhecidos. Por exemplo, existem pessoas criadas em um ambiente feliz que se tornam hostis, assim como existem pessoas que são criadas em um ambiente hostil e se tornam bons humanos.
- Assim você nos confunde. – Disse a cigarra, coçando uma antena enquanto tentava entender o que a coruja dissera.
- Esse é o efeito da falta de lógica. – Prosseguiu a coruja. – Ela nos confunde. E por isso não podemos julgar os humanos, porque a mente deles é tão complexa que nem eles mesmos entendem o que a permeia. Os humanos sofrem com isso, porque têm de optar, por serem bons ou serem ruins, por não seguirem um instinto, ou uma lógica aplicada à sua espécie. Imaginem vocês, se tivessem que matar um bicho que amam para salvar outro bicho que amam. Ou então imaginem se tivessem que optar por uma coisa boa ou ruim para conseguir sair de uma situação. Agora pensem na tortura que seria se agissem de forma má por toda uma vida, e de repente fossem acometidas por um remorso por tudo o que fizeram. Imaginem a sensação destruidora e aflitiva de culpa tomando vocês. Ou a confusão de sentimentos que poderia leva-las a agir das formas mais diversas.
- Isso seria bem complicado. – Respondeu a onça.
- A mais pura verdade. Agora pensem comigo no homem que passou agora há pouco fustigando o pobre pangaré. Ainda estava sonolenta, mas reparei quando ele passou. Me parece que vocês o condenaram pela forma como agiu, e realmente foi uma forma nada nobre. Mas já pararam para pensar nas escolhas diárias dele? Tanto pode ser verdade o fato de ele ser alguém sádico que age apenas para maltratar aquele cavalinho, como pode ser verdadeiro o fato de que precisa chegar rapidamente à cidade para entregar o que produziu, e assim conseguir o sustento necessário para manter sua família. E se a segunda opção for verdadeira, podem levar em conta todas as sensações que ele experimentaria acaso viesse a fracassar?
- Mas os bichos também sofrem pelos entes que amam. – Disse a onça.
- Sim, sofrem, mas não perdoados acaso falhem. Não julgados por outras espécies e nem definidos como incapazes. Eles simplesmente seguem a vida. Os felinos, por exemplo, e não me julgue mal amiga onça, mas os felinos muitas vezes abandonam suas crias para seguir a alcateia, e apesar de sofrerem, fazem isso por instinto e seguem normalmente suas vidas. Mas já ouvi falar de casos de humanos que tiraram as próprias vidas porque não suportaram a dor de uma perda como essa.
- Tirar a própria vida? – Retrucou a onça. – Quem em sã consciência faria isso?
- Uma espécie cuja consciência não baseia-se apenas em instinto. – Respondeu a coruja. - Percebem como sofre o bicho homem com todos os elementos que volteiam sua mente?
- E é por isso que não devemos fazer um julgamento único de todos eles, como nos disse agora há pouco. – A formiga entendera tudo o que a coruja dissera.
- Exatamente. Os humanos não seguem uma lógica, ou um instinto. Podem agir conforme a música, assim como podem dançar de uma forma inteiramente diferente, e têm de conviver com as decisões tomadas e com seus resultados, e muitas vezes sofrem demais por isso. Esse é o motivo que nos mostra que não devemos generalizar.
- Eu ouvi, ouvi e ouvi, e acabei não entendendo nada de toda essa confusão que você falou. – Disse a cigarra.
- Ainda assim foi melhor do que ouvir você cantando. – Retorquiu a onça. – Mas realmente espero um dia entender o que disse amiga coruja, assim como espero entender o bicho humano.
- Se conseguir será uma verdadeira sumidade. – Explicou a coruja. – Porque nem a própria espécie humana consegue entender a si mesma. Talvez seja esse seu maior problema. A confusão que sentem sobre quem são e sobre o que devem fazer deve ser a maior razão de seu sofrimento.
- Pois para mim o sofrimento é o trabalho. – Gracejou a cigarra.
- E para mim é ouvir você cantando. – Provocou a formiga.
- E para mim é sentir a barriga roncando. – Completou a onça. – Já está quase na hora do almoço e não comi nada ainda. Vou dar uma volta por aí. Toda essa história me deixou faminta. – Assim, ergueu lentamente o corpo pintado, com a graça preguiçosa dos felinos, como se não houvesse preocupação em sua vida e seguiu, deixando as companheiras de conversa para trás, como se elas nunca tivessem estado ali.
“Eis a vantagem dos seres irracionais”, pensou consigo a coruja. “Vivem pelo instinto, para sobreviver às hostilidades do mundo, deixando para trás culpas, remorsos e confusões sentimentais. Ah, como sofre o bicho humano, vivendo em uma racionalidade tão irracional. Como sofre o bicho humano, com toda essa mescla sentimental, e ao sofrer, faz com que todas as outras espécies também sofram. Como sofre, o bicho humano.”
O Carnaval de João
O sol estava a pino, resplandecente num céu de azul brilhante e sem nuvens. Cintilava fortemente no alto, revelando sua imponência e despejando seu calor naqueles que estavam sob sua luz dourada e fulgurante. Abaixo, o mundo vibrava em pulsações marcadas pelos tambores e pelos pés que atingiam o chão de forma desordenada, porém feliz.
Milhares de pés, que suportavam o peso de seus donos enquanto estes, tomados pelo torpor da animação dançavam, pulavam e dividiam lugares e desafiando as leis da física. Dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar no espaço. Mas milhares podiam, e o faziam. Naquelas curtas ruas, naquelas ladeiras de pedras seculares, cercadas por casas antigas e repletas de história, aqueles milhares se acumulavam, e em esfuziante êxtase fervilhavam.
A música, levada pelas vozes e pelas batidas dos corações de todos aqueles animados sonhadores ecoava aos quatro ventos, espalhando-se feliz por onde quer que houvesse espaço para ela passar. E havia espaço sobrando na emoção, no coração e na alegria daquele pelotão de foliões que saracoteavam como se o mundo fosse acabar não no dia vindouro, mas em parcos segundos que passariam com a velocidade do pensamento.
E João estava entre eles. João, com seu sorriso alegre de dentes ausentes, com sua tez marcada pelas linhas sulcadas nas preocupações de seus dias, com seu corpo magro, gasto e cansado do labor excessivo que era sua vida. João, com sua fantasia improvisada, de trapos coloridos e exagerados que o enfeitavam naquele baile como se realeza fosse. E como realeza ele se sentia.
Ali, naquela multidão de plebeus, João era o rei de sua corte, mas também era bobo de todos eles. Ali, naquele baile abaixo do sol e do céu brilhante e azul todos eram convidados, todos eram da plebe e todos eram realeza. Ali todos eram João. João rei, João bobo, João povo.
Naquele emaranhado de corações batendo em uníssono, de vozes cantando coros diversos que se afinavam em sua dissonância, de corpos suados que se encontravam e se abraçavam, e dançavam e pulavam ao som de tambores, metais e chocalhos, ali, João era um com os demais.
Seus dias eram duros, cansados, de lamúrias e parcos ganhos. Sofria, suava, marcava a pele sob o calor do sol escaldante para ter o pouco o que levar para o pequeno barraco e para a grande família. Durante o ano, dia a dia, subia e descia aquelas ladeiras, indo e voltando do trabalho, e a cada ano elas pareciam ficar maiores e mais difíceis, mais cansativas, mais desafiadoras. Mas naquela época, naquele dia especial, elas eram amigas, velhas e alegres companheiras.
Naquele dia elas ficavam fáceis. Diria João que eram até prazerosas. Tomadas por uma maré de gente que as inundavas em ondas humanas, aquelas ladeiras pulsavam, estremeciam, ressoavam o rufar dos tambores enquanto os milhares de pés daquela tsunami de corações vibrantes as tomavam, fazendo-as desaparecer sob milhares de fantasias que enfeitavam a realeza de bobos alegres e felizes.
E João sorria, mostrando seus poucos dentes gastos e as muitas rugas na pele marcada. E pulava, com seu corpo magro, mirrado, tomado pelos trapos de pano colorido que lhe vestiam com uma fantasia de felicidade. E João bebia, sorvia a cachaça, a cerveja e o que houvesse à frente naquela alegria foliã. E olhava as moças e senhoras bonitas, de rostos pintados cada uma à sua maneira. E via os moços felizes que sorriam e cantavam, pulando com copos nas mãos e hinos nas bocas.
E achava todos lindos, eles e elas, porque como havia de aplicar padrões de beleza quando a boniteza ali estava na felicidade estampada nas faces de todos? E João era lindo também, era lindo com eles, porque estava feliz.
Levado pela onda de gente, ouvia à frente um maracatu de tambores que lhe invadia os ouvidos, o corpo e a alma. Um pouco mais atrás, lhe chegava um frevo a mil que lhe fervilhava o sangue e o punha em aceleração vertiginosa, e os pés já não lhe pertenciam, mas tinham vida própria, eram senhores de si, como aquela onda de gente, aquele organismo pulsante que chamavam de carnaval.
Na marcha constante daquele exército de foliões os pés seguiam descalços, porque as velhas sandálias cediam naquela dança sem fim. E agora eram um só, João e as ladeiras, seus pés calejados sentindo as pedras seculares que reverberavam naquele tropel de alegria. No dia seguinte os pés doeriam. Mas de que importava? Os pés doíam sempre, e ali ao menos a dor era vencida pela alegria esfuziante que sentia com o frevo, com o maracatu, com as marchinhas. “Danem-se os novos calos”, pensava João, “ao menos estes trarão boas lembranças”.
E as lembranças eram boas. De sorrisos, de gritos felizes, de pulos, saltos, passos e coreografias que não eram ensaiadas, mas que surgiam como obra do instinto daquele plebeu, bobo e rei. Lembraria do liso e do áspero das pedras sob as solas grossas de seus pés. Do calor insuportável e ao mesmo tempo contagiante. Dos blocos que se encontravam, saudavam e dançavam juntos. Dos pequenos guarda-chuvas coloridos sumindo e reaparecendo na multidão conforme a marcha seguia. Do som retumbante dos tambores de maracatu, dos metais do frevo e das vozes cantando os hinos apaixonados àquelas cidades irmãs.
Lembraria das moças belas, das fantasias variadas, divertidas e de uma criatividade ímpar, dos homens vestidos de mulher e das mulheres vestidas de homem, dos heróis de sua infância e de outras infâncias mais velhas ou mais recentes, dos bonecos gigantes descendo as ladeiras numa fila sem fim, do gosto da cachaça e da cerveja que de gelada logo se tornava quente, porque não havia gelo que resistisse ao calor do sol e da alegria da multidão.
Sim, João lembraria, por mais que bebesse, e até se caísse dormindo encostado em alguma calçada, ele lembraria, porque as memórias boas não se perdem, elas ficam guardadas nas gavetas de nossas mentes, e por mais que a cabeça muitas vezes nos falhe, o sentimento carrega as imagens e sensações do que foi vivido, e ele sabia disso.
E conforme o dia passava e o sol perdia a força, escurecendo o azul luminoso daquele céu limpo, a alegria de João também minguava. Mas não pelo cansaço, e sim por saber. Saber que aquela euforia estava findando, seguindo o caminho do astro rei, que se esconderia por trás da linha do horizonte e levaria consigo a folia de João.
Olhou para os lados, o céu já mesclava o azul com tons avermelhados, as pedras seculares já esfriavam, e João agora começava a se ver sozinho. Sua corte estava indo embora, seu baile real estava no fim, e logo ele já não seria o João rei, mas apenas o João povo, o homem comum da plebe ordinária. Sentou na calçada, olhando para os pés sujos e doloridos. Olhou para os trapos suados e gastos de sua roupa multicor. Olhou para o chão, para as pedras incrustradas nas ruas, olhou para o céu, para as estrelas flutuantes que surgiam no alto, uma de cada vez, para formar os blocos das constelações.
Levantou com esforço, sorveu o último gole de sua cachaça e partiu, trôpego, cambaleante, vacilante, como se evitasse seguir em frente e ao mesmo tempo sentisse a necessidade de fazê-lo. Foi para casa, para a esposa que o esperava resiliente, amamentando o último dos vários filhos postos no mundo, enquanto que os demais faziam suas trelas carnavalescas nas ruas. Seguiu aos poucos, chegou aos poucos, entrou no pouco que tinha e caiu em sono profundo, onde de novo seria folião no reino de Morfeu.
Acordou de ressaca, com o gosto de cachaça na boca e o amargor da tristeza marcado na lembrança do fim daquela euforia de um dia só. Levantou para trabalhar, trocou de roupa, comeu pouco e partiu. No fim do dia as ladeiras seriam difíceis de novo. Os pés doeriam do cansaço do trabalho. O estômago roncaria e seu corpo fatigado chegaria arrastado pelo resto de forças que sobrava depois do labor fatigante.
Pegou o ônibus, e olhando pela janela do transporte lotado, vendo pobres e ricos devidamente separados, como era e como sempre fora, deu por si que a festa acabara. Porque agora João não era mais rei, era plebeu, e nem lugar de bobo ele tinha na corte. Já não havia fantasias, havia só a realidade, que calejava os pés, que marcava a pele, que enfraquecia os dentes e fraquejava as pernas. A realidade que machucava a alma.
João guardara a fantasia, e o mundo era de novo preto e branco. E assim seria, até que Momo chegasse outra vez, anunciando seus festejos e ordenando que todos tirassem do fundo de seus corações as fantasias coloridas que guardavam ali dentro. E então João seria realeza outra vez, e seria bobo, e seria povo, todos num só, em um dia de baile sob um sol ardente e um céu azul e límpido, numa onda de gente sorrindo.
Porque seria carnaval outra vez.
Ilusão
- Não, não, não! – Dizia ele, com o dedo em riste e com a raiva estampada na voz. – Quantas vezes eu tenho que explicar a você o absurdo disso? Quantas vezes tenho que dizer que isso não faz sentido algum?
A mulher apenas o observava em silêncio, dirigindo ao homem à sua frente um olhar analítico, como se o estivesse vendo pela primeira vez e decorando cada detalhe de seu corpo, de seu rosto, de suas roupas e seus gestos, a aquilo servia apenas para deixa-lo mais irritado do que já estava naquele momento. Sentia-se como um perfeito estranho na frente de alguém que já conhecia tão bem.
- Por que está me olhando desse jeito, com essa cara de idiota? Por que não diz uma palavra sequer? Está em silêncio desde que chegou e lançou em mim essa bomba. Pretende o que com isso? Me deixar falando sozinho até que eu me cale? Pois eu lhe asseguro que não vou me calar até que me dê uma resposta e abandone essa ideia absurda que aquele maluco colocou na sua cabeça. Não vê que isso é loucura? Como acreditar em algo assim depois de todo esse tempo em que estamos juntos?
Calada, a mulher continuava a observa-lo, também descrente das coisas que haviam sido ditas a ela horas antes. Era real demais para que pudesse acreditar naquilo. Fazia sentido, e ao mesmo tempo não fazia sentido algum tudo o que lhe fora revelado naquela mesma manhã, e por isso ela permanecia a observar o homem com a raiva estampada no rosto e na voz, tentando convencer a si mesma da verdade e ao mesmo tempo da mentira daquilo.
- Eu... eu já não sei em que acreditar. – Disse ela, finalmente, cedendo à vontade de falar o que estava sentindo. De algum modo, ela recusava-se a crer no que seu psiquiatra lhe revelara naquela manhã. – Sinceramente não sei.
- Como não sabe? Então acha mesmo que eu sou uma ilusão? Uma invenção da sua cabeça? Depois de tudo o que passamos você ainda cogita acreditar no que aquele louco lhe disse?
- Aquele louco é um psiquiatra renomado, com décadas de experiência nessa profissão, e mesmo que fosse um recém-formado, você há de convir que existem outros elementos que mostram que tudo o que ele falou faz todo o sentido.
Ela estava confusa, com a voz trêmula, e se perguntando por que insistia em responder àquelas perguntas, e por que ainda se incomodava em decepcionar o homem com quem estava falando, quando descobrira naquele mesmo dia a verdade chocante, a de que ele não era nada mais que uma ilusão, uma criação de sua cabeça causada por um distúrbio que lhe fora revelado que tinha.
- Que outros elementos?! Que outros elementos?! Quer que eu fale de outros elementos? Que tal as viagens que fizemos juntos? Que tal os locais para onde saímos constantemente? E que tal as nossas fotos? Sim! As nossas fotos, pegue elas e veja como estou em todas, e em todos os lugares para onde fomos.
Ela já pensara em fazer aquilo, mas não tivera coragem. Não quando tudo parecia ter sido tão real, tão concreto, tão palpável. Aqueles últimos meses tinham sido verdadeiramente mágicos. Desde que o conhecera ela parecia ter esquecido sua vida anterior, que agora lhe aparecia como um borrão confuso. Era como se ele tivesse surgido como a solução para seus medos, suas angústias, sua solidão. Era como se no momento da chegada daquele homem ela tivesse nascido para o mundo.
Mas durante todo aquele tempo eles não tiveram amigos, ou sequer conhecidos para compartilhar seus momentos, e sempre que estavam em público ele parecia diferente, calado, distante, como se não quisesse ser visto, como se não quisesse ter contato algum com as outras pessoas. Até mesmo com ela era frio, deixando-a muitas vezes falando sozinha e sequer respondendo às perguntas que fazia, esquivando-se de dar demonstrações públicas de carinho, e por vezes deixando-a para trás, como se ela não estivesse ali, ao menos para ele.
E conforme o tempo se passou ela deixou de atribuir aquilo à introspecção e timidez dele, percebendo que a relação deles parecia estar fadada a ser um segredo, onde os outros não poderiam saber do que compartilhavam.
Então ela passou a ligar os pontos, conectar os caminhos e jogar luz nas áreas obscuras, que foram clareando conforme sua curiosidade ficava mais aguçada, até decidir procurar um médico, um especialista, a fim de elucidar aquela confusão que tinha se abatido sobre ela. E assim o fez, e assim descobriu pelo que passava. O homem a quem tanto amava, aquele lhe fazia tão feliz era na verdade uma criação de sua mente, uma ilusão criada para satisfazer suas expectativas. Um ponto fora da realidade.
- Isso! – Continuou ele. – Pegue as fotos, veja os vídeos em nossos celulares. Se eu realmente for uma ilusão, uma invenção de sua cabeça, então eu não estarei em nenhum daqueles registros. Vamos. Pegue seu celular e veja!
Ela não sabia onde estava seu celular. Sequer lembrava onde tinha guardado as fotos que tinha mandado revelar. E temia checar a veracidade daquilo. Temia que tudo o que acreditava fosse uma ilusão. Seria como abrir a caixa de Pandora, deixando sair lá de dentro coisas que não teria como controlar depois, e que aniquilariam tudo o que acreditava ser verdade.
- Vamos. Olhe! – Insistia ele.
- Você... Você não vê como tudo isso faz sentido? – A voz dela soava fraca, sem convicção. – Nós estamos juntos há meses, e não temos amigos. Não temos sequer conhecidos. Nunca saímos com ninguém. Não falamos com outras pessoas. Somos só nós dois. E quando saímos você parece distante, calado, quase que... invisível.
- E um casal precisa ter amigos? Um casal que gosta da companhia um do outro precisa mesmo de outras pessoas para partilhar desses momentos? Ou a presença de um não é suficiente para a felicidade do outro? Além disso, ambos somos novos aqui. Chegamos há pouco tempo, e logo depois nos conhecemos. Eu mesmo não fiquei interessado em conhecer mais ninguém. Não quando você é o suficiente para mim. É para você que quero ser visível, não para um bando de estranhos.
- E nossas famílias? Eu sequer conheço a sua, e você também não conhece a minha.
- Quantas vezes já falamos sobre isso? Meus pais morreram há muito tempo, e eu não falo com meu irmão. E sempre que falo em conhecer os seus pais você desconversa dizendo que ainda não é tempo. Nunca me mostrou sequer uma foto deles, e quando peço para descrevê-los sempre muda de assunto.
Seus pais. Por que sempre ficara reticente em falar sobre eles? Por que nunca mostrara a ele uma foto de sua família? De fato havia aquela mudança de assunto, como se falar daquelas pessoas fosse um tabu, um bloqueio para ela, e mesmo naquele momento, a mera imagem deles surgia turva diante de seus olhos, indistinta, o que ela atribuía à confusão pela qual sua mente passava.
Naquele momento, tudo o que ela parecia lembrar era das palavras do psiquiatra naquele início de manhã dando-lhe o diagnóstico com uma voz carregada de um tom frio e cheio de seriedade, atingindo seus ouvidos e sua mente com palavras pesadas e cheias de complexidade. Depois, lhe passara uma receita com letras as quais ela mal conseguia ler. “Tratamento”, fora mais uma palavra confusa jogada em sua mente frágil. Um tratamento que deveria ser seguido à risca para que o problema não piorasse.
“Assim as alucinações ficarão sob controle”, ele dissera. Mas ela não comprara o medicamento, e fora direto para casa, temendo que tudo fosse verdade, e que ao tomar os remédios a pessoa que tanto amava iria desaparecer, mostrando que tudo o que o médico lhe dissera era verdade. E agora estava ali, parada, fitando aquele que acreditava ser o homem de sua vida, ainda confusa em crer ou não crer na veracidade do que lhe fora revelado.
Então ergueu os olhos novamente, e ele estava ali, apontando para ela um objeto escuro, enquanto a fitava com um olhar vidrado.
- Se não encontra o seu celular, então veja o meu. Veja as nossas fotos, os nossos vídeos. Veja como o que vivemos não é e nunca foi uma mentira. Vamos, pegue. - Sua voz era suave enquanto fazia aquele pedido, mas seus olhos a encaravam, obcecados por mostrarem que ele tinha razão.
Ela não pegou o telefone. Tinha medo do que veria. Tinha medo até de erguer a mão para tocar a dele, descobrindo que não seria possível toca-lo. Não agora, que sabia de tudo, que sua mente não seria mais iludida por uma falsa percepção de tato causada pelo problema há pouco diagnosticado. Ela não pegou o telefone, mas ele não parou. Ativou a tela, foi para o álbum de fotos, e começou a mostra-las uma a uma.
Ao ver as fotografias ela sentiu que o chão se abria embaixo de seus pés, enquanto uma mão gélida e mortificante parecia envolver todo o seu corpo. Sua garganta ficou seca, e o coração pareceu parar de bater momentaneamente em seu peito. As fotos. Aquelas fotos que ela tanto temia ver. Elas existiam. Estavam ali. Mas ela não. Em cada retrato tirado apenas uma pessoa aparecia. Um homem de olhos claros e cabelos loiros. O homem que estava diante dela. O homem que ela tanto amava e que parecia completa-la de todas as formas possíveis, que parecia ser a parte faltante em sua vida. O homem que lhe fora revelado ser uma ilusão. Em todas as fotos, só ele aparecia. Não importava o local, o momento, a posição, havia apenas ele.
Seu mundo girou e uma sensação de náusea a tomou, escurecendo sua vista e lhe causando uma tontura que lhe tolheu qualquer possibilidade de reação. Pôs as mãos nos olhos, recolheu toda força que foi capaz de acumular e firmou as pernas no chão, na tentativa angustiante de não perder o sentidos, e quando conseguiu reunir o pouco de controle que seria necessário para permanecer lúcida, uma nova onde de choque lhe tomou.
O homem de cabelos loiros, de olhos claros, o homem que a completava ainda estava ali, mas ambos pareciam ter mudado de lugar. Ele agora a fitava com um olhar perturbado, como se tivesse sido atingido por um golpe, e ainda permanecesse com os sentidos perturbados. Ela moveu-se em sua direção, e ele moveu-se também.
Ela ergueu a mão para toca-lo, na ânsia de pôr fim de uma vez por todas àquela dúvida angustiante. Ele também ergueu a mão. Trôpegos eles se aproximaram, cada um com a mão erguida, em um caminhar cadenciado, em movimentos que adequavam-se perfeitamente, como se estivessem emulando os gestos um do outro, como se fossem uma imagem refletida em um espelho. Então ela tocou os dedos dele, e eram dedos frios.
Não, não eram os dedos dele que ela estava tocando. Era uma superfície fria e lisa. Um pedaço de vidro sem vida. Era o espelho. Os dedos que ela tocava eram seus próprios dedos. Os gestos da pessoa que via à sua frente eram seus próprios gestos. A imagem do homem que ela amava, era sua própria imagem.
Naquele início de manhã ele fora ao psiquiatra. Naquele início de manhã ele recebera a notícia de sua doença. Naquele início de manhã lhe fora revelado que a mulher que ele tanto amava e que parecia completa-lo não era nada mais que uma ilusão, uma criação de sua cabeça, elaborada em virtude do distúrbio que possuía. Naquela manhã lhe tinha sido passada uma receita para que ele afastasse as ilusões de sua mente combalida, mas no caminho de volta para casa ele se recusara a fazer aquilo, pois sabia que se o fizesse, mataria a única pessoa que amara na vida. Era ela, e não ele a alucinação vivenciada.
E após descobrir aquela verdade devastadora ele passara horas a fio diante do espelho, tentando convencer a própria mente que tudo aquilo era uma mentira. Dividindo-se em dois, para que pudesse continuar a manter a unidade com a figura que criara para atender às próprias expectativas e necessidades sentimentais. Para ele, a ilusão se tornara uma realidade, e a realidade um pesadelo ao qual ele não queria mais ser submetido.
O rasgo mental que sofrera com a notícia fora tão grande que ele tentava convencer a própria ilusão de que o que viviam era a realidade.
Por causa disso não havia memória dos pais dela, porque não havia pais a serem lembrados. Por causa disso ela não estava nas fotos, porque só ele as tirara, e por causa disso ela fitava abismada a imagem dele, refletida no espelho, vista pelos olhos dele, porque no fim das contas ela não era nada mais que uma criação de uma mente perturbada, e era através dos olhos dele que ela via e vivia o mundo.
Então, aturdido demais para separar o real do ilusório, ele sentou-se no chão, e fitou com olhar desolado a receita de medicamentos que o médico lhe dera, deparando-se naquele momento com um dilema que definiria sua vida. Escolher entre a solidão da realidade, e o abraço acolhedor e amoroso da ilusão.
A escolha era fácil demais, simples demais, porque a realidade da solidão era dura demais para ser vivida, e o acolhimento que a ilusão lhe mostrava era tentador ao extremo. Porque só quem vive solitário sabe as dores e o sofrimento que isso pode infligir ao coração. E assim ele decidiu.
Sentado no chão de seu quarto ele desviou os olhos do espelho, da receita que o médico lhe passara, e a viu novamente, em toda a beleza que fora construída por sua própria mente. A mulher que ele criara para completa-lo, a fantasia elaborada para esquecer o quão solitário era. Uma parte de si mesmo, que tentava completar a parte que lhe faltava.
Então, ele resolveu acolher a mentira, e convenceu a própria mente que realidade e ilusão eram ambos partes de um todo. E abraçou a mulher que não existia, abraçando desta forma a si mesmo.
Porque era melhor viver a ilusão de um todo, do que uma realidade onde ele era apenas uma metade.
Sonho, o combustível da vida
O dia resplandecia naquele início de manhã em que o sol brilhava no alto, tocando a paisagem com seus enormes e acalentadores braços dourados que enchiam de tonalidades sem fim a natureza que se espalhava pelo mundo.
As copas das árvores brilhavam com um verde esmeralda, espalhando-se em igual tonalidade pela grama macia que corria a perder de vista, e o lago plácido cintilava com os raios de sol que tocavam seu espelho d’água, dando a impressão a algum passante desavisado que milhões de pequenos peixes reluzentes tinham subido à superfície para brincar naquelas águas resplandecentes.
Em meio ao lago, destoando brevemente da natureza virgem que dominava toda a redondeza conhecida, um pequeno barco flutuava, onde ao longe três figuras podiam ser vistas, paradas e quietas, tal qual uma pintura eternizada na tela de um quadro. Em meio ao lago cintilante, às árvores de tom esmeralda e ao cantar dos animais que tocavam uma sinfonia que jamais desafinava, o pai e os dois filhos pescavam em silêncio, absorvidos por aquela tranquilidade pacífica e inebriante, da qual costumeiramente desfrutavam nos finais de semana.
O homem, no alto de seus quarenta anos, ostentava o ensaio do que viriam a ser rugas profundas em um futuro que se avizinhava, espalhando-se por uma testa que se alongava a cada ano em virtude do cabelo que rareava com o passar do tempo. Os olhos azuis e brilhantes ainda mantinham resquícios da luminescência da juventude que a cada dia se distanciava um pouco mais, e o homem fitava sonhador o espelho d’água que se estendia ao seu redor, fitando-o com uma expressão boba que só os que estão perdidos em devaneios de satisfação ostentam.
À sua frente, igualmente em silêncio mas com um olhar apenas pensativo que em nada denotava sonhos ou viagens por mundos imaginários, estava seu filho mais velho, aparentando ser um retrato rejuvenescido dele, com os mesmos olhos, o mesmo cabelo, as mesmas feições ainda preservadas do toque inevitável do tempo.
Ao seu lado, o caçula ostentava o mesmo olhar de encantamento do pai, fitando o ambiente com um brilho nos olhos, como se perscrutasse algo que não podia ser visto à primeira vista. Como se estivesse vasculhando a essência da magia que aquela cena representava.
Ao ver aquela expressão nos olhos do filho mais novo, o homem resolveu ampliar o senso de fantasia do garoto, e passou a contar uma das inúmeras histórias de aventura que guardava em seu repertório, causando uma dupla reação naquele pequeno barco, pois enquanto o caçula voltou toda a atenção para o que o pai estava falando, o mais velho mostrou-se impaciente, e isolou-se ainda mais na concentração que dedicava ao anzol e à pescaria.
Depois de uma narrativa que pareceu silenciar a própria sinfonia regida pela natureza que havia ao redor deles, o pai olhou com satisfação para a expressão de encantamento do caçula, mas ao correr o olhar pela face do mais velho não pode deixar de franzir a testa em sinal de preocupação, fazendo com que dois ou três vincos ainda discretos ali aparecessem.
- E então. Gostaram da história? – Perguntou ele, já antevendo, pela expressão antagônica nos rostos dos filhos, qual seria a resposta de cada um deles.
- Adorei pai. Especialmente aquela parte em que o herói derruba a ponte levadiça e desafia o inimigo para o combate! – O entusiasmo na voz do menino era latente.
- E você? – Dessa vez ele voltou os olhos para o filho mais velho, que estava absorto, fitando um ponto longínquo do lago.
- Estava pensando. – Respondeu o garoto. - Não acha que é melhor remarmos um pouco mais à frente. Ali naquele ponto. – E apontou para onde desejava ir, deixando nítido para o pai que não prestara atenção a sequer uma palavra do que ele dissera, e se prestara, parecia não ter se importado nem um pouco.
- Você ouviu algo do que eu disse? – Perguntou o pai, sem dar-se ao trabalho de olhar para onde o rapaz apontava.
- Sinceramente, já ouvi tanto essa história que posso conta-la de trás para frente pai. E a cada vez que a escuto vejo menos graça.
A resposta que recebeu do filho, além de deixa-lo ofendido, o deixou também preocupado. Nos últimos tempos passara a notar um comportamento cada vez mais frio e distante no garoto, que se apaixonara pela lógica de tudo a tal ponto que desprezava até mesmo os momentos de alegria em família. Aqueles pequenos momentos que de fato nos lembramos no outono de nossas vidas, com uma insistente nostalgia e um constante desejo de que se repitam.
Mas o jovem não parecia dar valor a nada daquilo, e no alto de seus catorze anos buscava uma explicação fria para tudo o que via ou ouvia. Não que fosse ruim dedicar-se ao estudo, como ele fazia, assim como também não o era buscar respostas para fenômenos que por muitas vezes eram romantizados por mentes mais imaginativas, mas a frieza com a qual alguém tão jovem passava a encarar o mundo preocupavam aquele homem, que sempre fora um amante das cores das paisagens e da poesia dos cantos e das palavras.
Aquele exato momento era um exemplo daquele tipo de reação do menino. Estavam em família, pescando, compartilhando um momento de companheirismo e intimidade, conversando sobre a vida, sobre os desejos, sobre os sonhos, sentados em um barco perdidos em meio a uma natureza de beleza inigualável. Quantos pais e quantos filhos espalhados pelo mundo não desejariam um momento como aquele? Mas na expressão do rapaz ele enxergava apenas alguém interessado em que tipo de peixe pegaria, no método que usaria, e na identificação que a ele daria antes de devolve-lo ao lago. Apenas razão, nada de emoção, contrapondo-se inteiramente à expressão sonhadora do irmão mais novo.
- Então você não gosta das histórias que conto?
- São histórias legais... – Começou ele. – Para crianças. Mas já passei dessa fase, então não vejo muita utilidade nelas.
- Porque você é um idiota! – Revoltou-se o irmão caçula, sendo de pronto ignorado pelo mais velho.
- Nada de brigas. – Interrompeu o pai, sendo incisivo como só ele sabia ser nos momentos em que aquilo se tornava necessário. Então voltou a fitar o filho mais velho, analisando sua expressão fria. – Então não vê utilidade em histórias de fantasia?
- Para crianças sim, para adultos, nem um pouco.
- Sei. Então, na sua opinião, de um quase adulto, histórias fantasiosas não têm utilidade alguma?
- Não quero ofende-lo. – Disse o rapaz, tentando mudar de assunto.
- E não vai. Sabe que vou continuar a conta-las de qualquer forma. Além do mais, não criei meus filhos para esconderem a sinceridade deles. Então pode falar, sem preocupação.
- Na minha opinião elas não têm qualquer serventia. Depois que passamos de determinada fase temos que ser realistas quanto a tudo o que ocorre ao nosso redor, e isso não envolve histórias fantasiosas com aventuras fantásticas sobre coisas imaginárias e absurdas. Bem, não quis ofender, e você mesmo me pediu para dizer a verdade.
- Não ofendeu. – Disse o pai, coçando levemente a barba por fazer, enquanto observava atentamente as águas calmas do lago, como se estivesse formulando algum pensamento. – Não ofendeu. Me permita só uma última pergunta. Pelo que vi, para você as fantasias têm uma data de validade, um período em que possuem alguma importância em nossas vidas, que logo some conforme envelhecemos. Não é isso? Para você, essas histórias sobre “coisas imaginárias e absurdas” não trazem qualquer benefício depois de certa idade. Correto?
- Correto. – Respondeu o garoto, de forma enfática.
- Muito bem. - E voltou a fitar o lago, pensativo, como se buscasse enxergar algo naquele espelho brilhante de água. Então seus olhos pareceram expor um brilho rápido, que só foi visto pelo filho caçula, e o pai perguntou repentinamente. - O que você acha da Apollo 11?
- Não entendi. – O filho olhava confuso para o pai, tentando compreender o significado daquela pergunta repentina, que para ele nada tinha a ver com o assunto que tinham acabado de discutir.
- Ora, é uma pergunta simples. O que acha da Apollo 11, a missão que levou o primeiro homem à lua?
- Eu sei o que foi a Apollo 11. – Disse ele, sentindo-se ofendido com a explicação. – E respondendo sua pergunta, acho que foi um verdadeiro ganho para a humanidade.
- Hum. Certo. E o que acha de Júlio Verne?
- O escritor?
- E existe outro? – Perguntou o pai sorrindo, divertindo-se com a expressão de revolta no rosto do filho por causa da ironia, e com o sorriso de deboche do caçula.
- É um escritor mundialmente famoso. – Limitou-se a responder o garoto, enquanto mexia no molinete de sua vara de pescar.
- E pelo que vejo, nunca leu nada dele. Pois você sabia que uma das obras de Júlio Verne influenciou diretamente na missão Apollo? – O rapaz ficou calado, fitando o pai em silêncio, o que o fez continuar. – “Viagem à Lua” foi publicado em 1865, pouco mais de cem anos antes das missões Apollo, e naquela época esse tipo de coisa não era nada mais do que ficção. Um sonho do homem, pintado com cores em seus pensamentos. Uma fantasia, como você disse, imaginária e absurda. Pois bem, essa coisa imaginária e absurda, essa fantasia, teve bastante influência sobre aqueles projetos que se desenvolveram cem anos depois. Ou você acha que nenhum dos engenheiros ou políticos, ou astronautas leu aquela obra? E mesmo que não tenha lido, você realmente acha que nunca foram influenciados pelas histórias fantásticas que contavam sobre o espaço?
O garoto calou-se e ficou acabrunhado, fingindo concentrar-se novamente no anzol. O pai continuou:
- Já ouviu falar de Vinte mil léguas submarinas, outra obra famosa de Júlio Verne? Pois bem, a descrição do fundo do oceano feita por ele naquela obra de fantasia, influenciou diretamente Jacques Cousteau, um dos maiores oceanógrafos que o mundo já viu, que com suas pesquisas realizou importantes descobertas para a ciência. E quem sabe se nesse exato momento não estão sendo desenvolvidos veículos tripulados para explorar o núcleo de nosso planeta, como Verne pensou em “Viagem ao centro da terra”? E quem sabe quantas e quantas naves, inventos, técnicas, fórmulas e toda sorte de inovações não estão sendo estudadas e criadas com base no que outros contadores de histórias “fantasiaram” um dia. Entendeu agora?
- Não. Não entendi. – Respondeu o rapaz, mais por orgulho do que por não ter de fato entendido. Ele já captara o que o pai queria dizer.
- A fantasia, meu filho, não tem idade, não tem tempo, não tem data de validade. Se Galileu não tivesse fantasiado sobre as estrelas, quantas descobertas deixariam de ser feitas? Se Bem Franklin não tivesse fantasiado com outra forma de energia, quanto tempo não teríamos demorado para descobrir a eletricidade? Se Júlio Verne e outros escritores não tivessem fantasiado sobre os confins do espaço, será que teríamos dado os primeiros passos em direção ao infinito? As fantasias, garoto, são o combustível da realidade. Abandone-as, e o mundo ficará parado. Entendeu agora o quão úteis essas histórias absurdas e imaginativas são para nossas vidas?
O garoto fitou o lago, tentando encontrar algum argumento para rebater o do pai, mas tudo o que conseguiu foi concluir que ele fora o único peixe fisgado naquela manhã, e não havia como se debater para fugir do anzol que lhe fora lançado. Então, um pouco sem jeito, ele olhou para o homem à sua frente com uma expressão que admitia que ele estava certo.
- Ótimo. – Disse o homem. – Agora vamos pescar, em silêncio, para não assustar os peixes. E se não conseguir pescar nenhum, quem sabe eu não pesque alguma história, vinda direto do lago da minha imaginação?
- Ou da minha. – Respondeu o caçula.
- Ou da minha. – Completou, timidamente, o mais velho.
O pai então sorriu, porque viu que naquela manhã ele fizera mais do que pescar algo. Ele plantara uma semente. Uma semente que não deixaria a fantasia morrer.
Porque quando deixamos de imaginar, deixamos de construir a ponte que nos levará para ao amanhã.
Eterna Caminhada
O tempo corria, rápido e incansável, em sua jornada sem pausas, sem descanso, sem interrupção. O próprio tempo não tinha tempo para nada a não ser seguir em frente.
Correndo cheio de voracidade ele carregava consigo três parceiros que o acompanhavam desde que a primeira luz brilhara no universo, e que com ele estavam destinados a irem até que a escuridão engolisse toda a existência.
Atrás do senhor das eras, em uma marcha mais lenta, mas veloz o suficiente para seguir perto naquela jornada estava o passado. Gasto, abatido, com cabelos brancos e rugas profundas cavadas em cada traço de sua face, tão velho quanto o próprio tempo, mas tão incansável quanto ele. O acompanhava em um esforço que parecia hercúleo, exaustivo, fatigante, mas ainda assim conseguia acompanha-lo.
Ao lado do tempo seguia, jovem e vigoroso, o presente, de feições firmes e porte robusto, sempre disputando com aquele velho corredor cada centímetro daquela estafante corrida, deixando para trás, em uma sequência de cópias, sombras gastas e envelhecidas que dele saíam, formando assim o passado que de perto os acompanhava.
E à sua frente, ainda mais jovem e tão rápido quanto os três estava o futuro. Mas os demais corredores que iam atrás dele não conseguiam vislumbra-lo em sua plenitude, em virtude da rapidez com a qual corria, sendo visto por todos como um vulto, um borrão que ia à frente indistinto e indefinido.
E daquela forma incansável e irrefreada eles corriam desde o início das eras, com uma rapidez que não podia ser acompanhada, que não podia ser sequer vislumbrada. Passavam por mundos em formação, por estrelas que nasciam em uma explosão brilhante e fantástica, e que engoliam a si próprias quando sua existência chegava ao fim, abrindo novos caminhos na escuridão do espaço, que levaria a rumos que por eles seriam percorridos.
Passavam por vidas sendo criadas e se desenvolvendo no útero do universo frio. Raças que surgiam. Raças que findavam. Mundos que colidiam e outros que dominavam. Nascimento, vida e morte passando em uma velocidade que não podia ser medida, que não podia ser mensurada, e que por alguns não podia sequer ser imaginada.
O trajeto infindável era percorrido com tamanha velocidade que os próprios corredores por vezes se confundiam e se fundiam, ainda que em apenas um átimo de segundo, em um só, pensando e sentindo de forma igual, como um único ser, nas contínuas e repetidas vezes em que isso acontecia. E era nesses momentos em que conseguiam dialogar, contando um ao outro suas dores, suas angústias... seu cansaço.
De seu lado, atento apenas ao trabalho eterno e infinito que lhe fora confiado, o tempo voltava sua atenção unicamente aos fatos que eram dignos de serem notados, e por voltar-se apenas ao objeto de seu labor, o velho e imparável velocista distraiu-se o suficiente para deixar de perceber a trama que seus companheiros ocultamente arquitetavam.
Enquanto dava suas passadas velozes, mais rápidas até mesmo que o próprio pensamento, o tempo vislumbrou um clarão, seguido de um som estridente, causados por uma explosão que pareceu abalar os alicerces da própria existência, e cego com aquele brilho irradiante, surdo com o trovejar ribombante, e confuso com o impacto que lhe atingira com a força da destruição de infinitos mundos ele fez o que nunca tinha feito desde que dera o primeiro passo... o tempo parou.
Atordoado e sem reação, confuso demais para entender o que se passava, o tempo chamou por seus companheiros, preocupado com o que podia ter acontecido, com aquilo que para todo o universo era um fato inusitado, jamais visto e nunca previsto, mas não conseguiu nenhuma resposta a não ser o ensurdecedor som do silêncio que sobre ele se abatia.
Pensando estar surdo por causa da explosão que penetrara em seus ouvidos, o tempo, jovem e ao mesmo tempo velho, procurou acalmar-se, e assim que seus olhos cansados e opacos recuperaram lentamente a capacidade de vislumbrar o que se punha à sua frente, ele viu que estava só, e ao invés do borrão que costumeiramente avistava em sua eterna corrida, o tempo viu que tudo estava diferente, distinguível, como a paisagem eternizada em um quadro, porque tudo estava parado.
Temeroso com as consequências do que acontecera ele chamou novamente pelos companheiros, mas ao nada ouvir a não ser o som da própria voz, profunda e trovejante, ecoando pelo universo represado, sentiu a preocupação crescendo dentro de si, e como um louco desvairado passou a gritar e chamar pelos demais corredores, fazendo com que o universo tremesse a cada eco dos gritos que lançava pelo espaço agora estagnado.
Tão altos eram aqueles gritos que perpassavam por tudo o que existia, que eles quebraram as paredes das dimensões, chegando nítidos e perturbadores aos ouvidos do passado, do presente e do futuro, que em outro plano se ocultavam, satisfeitos do sucesso alcançado no projeto que tantas vezes haviam sussurrado um para outro nos momentos em que conseguiam mesclar-se em sua jornada. Cansados da eternidade de sua viagem, eles tinham enganado o tempo, abandonando-o solitário em sua infinita corrida.
Felizes eles se entreolhavam, espantados com as aparências um do outro por se verem pela primeira vez desde o nascimento. O passado reconhecia o presente em suas próprias feições gastas e enrugadas, como um resquício da juventude que tivera um dia, ao mesmo tempo em que o presente se espantava ao ver no rosto do companheiro o resultado da ação daquela corrida que jamais cessava.
De outro lado, o futuro os fitava, verdadeiramente admirado por ter, pela primeira vez em sua existência, a oportunidade de vislumbrar aqueles que sempre estiveram atrás dele, mas que jamais pudera enxergar antes, ao passo que os demais o encaravam surpresos com as feições daquele que sempre estivera um passo à sua frente.
Mais do que isso, se surpreendiam porque, diferente deles próprios, o futuro era jovem, mas não tinha uma feição fixa, e apesar de parecer a eles ser uma versão mais jovem de si mesmos, sua imagem era constantemente modificada, sofrendo espasmos trêmulos que a deixavam desfocada, o que fazia com que fosse quase impossível dar-lhe uma descrição específica.
- O que acontece com você? – Perguntou, curioso, o presente. – Porque suas feições mudam constantemente? É como olhar para o fundo do mar em uma dia de maré agitada.
- Porque assim como as marés eu posso mudar constantemente, e me modifico conforme as ações de cada um. – Respondeu o futuro, com uma voz jovial e cheia de energia. – Eu não sou fixo, mas sim mutável. Posso ser um nesse segundo, e mudar no segundo seguinte, conforme uma decisão tomada em um piscar de olhos. Mas e você? – E dirigiu os olhos parcialmente distinguíveis para o passado, que o fitava com um olhar solene. – Por que está tão cansado?
- Pareço cansado a vocês meus jovens? – Sua voz soava arrastada, porém profunda, como se nela estivesse o peso das eras e a profundidade da experiência. – Sim, sei que pareço, e o sei porque essa é a verdade. Pareço cansado porque estou cansado. Estou gasto, velho, consumido por uma vetustez que nunca termina, e que nunca me concede a oportunidade de um descanso eterno. Com esses olhos embotados eu presenciei mundos nascendo e mundos morrendo para entrarem em um descanso eterno, mas a mim próprio nunca foi dada a oportunidade de um repouso merecido.
- Também me sinto cansado. – Disse o presente. – Exausto de tentar alcançar o futuro e de ter de olhar para trás para ver se o passado ainda está lá. Exausto de tentar acompanhar o tempo nessa viagem que a mim não faz sentido algum, e pela qual nada ganho em troca. Sim, o tempo, aquele carrasco apressado e esfomeado, que consome as eras e nos carrega contra nossa vontade por essa infinidade de universos.
- Sim. – Repetiu o futuro. – O tempo, que me persegue como um louco e me fustiga a correr em uma velocidade maior para estar sempre à frente de vocês, meus irmãos.
- Sim. – Concluiu o passado. – O tempo, que não me valoriza e me dá as costas, pouco se importando comigo, que já fiquei para trás em sua jornada. O tempo, jovem e velho, implacável e incansável, faminto e obsessivo. Tão voraz que agora mesmo está a gritar pelas fronteiras do universo à nossa procura, para que sigamos nessa jornada louca e obsessiva ao seu lado. Mas já alcancei meu limite. Quero apenas deitar e fechar os olhos, para todo o sempre.
Os outros dois ficaram a observar o ancião enquanto ele dobrava-se lentamente para sentar-se com um grunhido que denotava explicitamente seu cansaço, enquanto ouviam os ecos dos chamados do tempo, que chegavam aos seus ouvidos depois de reverberarem por uma infinidade de lugares. Por alguns momentos permaneceram calados, cada um guardando seus próprios pensamentos, sem atreverem-se a fundirem-se novamente, como tantas vezes haviam feito durante aquela caminhada eterna. Mas foi o presente quem, depois de muito ponderar, quebrou aquele silêncio repentino, chamando para si a atenção dos olhos embotados do passado, e dos olhos indecifráveis do futuro.
- Deveríamos ao menos avisa-lo de nossa decisão. – Suas palavras saíram calmas, pausadas e decididas.
- Como?! – Espantou-se o futuro. – Avisar aquele maníaco? Para que? Para que nos escravize novamente? Para que volte a fustigar e perseguir, como sempre fez comigo?
- Para que nos deixe, e nos esqueça, como sempre fez comigo? – Concluiu o passado, com sua voz velha e cansada.
- Não me recordo de ele ter nos obrigado a nada. Esse desígnio não nos foi dado pelo tempo, mas por Alguém maior, que está além de toda a compreensão, até mesmo da nossa, e o aceitamos de bom grado, desde o início, apesar da exaustão a que isso nos levou. – Disse o presente, observando a surpresa que suas conclusões haviam causado em seus irmãos.
- Faça como quiser. – Retorquiu o futuro. – Mas garanto-lhe que não voltarei a fazer o que fazia antes. Assim como vocês, também estou exausto, e mereço um descanso à altura de todo este esforço.
O presente então fitou o passado, que limitou-se a dirigir-lhe um olhar resignado, como quem dissesse que o chamado que pretendia fazer nenhuma diferença fazia para ele.
Então o presente parou calado uma vez mais, a fim de ouvir os ecos dos gritos desesperados do tempo, que clamava para que aparecessem, e ao escutar novamente aquele som perturbador ele gritou em resposta, acusando o local onde tinham se ocultado. E em poucos momentos os três viram surgir a figura que lhes era tão familiar, com a qual tinham dividido toda sua existência.
O tempo surgiu, passando pelas paredes que dividiam o universo em infinitas dimensões, com sua face meio nova, meio velha, com seu corpo jovem e ao mesmo tempo idoso, com uma expressão disposta e cansada, e fitou surpreso aqueles três que se punham parados diante dele.
- Mas o que está havendo? – Perguntou, ansioso por uma explicação para todo aquele caos. – O que houve para que cessássemos nosso dever? Para que fizéssemos o inesperado, o inadmissível, o surpreendente ato de parar não apenas nossa caminhada, mas também todo o andamento da vida?
- O que está havendo, senhor das eras, é que estamos cansados. – A voz do passado surgiu, reverberando em um tom profundo e tão antigo quanto o próprio mundo. – Exaustos para continuar com esse propósito.
- Sim. É isso. – A voz do futuro surgia doce e leve, como a voz afável e cristalina de um jovem, mas ao mesmo tempo perturbada e apreensiva, mutável, como o próprio futuro o é em si mesmo. – Cansados de sermos perseguidos.
- Cansados de sermos esquecidos. – Completou o passado.
- Cansados de tentar acompanha-lo. – Concluiu o presente. – E de nunca chegarmos a lugar algum. De nunca sermos reconhecidos. De nunca recebermos algo em troca por nosso sacrifício eterno.
E assim os três se calaram, permanecendo em silêncio enquanto fitavam as feições igualmente jovens e antigas do tempo, e o senhor das eras fitou um a um aqueles rostos, vendo a perturbação e a revolta em suas expressões enquanto ainda se espantava com o quão semelhantes e o quão diferentes eles eram.
- Vocês têm noção do que estão para fazer se continuarem com essa insensatez? – A voz do tempo era calma e profunda, mas nem por isso deixava de conter em seu timbre um tom de reprovação e autoridade. – Por acaso sabem o que podem acarretar a tudo o que existiu, existe e um dia poderá vir a existir se decidirem prosseguir com isso?
- Por diversas vezes falamos sobre isso. – Disse o futuro. – E resolvemos que não nos importamos. Não nos importamos porque ninguém se importa conosco, mas apenas com suas próprias vidas. Não importa o mundo, o plano ou a dimensão, a atitude é sempre a mesma. São indiferentes às nossas dores e à nossa exaustão. É como já dissemos. Estamos cansados.
- Estão cansados. – Repetiu o tempo. – Estão cansados.
Então fez algo que deixou os demais surpresos, algo que ele nunca fizera desde o princípio de seus dias. O tempo agachou-se lentamente e sentou-se, parando por um breve momento.
- Sim, estão cansados. – Prosseguiu. – E vocês acham que não estou? Por acaso eu não estava lá em cada passo dado, em cada obstáculo vencido, em cada gota de suor derramada? Por acaso eu não dividi com vocês a exaustão desta viagem interminável, bem como o desejo por um momento como esse? Um momento de descanso? Por acaso não sou tão irmão de vocês como o são um do outro? E quantas vezes me ouviram reclamando durante o caminho?
- Fale por você, senhor das eras. – Retorquiu o passado. – Somos semelhantes, mas também somos diferentes, e cada um tem sua própria compleição, sua própria idade e sua própria consciência. Se nunca reclamou de sua sina isso não impede de que não reclamemos da nossa.
O tempo desviou o olhar para o chão ao ouvir aquelas palavras, e enquanto alisava sua barba branca e ao mesmo tempo escura, seu pensamento voou a uma distância imensurável, revisitando as eras pelas quais tinha passado em toda sua história. E depois de um longo silêncio ponderando, que aos demais pareceu tão longo quanto a própria viagem que tinham feito até então, o tempo prosseguiu:
- Ouvi suas queixas meus irmãos, e as considero sensatas em um ponto, mas inteiramente descabidas em todos os outros.
- Então nos mostre onde fomos sensatos e insensatos. – Disse o presente, surpreendendo aos demais, que achavam que não havia qualquer insensatez no que haviam dito.
- Sois sensatos em um ponto, como já adiantei. De fato estão cansados, e de fato merecem um descanso, assim como eu, que também anseio por esse repouso que em minha mente velha e em meus pensamentos exauridos, confesso não saber se um dia chegará. Sim, estamos todos cansados, e temos o direito de admitir isso. Eis aí a sensatez de vossas queixas.
- E onde está a insensatez? Se é que ela existe. – Desafiou o futuro, enquanto encarava o tempo com sua face e seus olhos que mudavam a cada segundo.
- Sim, meu irmão caçula, ela existe. E vos mostrarei a vossa insensatez, a cada um separadamente, a começar por aquele que representa os dias de antanho. – E repentinamente voltou seus olhar para o passado, que teve um leve sobressalto, franzindo sua testa que pareceu carregar ainda mais marcas do que as que já levava consigo.
- Pois então fale, senhor das eras. – Disse o passado, com sua voz pastosa e profunda. – Mostre-me onde está minha insensatez.
- Você disse, meu experiente irmão, que está cansado, e isso reconheço. Mas também atribui sua revolta ao fato de ser esquecido por tudo e por todos. Por mim, por nossos irmãos, pelas próprias espécies que habitam esse universo sem fim. Pois lhe digo que não possui razão alguma em seus dizeres. O valor que te dão, passado, é tamanho que és visitado constantemente nas memórias de cada ser existente. A consideração que têm por ti é de tal monta que muitas desejam que o tempo pare e recue, para que possam trilhar outra vez o caminho pelo qual um dia passaram. Muitos olham para ti infinitas vezes em infinitos mundos a cada milissegundo que passa. Agora mesmo és observado em todos os mundos de que se tem conhecimento, assim como nos que não conhecemos ainda. Nunca fostes esquecido, e muito menos abandonado. Acaso um pai em sua velhice não volta os olhos para ti a fim de recordar o som e a beleza do sorriso dado pelo filho quando este ainda era um rebento? Acaso um adulto não lembra com saudade da simplicidade de sua infância, lembrando com carinho de uma época onde os dias pareciam ser mais simples? Não, meu velho irmão, não fostes esquecido e muito menos relegado. És lembrado, revisitado, e desejado por tantos quantos podem ser numerados em tua mente cansada. Eis a insensatez de tua queixa.
O passado pareceu abalado com aquela revelação que fez com que seus olhos embotados ficassem cheios de pesar, e com a boca levemente aberta ele perdeu-se em seus pensamentos, digerindo as palavras ditas pelo tempo. No entanto, este último ainda não tinha terminado sua explanação, e agora voltava seus olhos cinzentos e cheios de sapiência para aquele cujas faces nunca eram descritas com precisão, e assim fitou os olhos sempre mutáveis do irmão mais novo, falando com sua voz reverberante:
- A você, futuro, eu digo que suas lamentações são igualmente insensatas. Reclamas que eu te fustigo, forçando-o a correr mais depressa, cansando-o e perseguindo, assim como o fazem todos os demais seres viventes. Pois te digo que não o perseguimos porque queremos cansá-lo, exauri-lo ou faze-lo sofrer, mas sim porque queremos compartilhar de tua existência. Muitos anseiam por tua chegada, e o fazem com a esperança nos olhos e o desejo de que trarás coisas boas quando a hora de alcança-lo chegar. A espera por um nascimento, pela chegada do sol do dia seguinte para afastar a escuridão da noite fria. O anseio pelo encontro dos enamorados que virá na hora que marcaram com tanta antecedência. És amado, futuro, e desejado. Não te perseguimos pela dor, e sim pelo amor. Pelo desejo de vive-lo e de ver o que trarás. E apesar de ser impossível fixar-se teu rosto em uma única expressão, é possível dizer que tens uma característica que pode defini-lo como a nenhum outro de teus irmãos. A esperança. Por dias melhores, por horas de amor... até mesmo pelo descanso merecido, pelo qual tanto anseias neste instante.
E ao ouvir aquilo o futuro voltou seu olhar para o chão, e por um átimo de segundo os demais acharam que puderam ver o que nunca tinham visto antes, o rosto do irmão mais novo, e ali de fato puderam ver o que fora aludido pelo tempo. Em sua face jovem, vislumbraram uma expressão que lembrava uma feição esperançosa.
Por fim, o tempo quebrou novamente o silêncio que fora deixado quando concluíra suas palavras para o irmão caçula, e naquele momento ele voltou-se para o presente.
- E você, meu irmão do agora. Que representa o que está acontecendo. Logo você, que foi o mais sensato ao decidir me procurar, evitando que eu passasse a eternidade gritando por vocês no vazio do limbo. Logo você que foi o único a querer ouvir minhas razões enquanto os demais fechavam os ouvidos ao que eu tinha a dizer. Logo você, que em tanto foi sensato, foi o que apresentou a queixa mais insensata de todas.
O presente olhou confuso para o irmão, ferido pelas palavras duras que ele dissera e confuso pelo desejo de saber onde fora que tanto errara em suas reclamações. E o tempo prosseguiu:
- Reclamastes, meu irmão, dizendo que ninguém reconhecia nosso esforço, teu esforço, e que em troca nada recebíamos pelo desempenho desse labor eterno e pesado. Como podes dizer isso, se o teu próprio nome é presente, e a tua existência é o presente maior que podes ter ganho? Vives a benção de viver o agora, de olhar as coisas como elas são, e não como elas foram um dia ou como poderão ser em um futuro vindouro. És observado por teus irmãos, um a desejar voltar a ser como tu és, e ou outro ansiando por tornar-se o que és agora. O ontem já foi, tornando-se uma lembrança, e o amanhã ainda vai chegar, sendo apenas uma expectativa, mas tu, tu és o agora, e vives o que os outros gostariam de viver. Quantas vezes não vistes um casal de namorados desejando ardentemente que o tempo não passe para que tu possas durar eternamente? Quantos momentos de felicidade não presenciastes assim que vistes e ouvistes o desejo daqueles que vivenciavam tais instantes, pedindo para que eles nunca terminassem? Eis a tua dádiva. Eis o teu presente, reflexo do teu próprio nome, pois tu podes viver o agora pelo qual os outros apenas esperam. Tu tens esse privilégio de tocar, sentir e vivenciar o que se passa nesse instante, e que para os outros nada mais é que uma lembrança ou uma vontade. Eis aí tua insensatez, presente. És presenteado a todo momento, enquanto te queixas de não receber uma recompensa.
O silêncio novamente recaiu sobre eles, e pareceu vir carregado com o peso de mil mundos quando chegou aos seus ouvidos, mostrando a eles o quão errados tinham estado nas conclusões a que tinham chegado.
- Agora que ouvi o que tinham a falar, e disse o que me cabia dizer, eu me vou, meus irmãos, e vos deixo aqui para que decidam o que lhes aprouver. Porque ainda que o universo desmorone em pedaços e seja tomado pelo caos completo por causa de nossa separação, eu não vou parar, e correrei até o dia em que o fim de minha existência me seja apresentada, e meu derradeiro momento seja vivido. Adeus irmãos, ou até breve, a depender da decisão que tomarem.
Antes que se dessem conta, o tempo havia sumido, mas aos seus ouvidos chegou o som de seus passos ecoando pela estrada que pendia por eras e espaços sem fim, infinita em sua extensão, estendendo-se até um horizonte que nunca era alcançado. Então, após pesar as palavras ouvidas, e convencer-se do erro cometido, o presente ergueu o olhar, e fitou cada um dos irmãos, enxergando em seus rostos traços dele mesmo, e levantou uma mão, e logo em seguida a outra, em sincero convite para que o acompanhassem.
O futuro olhou para o passado, e o passado fitou o presente, e os três se uniram novamente, cansados, mas felizes pela nova perspectiva que lhes fora apresentada pelo tempo. E assim seus passos ecoaram pelo universo, a princípio lentos, e depois rápidos o suficiente para alcançar o próprio tempo, que fitou a cada um com um sorriso nos lábios jovens e antigos, impulsionando novamente a roda da existência, que voltou a girar em sua plenitude, fazendo a vida, as cores e os sons espalharam-se uma vez mais pelo universo que morria, vivia, e nascia novamente, tudo no mesmo instante, a cada passo que davam em sua eterna jornada.
Qual o valor?
Qual o valor de um sorriso? Qual o preço de uma lágrima?
As perguntas ecoavam insistentemente em sua cabeça enquanto ele observava a si mesmo, parado, diante de um espelho, ouvindo nada mais que o som do silêncio que reinava soberano naquele pequeno e solitário camarim.
A noite tinha sido mágica, como a maior parte das noites em que se apresentava, e o som dos aplausos e das gargalhadas ribombava nas memórias de momentos que haviam acontecido minutos antes, mas que naquela solidão pareciam ter ocorrido anos atrás, e talvez por isso que o som do silêncio parecesse tão ensurdecedor aos seus ouvidos. Era como se o nada berrasse ao seu lado, fazendo com que aquele grito reverberasse em ecos contínuos, que pareciam não ter fim.
A noite tinha sido mágica, mas a magia chegara ao fim, e agora ele tinha de lidar com a realidade que escondia atrás das tintas que cobriam seu corpo, mas que não podiam cobrir sua alma. Calado ele fitou seu reflexo, relutante em retirar a camuflagem que tanto enganava as pessoas ao seu redor. Era como se quisesse enganar a si mesmo fitando o personagem que se punha diante de seus olhos. Mas as pessoas não podiam enxergar a sua alma embaixo daquela maquiagem, e ele sim. E aquela era a imagem da infelicidade, do medo... da solidão.
Sem tirar os olhos do espelho ele retirou a peruca encaracolada pela qual um sem número de cores se espalhavam, cores que aos seus olhos pareciam leitosas, opacas, embaçadas. Sem tirar o olhar do espelho ele levou o lenço umedecido ao rosto e lentamente o passou pela face, deixando no caminho uma marca dissonante, como uma cicatriz em um rosto perfeito. A marca de seu verdadeiro eu.
Lentamente ele limpou a tinta alva com a qual escondia dos outros sua tristeza, e aos poucos foi se reconhecendo em todos os seus traços, em todas as suas características, em todas as suas frustrações e infelicidades. A cada traço de tinta que limpava um pouco mais dele era revelado, e um pouco mais dos aplausos e gargalhadas parecia desvanecer-se, perdendo-se no limbo de sua mente.
Quando acabou viu apenas a figura triste e desolada de um homem só, com cabelos desgrenhados que lhe caíam sobre o rosto, com a pele ainda pálida por causa dos últimos resquícios da tinta que retirara, e com uma boca exageradamente vermelha, que sorria para o espelho um riso falso e fingido, um refugo de realidade, uma mentira que ele contava para os outros, mas que era impossível contar para si mesmo.
Um palhaço que fazia todos rirem, menos a si mesmo. Um palhaço que arrancava gargalhadas dos demais, mas que de seu interior não conseguia arrancar nada mais que lágrimas. Uma piada, hilária para todos, mas sem graça alguma em sua própria realidade. Olhou novamente para aquele sorriso, falso, simulado, fingido, que parecia zombar de sua tristeza, que parecia destacar sua solidão. Era como olhar para um quadro onde se estendia uma praia paradisíaca.
Se desejava estar lá, se ansiava por estar lá, mas nada passaria de uma mera vontade que provavelmente jamais seria atendida, pois o quadro era apenas um simulacro de uma realidade que estava muito além de seu alcance. Era ele mesmo uma pintura, uma tela fria onde tintas se espalhavam, e mais nada. Um retrato de algo que poderia ser, mas que não era. Um desejo remoto, e nada mais.
Com o silêncio urrando em seus ouvidos e a solidão fustigando o seu peito ele passou o lenço pelos lábios, enchendo de rubro o branco antes límpido do tecido frio, transformando aquele sorriso falso no que de fato ele era, uma representação grotesca do que sentia por dentro. Um sorriso deformado, mentiroso, que parecia escarnecer dele, lembrando-o quem de fato ele era, e o que verdadeiramente sentia.
Uma lágrima caiu, teimosa, fugitiva, correndo em busca da liberdade, ansiando por livrar-se daquele calabouço de tristeza que era o peito daquele homem de olhar desolado e perdido. A lágrima que escorreu lembrou-lhe a máscara do Pierrot, mas antes fosse ela de fato uma representação, uma pintura de um personagem alusivo à solidão dos carnavais, uma maquiagem triste que escondia por detrás alguém com ao menos um átimo de felicidade.
Mas aquela não era a verdade. A lágrima que escorrera não era uma pintura. Não era de tinta, não era de faz de conta. O seu conto era de realidade, e o líquido que fugia de seu olhar desolado limpava a maquiagem que usava para esconder dos outros a tristeza que o assolava. Antes fosse Pierrot. Antes a sua infelicidade durasse apenas um carnaval, mas não. A sua tristeza se estendia pelo ano inteiro, sem tempo para feriados ou fins de semana. Perseguindo-o pelos dias e pelas noites, mesmo quando usava sua máscara de fingimento, porque os outros não podiam ver sua alma, mas ele sim.
Os outros. Aqueles rostos estranhos, que se perdiam em meio à escuridão da arquibancada enquanto ele brilhava sob os holofotes. Aquela plateia indistinta, de onde só conseguia identificar o som das gargalhadas que ecoavam em sua mente até serem emudecidas pelos gritos do som do silêncio de sua solidão. Aquele povo que pagava para vê-lo, e para que ele os fizesse sorrir.
“Qual o valor de um sorriso? E qual o preço de uma lágrima?” Perguntou para o homem que o encarava do outro lado do espelho, sem obter nada além de um olhar perdido e um rosto inexpressivo. Aquelas pessoas pagavam caro para rir de suas peripécias, mas será que pagariam para ver uma de suas lágrimas? Apenas uma? E que preço pagariam, se ousassem enxergar o rosto triste por detrás da maquiagem? Será que se o vissem em sua realidade ainda o buscariam, ou se afastariam, como as pessoas de seu convívio tinham feito? Qual o preço de uma lágrima? Será que é mais caro que o valor de um sorriso?
Ele não sabia dizer, pois tinha esquecido. Esquecera de como era sorrir de verdade, porque para ele, aquilo agora não passava de faz de conta. Era ele a piada. Mas uma piada sem graça. Um roteiro sem conteúdo. Um personagem sem uma história para contar. Fazia os outros sorrirem, mas por dentro apenas chorava.
Porque estava só. Porque carregava em seu peito suas próprias frustrações, e não as dividia com ninguém. Porque as escondia atrás de uma máscara, só as revelando para si mesmo, e assim ficava sozinho, e assim permanecia desolado. Afastara aqueles que dele eram próximos. Tinham se distanciado, impacientes com suas atitudes, irritados com seu isolamento. Enxergavam apenas seus atos, que na verdadeira eram um pedido de socorro, oculto, escondido, velado, como a sua verdadeira face por trás da maquiagem de palhaço.
“Que infame joguete nós somos”, dizia para seu reflexo pálido e abatido. “Que paradoxo de mau gosto nos tornamos. Um homem que leva os milhares às gargalhadas, mas que não consegue arrancar de si mesmo o mais singelo sorriso. Que artista esplêndido, e que pessoa miserável.”
Batidas ocas na porta o arrancaram de sua introspecção, e ajeitando o roupão ele levantou-se para ver quem era.
Ao abrir a porta deparou-se com o olhar de espanto de uma mulher, com não mais que seus trinta anos, acompanhada de um garotinho de olhos brilhantes, que pareceu ridiculamente confuso ao olhar para ele. Queriam saber onde estava o palhaço. Não o homem por trás da maquiagem, não o ser solitário e triste. Queriam a máscara, a fantasia, a ilusão. Não podia culpa-los, acaso fosse ele do outro lado, também ia querer a mesma coisa.
Pediu à mulher de olhar confuso que aguardasse um pouco, o palhaço logo estaria lá. Fechou a porta, encostando desolado a testa na superfície fria de madeira, enquanto respirava fundo para virar-se e ter de lidar com a imagem que veria diante do espelho. Então virou-se, e resignado caminhou até o balcão, onde sentou-se e começou recriar a falsa imagem com a qual enganava a todos, menos a si mesmo.
Enquanto pintava lentamente o rosto, um lágrima caiu, deixando-o incrivelmente parecido com o Pierrot dos carnavais. Mas não era Pierrot. Era apenas ele, um homem solitário, com duas perguntas ecoando em sua mente.
Qual o valor de um sorriso? Qual o preço de uma lágrima?
A Menina da Carteira da Frente
O sino tocou, e seu som estridente ressoou incômodo e insistente pelos corredores largos e até então silenciosos, dando início a um coro de algazarra e animação que tomou conta de todo o ambiente, adentrando os ouvidos dos mais desatentos enquanto neles causava um sobressalto repentino por causa de toda aquela gritaria, marcando a hora do intervalo que finalmente chegara.
O barulho de pés batendo ruidosamente no chão e das carteiras sendo arrastadas pelo piso indicava a pressa daquele sem número de crianças em deixar o mais rápido possível o recinto onde tinham passado metade da manhã, aborrecidas e impacientes, para correrem em claro desatino em direção ao pátio, à quadra, ou ao local secreto de um ou outro precoce casal de namorados, onde trocariam beijos no rosto e juras de um amor que duraria até o fim dos tempos.
Mas como em todas as regras existentes no mundo, havia ali uma exceção, discreta silenciosa, quase imperceptível. O garoto magro e tímido que sentava em um recanto da sala, para quem a hora do intervalo era apenas mais um momento para resguardar-se silenciosamente em um local discreto, desejando não ser notado em razão da insegurança que sentia quando partilhava o mesmo ambiente com as outras crianças.
Com toda sua timidez e insegurança, ele não tinha coragem de interagir com os demais, e a todo momento buscava cobrir-se com sua discrição, que fora o mais perto que conseguira chegar de uma emulação de um manto de invisibilidade, e por isso encolhia-se em seu lugar quando os professores resolviam consultar os alunos sobre algum ponto do conteúdo passado, ou mesmo quando algum colega chegava mais perto para fazer-lhe alguma pergunta boba e despropositada, daquelas que apenas as crianças conseguem fazer.
Mas se havia algo que mexia ainda mais com ele, deixando-o completamente sem reação, perdido em um labirinto de confusão e nervosismo enquanto sentia a barriga vazia e o coração indo à boca, era a garota da carteira da frente. E como era linda a garota da carteira da frente.
Era ela, naquela época, a razão de sua calmaria e também de seu nervosismo. Era ela quem prendia sua atenção o suficiente para que esquecesse até mesmo das temerosas perguntas dos professores, que poderiam faze-lo gaguejar e virar motivo de piada entre os seus colegas. Era ela que aprisionava seu olhar, enquanto ele fitava atentamente cada detalhe de seus cabelos castanhos e brilhantes, presos em um impecável rabo de cavalo que destacava a pele branca e lisa de sua nuca, e o pequeno e discreto sinal que ali havia.
Mas era apenas daquele ângulo que o menino podia olhar para ela sem que sentisse as pernas tremendo e a boca secando, porque se o fizesse de frente corria o risco de parar estagnado e sem reação diante de quem considerava a pessoa mais bela que já vira na vida. E sabia daquilo porque já tinha passado por aquela situação quando fora pego em um dos inúmeros episódios em que estivera hipnotizado por aquele característico rabo de cavalo que tanto prendia sua atenção.
Fora em uma manhã como aquela que ela se virou de repente, perguntando-lhe com uma naturalidade encantadora se ele tinha uma borracha para lhe emprestar. Os olhos dela brilhavam, olhos puxados e escuros, olhos que sorriam e aprisionavam sua atenção. As palavras tinham saído de sua boca pequena e rosada em um timbre que o fez pensar de imediato que aquele era o som mais bonito que já tinha ouvido na vida.
Mas tão parvo ficou com aquela abordagem repentina que não teve condições de discernir o significado das palavras, e quando ela sorriu diante de sua expressão abobalhada ele deu-se conta do quão idiota deveria estar parecendo, e com o rubor subindo violentamente pelas faces procurou com dedos trêmulos e desajeitados a borracha que guardava no estojo, conseguindo apenas derrubar o caderno, o livro e os lápis que estavam em cima da carteira, causando um baque ruidoso que chamou a atenção de todos na sala, que fizeram algo que o deixava mais desconfortável do que qualquer outra coisa, riram enquanto olhavam para ele. Riram dele.
Ainda nervoso ele conseguiu retirar a borracha do estojo e a entregou rapidamente à garota que o fitava atentamente, mas não atreveu-se a olhar diretamente em seus olhos, temendo sentir o resto de coragem deixando-lhe o corpo acaso o fizesse. Seu desconforto naquele momento só não foi maior porque depois a menina virou-se novamente, sorriu e agradeceu-lhe pela borracha, tocando levemente seus dedos quando a devolveu, o que lhe causou um choque de torpor e êxtase, ficando marcado naquela pequena galeria de momentos inesquecíveis que guardamos na memória.
Enquanto as crianças deixavam apressadamente a sala ele permaneceu em silêncio por um momento, fitando de longe a garota que aprisionara sua atenção, deixando o local com seu próprio grupo de amigas. Repentinamente viu-se como o único restante no silencioso recinto onde até poucos instantes ecoavam gritos de alegria e uma algazarra ensurdecedora. Mas pare ele aquilo era mais do mesmo, apenas mais um momento onde ele sentaria sozinho e calado, em um canto discreto de algum lugar escondido, para não ser visto. Para não ter que interagir com os demais.
Com o lanche nas mãos ele caminhou discretamente em direção ao pátio, passando pelos colegas que corriam avidamente atrás de uma bola, passando pelas aglomerações formadas por pequenos círculos de crianças, onde alguns trocavam figurinhas, alguns olhavam revistas em quadrinhos e outros conversavam sobre assuntos sem importância, e no trajeto para o seu refúgio diário, onde podia ocultar-se em paz ele passou também pela garota da carteira da frente, e ao vê-la, subitamente baixou o olhar, fitando o chão enquanto passava por ela, nervoso e inseguro, sem ver que ela o olhara de volta, com um sorriso discreto nos lábios, que logo fora substituído por um olhar desolado por causa da reação do menino.
E assim os dias passavam para aquele garoto. Dias em que se escondia, dias em que se ocultava, dias em que se encolhia diante dos demais. Esses dias passaram, um após o outro, e o garoto cresceu, lentamente ganhando confiança, lentamente deixando de diminuir-se sempre que era olhado por seus pares. Os dias passaram, a menina da carteira da frente mudou de escola, e ele nunca mais a viu, mas também jamais a esqueceu. Fora seu primeiro amor. Platônico, silencioso, oculto de todos no mundo, mas ainda assim fora seu primeiro amor.
O garoto cresceu, mudou, e deixou a insegurança no mesmo local de onde vinham as lembranças... no passado. Casou, teve filhos, se destacou no que escolhera para fazer, e por essas idas e vindas do destino concluiu em conjunto com a esposa que aquele “para sempre” que tanto tinham repetido um para o outro em seus momentos de intimidade não eram realmente “para sempre”, e assim decidiram tomar rumos diferentes na vida.
Mas naquela manhã nada disso importava para ele. Naquela manhã ele fitava calmamente aquela sala silenciosa e vazia em que estudara em um passado que agora parecia ter acontecido em outra vida. Era um sábado ensolarado, onde um daqueles pequenos coleguinhas que ele tivera resolvera marcar uma reunião com os alunos daquela época, encontrando a todos, inclusive ele, o mais calado, para convidá-los a um resgate, ainda que momentâneo, de um passado onde a vida parecia ter sido mais simples.
Além dele mesmo, algumas coisas tinham mudado. As paredes ostentavam uma nova cor, o quadro, antes de giz, fora substituído por um branco, de pincel, e a sala parecia ser menor do que era em suas lembranças. E as carteiras, essas também tinha sido trocadas, mas o lugar onde ele se sentara não tinha sido esquecido, e nem o que ela escolhera para sentar-se. Parado na porta, de braços cruzados e encostado levemente à parede fria ele lembrou-se das horas que passara imaginando como seria se um dia tivesse coragem de declarar o seu amor à menina que tanto roubara sua atenção.
- Eu sentava ali, naquele canto junto à parede. – Uma voz soou repentinamente atrás dele, causando-lhe um sobressalto.
- Eu tamb... – Começou a dizer, enquanto se virava para a pessoa que lhe dirigira a palavra, mas parou de repente, tomado de surpresa ao ver aquele olhar que parecia repentinamente ter saído do quarto oculto de suas memórias. Não havia como se enganar, não com aqueles olhos, não com aquela pele branca e lisa, e muito menos com aqueles cabelos castanhos, que ainda brilhavam, mesmo que já tomados por um ou outro fio branco.
Era ela, a menina da carteira da frente, que crescera para se tornar uma mulher tão bela quanto a garota cuja imagem ficara guardada em suas lembranças.
- Eu também... - Disse ele, ciente do quão lenta e arrastada saíra sua voz.
- Eu sei. – Ela sorriu, e aquilo pareceu parar o tempo, fazendo com que presente e passado se fundissem em um só momento. – Você é o garoto que não falava com ninguém.
Sentindo o rubor tomando suas faces ele deu um sorriso amarelo, e desviou momentaneamente o olhar para o chão. Mas daquela vez ele não o manteve ali, e encarou a mulher diante dele, respondendo, com a resolução estampada na voz.
- Sim. Era eu. O garoto que não falava com ninguém. – E sorriu para ela. Mas daquela vez o gesto não saiu acanhado.
- Mas agora está falando. Parece que o tempo muda mesmo as pessoas.
- Muda algumas, mas outras permanecem do mesmo jeito. – Acabou dizendo em voz alta o que sentia. Que apesar de crescida ela ainda era tão bonita quanto fora no passado.
Os dois se apresentaram, e depois de falarem sobre os detalhes daquela sala e sobre os professores que um dia tinham cruzado seus caminhos, eles caminharam pelos corredores, conversando e sorrindo, contando as histórias dos rumos que suas vidas tinham tomado. Ele, impressionado com a naturalidade de sua beleza, e ela com o quanto aquele garoto tímido e calado tinha mudado.
- Posso confessar uma coisa? – Ela perguntou, depois de esgotarem todos os tópicos que tinham conseguido lembrar enquanto conversavam.
- Claro. Pode sim.
- Você foi meu primeiro amor platônico.
As palavras soaram embaralhadas e sem sentido em seus ouvidos, da mesma forma que tinham soado em um dia que ficara no passado, onde uma bela garota perguntara a um menino inseguro se ele tinha uma borracha para lhe emprestar.
- Como? – Foi tudo o que ele conseguiu dizer.
- Você foi meu primeiro amor platônico. Mas eu nunca tive coragem de dizer a ninguém. Sempre que te olhava você desviava os olhos, e não falava comigo, mesmo tendo passado um ano inteiro sentado atrás de mim. Cheguei até a pensar que não me suportava.
As palavras entraram por seus ouvidos uma a uma, dando uma volta inteira em sua mente para poderem ser distinguidas e guardadas, e a cada uma delas seu coração parecia bater mais forte. Então ele ficou ciente que deveria estar fazendo naquele momento a mesma cara de idiota que fizera no dia em que a menina lhe pedira a borracha emprestada, mas daquela vez não atrapalhou-se, não sentiu o vazio na barriga e nem a boca seca.
Então lembrou-se do garoto que fora tímido e inseguro, e recordou-se da conclusão a que chegara com o passar dos anos, e que o fizera mudar de comportamento, a de que nunca tivera motivo para sentir-se daquela forma. E pensou consigo mesmo na quantidade de oportunidades que alguém pode chegar a perder, não pelo modo como os outros o enxergam, mas pela forma que alguém enxerga a si mesmo.
“Só que sempre há tempo para mudar”, repetiu em pensamento, concluindo aquele raciocínio, e sorriu para aquela bela mulher, que voltara de seu passado, surgindo em seu presente para com ele compartilhar o futuro, pois com ela acabou se casando posteriormente.
Sempre há tempo para mudar.
Sempre há tempo para falar com a garota da carteira da frente.
Amor de Verão
Seus pés roçavam na areia macia e molhada conforme caminhava, sentindo a sensação de frescor trazida pelas ondas, que tocavam sua pele em um último suspiro de espuma, enquanto recuavam para começar novamente a eterna dança da maré. Acima de sua cabeça o sol da tarde brilhava imponente, em um céu azul sem nuvens, jogando sobre ele o calor que era amainado pela brisa marítima vinda do oceano, que naquele dia cintilava em um tom de jade, enquanto o inconfundível cheiro do mar adentrava em suas narinas, trazendo-lhe uma sensação reconfortante de acolhida e descanso.
A praia estava vazia naquela tarde, dando-lhe a impressão de que ele era a única pessoa que ainda existia no mundo, partilhando de todo aquele espaço junto com a natureza. Mas até poucos dias antes o cenário era inteiramente diferente. Jovens, adultos, crianças e idosos dividiam aquele mesmo espaço, jogando, caminhando, passeando de mãos dadas enquanto a brisa do mar acariciava suas faces e seus cabelos. Pessoas que se espalhavam em tamanha quantidade que pareciam confundir-se com os numerosos grãos da areia da praia.
Mas o verão estava no fim, e com ele aquelas pessoas tinham ido embora, esvaziando aquelas paragens, as barracas antes lotadas e as cadeiras e sombrinhas de infinitas matizes que coloriam ainda mais aquele ambiente já tão rico de cores. Agora eram só ele, o mar e uma ou outra pessoa que vagava por aquela areia, talvez dividindo os mesmos pensamentos que agora passavam por sua cabeça. Memórias de uma época que vivera, e que em sua mente agora parecia mágica.
Lembranças de um verão. Das cores, das sensações, dos sabores, sorrisos, loucuras e devaneios, e principalmente, as lembranças de um amor. Enquanto caminhava, observando as casas agora fechadas e vazias, ele sentia uma espécie de nostalgia a tomar-lhe conforme as memórias surgiam e faziam com que viajasse no tempo para dias anteriores, onde vivera algo que nunca tinha experimentado antes.
Ainda era jovem, mas em seus tenros dezesseis anos ele já tinha alguma experiência de vida. Já tivera namoradas na escola e mesmo na rua onde morava, mas tudo não tinha passado de aventuras que não tiveram a força necessária para ocupar um lugar que sobreviveria ao tempo nos recônditos de seu coração. O antes não passara de um atendimento, uma justificativa ao chamado do corpo que efervescia em uma explosão de hormônios. Mas naquele verão tudo mudara. Naquele verão tudo fora diferente, e agora ele olhava o mundo sob outra perspectiva, como se uma fase tivesse sido vencida, e ele estivesse em outro patamar de sua vida. Daquela vez ele vivera um amor de verdade. Um amor de verão.
O som suave das ondas chegava aos seus ouvidos como uma música acalentadora, mas que ao mesmo tempo trazia uma lembrança que no fundo era um pouco dolorosa. Porque dolorosa era lembrança do amor que fora embora, e o vazio que vinha acompanhado das boas lembranças. A saudade era um paradoxo, trazia prazer, alegria e satisfação, mas também podia ferir com a recordação de quem não estava mais ali, e com a vontade de reviver o que fora tão bom que ficara marcado, como uma borboleta que surgira bela e voara, mas tivera um tempo curto de vida. Fora eterno enquanto durara, mas breve em sua existência.
Caminhou mais um pouco, absorto em pensamentos, sorrindo por dentro, pelos momentos que vivera, mas ao mesmo tempo entristecido, pois sabia que chegara ao fim. O final das coisas boas sempre tem um sabor agridoce, gostoso pelo que se viveu, e amargo por saber que o que foi vivido já deu seu último suspiro. Conforme andava suas pegadas ficavam marcadas na areia macia, para logo em seguida serem tragadas pelo mar, com a mesma rapidez com que o tempo tragas nossas horas de alegria, apagando-as do presente para deixa-las em um campo que só pode ser visitado em nossos pensamentos.
Mas os pensamentos não podem ser tocados, beijados ou acariciados, e o passado não pode ser revivido, mas apenas relembrado, como um expectador que assiste a um filme reproduzido em uma tela fria, sem poder interagir com os demais personagens, mas apenas ver o que foi feito, observar o que passou, e ansiar por estar dentro daquele filme.
Era assim que o jovem se sentia, completo, mas ao mesmo tempo vazio. Alegre, mas ao mesmo tempo triste, satisfeito pelo que vivera, e ao mesmo tempo insatisfeito por tê-lo vivido tão brevemente. Distraído por desejos, lembranças e pensamentos ele não se deu conta de ter se distanciado brevemente do mar, dirigindo-se a um monte de areia branca e fina, ao lado de um veleiro abandonado.
Ali ele sentou-se e ao mesmo tempo em que sorriu ao lembrar o significado daquele lugar, sentiu também um vazio tomando-lhe um estômago, como se um sensação de queda se formasse, como se repentinamente percebesse que algo lhe faltava por dentro. Lhe faltava o beijo que ali dera, o abraço que ali o envolvera, e o doce cheiro do perfume dos cabelos dela, que tinham roçado em seu nariz levados pela brisa do mar, inundando-lhe o ser com o êxtase daquele momento.
Naquela primeira noite a vida parecera ter pintado uma obra de arte, onde ele fazia parte de um quadro cheio de completude, em que tudo parecia se encaixar com perfeição. A lua brilhava no céu, tal qual um medalhão dourado, traçando no mar escuro um caminho que cintilava, uma estrada que parecia convidar ao paraíso para quem se aventurasse a nela caminhar.
À sua frente o oceano cantava uma melodia que parecia ter vindo das profundezas do tempo, ecoando em seus ouvidos e hipnotizando seus sentidos já turvados com a beleza daquela moça que conhecera naquele verão. Sob o tapete estrelado que se estendia no céu em direção ao infinito os olhos dela brilhavam, olhando para ele com um sorriso no rosto que parecia dizer que a eternidade era ali, e que ali estava a plenitude.
E o beijo. Ah, aquele beijo que se grudara em sua boca, em seu peito, em sua mente e em seu coração, e que o seguiria tal qual a lua segue um andarilho em uma noite sem estrelas. Ele jamais esqueceria aquele beijo. Nem que tentasse mil vezes, jamais se esconderia daquele momento, que agora sabia, o alegraria e entristeceria por todos os dias em que dele lembrasse, até o fim de seus dias.
Ali, parado, sozinho naquela tarde em que ele mesmo iria embora, fitou uma vez mais o mar cor de jade, a praia onde os ecos das lembranças voavam em idas e vindas, a areia branca e fina, as casas agora vazias e o veleiro abandonado ao lado do lugar onde a beijara, e respirou fundo, carregando em seu peito um turbilhão de sentimentos causados pelo paradoxo que é o amor, e resignado partiu, ciente de que nada seria o mesmo dali em diante.
Depois daquele dia o tempo passou, as ondas foram e vieram no eterno balé de suas partidas e chegadas, a lua mudou infinitas vezes assistida pelas estrelas que continuavam a brilhar na silenciosa infinitude do alto, e aquelas areias foram tocadas por outros pés, por outras mãos, por outros corpos, e outros beijos ali foram dados, abraços trocados e amores vividos.
Com o passar dos anos ele voltou ali por diversas vezes, carregando a cada nova visita uma nova marca na pele, um prateado a mais em seus cabelos que começavam a rarear, e novos amores que ele conhecera em sua caminhada. Mas nenhum deles fora como aquele, que agora ele só podia rever nos filmes de sua mente. Nunca mais amara alguém como amara naquela época, porque a primeira vez é também a última, jamais podendo ser repetida novamente, e em sua memória levava aquele amor de verão, que jamais deixaria de existir.
Porque um amor de verão dura apenas um mês, mas permanece para sempre no coração.
Prisioneira de si mesma
Dizem os mais antigos que houvera naquele vilarejo uma moça bela, uma mulher cuja beleza ultrapassava o significado da própria palavra, sendo demais para ser definida por qualquer adjetivo presente nas línguas inventadas pelos homens. Uma mulher que era tão magnífica que acanhava a própria poesia, que cabisbaixa saía de sua presença por considerar-se por demais indigna de direcionar àquela jovem qualquer estrofe, mesmo que fosse a mais apurada.
Ciente de sua beleza a jovem passava horas de seu dia admirando a própria imagem, retocando-a, maquiando-se em frente ao espelho e fitando aquele que se tornara o centro de sua obsessão, o foco de sua atenção e o destinatário de todo o amor que seu coração tinha a oferecer, o próprio reflexo, e com um gesto que considerava como uma forma de altruísmo, ela abria a janela de sua casa para mostrar ao mundo a maravilha de seus traços e contornos, sorrindo ao vislumbrar os olhares de espanto e admiração daqueles pobres habitantes, que a olhavam como olhavam o sol que surgia por detrás dos montes.
Admirados com a beleza da jovem os habitantes do vilarejo a cantavam aos quatro cantos, e as palavras proferidas por suas bocas ecoaram pelo mundo, carregadas pelo vento que sorria em meio a devaneios, tentando imaginar em sua mente veloz como seria a imagem daquela bela moça.
As notícias se espalharam, e homens de todas as paragens acorreram, já enamorados da descrição espalhada pelo mundo, e para o vilarejo se dirigiram com os corações acelerados e esperançosos de conquistar o amor daquela jovem cuja perfeição de sua beleza já era cantada em todos os lugares.
Um atrás do outro eles fizeram fila, batendo à porta daquela moça em busca de sua aceitação. Mas um após do outro eles foram recusados, e os que partiam carregavam no peito um coração tomado de tristeza por terem visto a perfeição, sem poder, no entanto, toca-la ou leva-la com eles.
De outro lado a jovem se aborrecia, pois não encontrava ninguém que achasse digno de recebe-la, de poder olha-la todos os dias de perto, de tocar sua pele lisa e sedosa e de se perder naqueles olhos hipnotizantes. Achava que eles não eram dignos de ter o que ela tinha, a oportunidade de ver de perto e adorar aquela imagem de magnificência, como ela mesma fazia todos os dias, por horas a fio.
Homens de várias estirpes, classes e raças a ela se apresentaram, e um por um foram recusados. Ora era belo, entretanto, pobre, ora era rico, entretanto, feio. Uns eram calvos demais, outros cabeludos em excesso. Alguns muito claros, outros muito escuros, e os demais apáticos e sem cor. Magros, gordos, rechonchudos e robustos, todos caíam diante da recusa da moça, como peças de um dominó, que tombam uma após a outra, até não sobrar nenhuma à sua frente.
Para ela nenhum bastava. Nenhum era suficiente. Nenhum era digno. E assim fechava a porta, a janela, e voltava a admirar-se em frente ao espelho, olhando apaixonada o próprio reflexo, enamorada de si mesma, como um dia um belo jovem fizera nas margens de um lago, até ser tragado e ter a vida ceifada pela própria vaidade que o consumiu.
E assim o tempo passou. O incansável e implacável senhor das horas, dos dias, dos anos. E as décadas correram com a velocidade do pensamento, tão rápidas como um piscar de olhos diante de uma luz ofuscante. Mas a luz de sua beleza já não ofuscava mais. A pele, antes sedosa, criara vincos, traços profundos que as décadas ali colocaram, onde antes só havia perfeição retilínea.
Os olhos se tornaram opacos, sem brilho, sem a cor que outrora tinham ostentado. As formas, antes curvilíneas e destacadas perderam a robustez, o viço da juventude, e cederam diante da ação daquele que engole as eras com uma fome avassaladora e voraz, que se estende pela eternidade. Sua beleza se exauriu, e a moça que um dia fora bela permaneceu na companhia da única pessoa que elegera para repartir os seus dias, ela mesma.
Mas agora, o motivo, a razão de sua paixão por si própria havia desaparecido, e tal qual um amante decepcionado com sua cara metade, o encanto tinha ido embora, fazendo com que o sentimento antes avassalador se tornasse apenas uma luz bruxuleante, um débil resquício do brilho que um dia tivera. E agora, ela acorria para a janela, mas ninguém lá fora parava para olha-la. Em sua porta já não havia pretendentes para corteja-la, tentando desesperadamente obter uma fração de sua atenção.
E seu espelho, que antes fora seu maior companheiro, estava agora relegado a um canto do quarto silencioso, coberto por um lençol empoeirado, para que ela mantivesse a ilusão de que a beleza de sua juventude ali ainda permanecia, mesmo sabendo que aquilo era uma mera fuga da realidade que a ela falava com uma voz fria e cortante.
E então ela soube, com a sabedoria que apenas o tempo trás, que nunca amara a si mesma, mas apenas uma capa, uma superfície, uma cobertura que escondia o que era por dentro, e o que poderia ter sido com o passar dos anos. Porque ainda que tivesse escolhido permanecer sozinha, evitando os pretendentes que a ela acorriam, ao menos teria visto quem de fato era, e teria amado sua substância ao invés de ter se apegado à sua casca, tornando-se uma pessoa fútil e prisioneira de algo que inevitavelmente iria findar.
Assim soube que, ao invés de amar quem ela era de verdade, optou por amar a si mesma, se perdendo em sua própria vaidade.
Partidas e chegadas
O pôr do sol de sua vida se aproximava, enquanto caminhava para o seu fim com passos trôpegos e cansados. No corpo gasto e curvado ele sentia o peso da idade a lhe arquear os ombros exaustos de uma jornada que lhe exaurira demasiadamente o corpo e a mente. Mas o final estava próximo, e o crepúsculo de seus dias parecia aumentar diante de seus olhos abatidos a cada metro vencido, a cada segundo passado.
No caminho ele via os rostos dos que tinham passado em sua vida, desde o seu celebrado nascimento, até o seu esperado fim. Alguns sorriam, outros choravam, outros o fitavam de soslaio, com o repúdio expresso no olhar, torcendo para que ele partisse de uma vez por todas, deixando para trás apenas a lembrança de sua existência.
Na memória, levava uma bagagem de recordações do que presenciara na estrada que percorrera, dos sofrimentos que vira, das alegrias que compartilhara, dos acertos, dos erros, das celebrações e dos arrependimentos, levando no corpo e na mente as marcas de cada um daqueles momentos, fossem os tristes, fossem os felizes, porque de todos participara, e a todos vivenciara.
Cansado e abatido, exausto do esforço hercúleo empreendido em percorrer um caminho onde se deparara com todo o tipo de agruras, mas também com toda sorte de felicidades, ele seguia em direção ao seu fim, porque era o que tinha de fazer. Para aquilo nascera, para aquilo vivera, e aquilo faria até que a última de suas forças cessasse, e o derradeiro suspiro fosse dado em sua existência, repetindo o que seus ancestrais tinham feito antes de seu nascimento.
Lembrou-se do dia em que surgira. Da alegria expressa com sua chegada, das expectativas, das esperanças, dos olhares daqueles que acreditavam que o melhor havia chegado. Com o tempo alguns deles tinham partido, outros já não sorriam, e muitos já não acreditavam mais nele, e agora, tudo o que restava era concluir sua jornada para tornar-se apenas uma memória guardada, como um livro velho que acumula poeira na estante, sendo raras vezes visitado, ou sequer visualizado por aqueles que passam ocupados demais com o dia de amanhã para lembrar-se do que foi o ontem.
Lembrou-se então do rosto enrugado, do olhar cansado e do corpo curvado daquele que viera antes dele, e à época não compreendera o que tudo aquilo significava, e nem soubera encontrar o significado dos olhares e expressões daqueles que olhavam para seu antecessor com desgosto e decepção, celebrando com sorrisos nos rosto sua tão esperada partida. Mas agora ele entendia, e da mesma forma que aquelas pessoas, ele também almejava o fim que se avizinhava, que traria o tão almejado descanso.
Mas sua bagagem não era composta apenas de tristezas e sofrimento. Muito havia a celebrar, muito havia a recordar com um sorriso de felicidade estampado no rosto, e ainda havia tempo, mesmo às portas de sua partida, para ver e ouvir as risadas ecoando pelo mundo, celebrando sua vida, que por muitos seria relembrada e narrada com contentamento com o passar do tempo.
Fora uma vida longa, e ao mesmo tempo curta. Trezentos e sessenta e cinco dias que haviam passado com a velocidade de um raio, e com a lentidão de uma folha preguiçosamente carregada pelo vento. Eventos, experiências, nascimentos e mortes, casamentos, separações, lágrimas e sorrisos, derrotas e vitórias, tudo ele levava em sua memória, e tudo carregava em seus ombros curvados, em seu rosto enrugado, em seus pés exauridos.
O sol se pôs, a noite chegou, o relógio avançou, e para o fim ele se dirigiu, com os ecos de celebração que ecoavam pelo mundo e chegavam aos seus ouvidos, festejando sua partida, e saudando o novo ano que vinha para substitui-lo. Na iminência do último badalar ele olhou para trás e viu o bebê que chegava, e viu rostos cheios de esperança e expectativa, tais quais os que ele vira no raiar de sua tão efêmera juventude.
Então deu ele mesmo um sorriso, feliz por ter cumprido sua jornada, em paz por ter concluído seu trabalho, e satisfeito, por saber que mesmo sendo lembrado como um ano ruim, ele também teria um espaço guardado em vários corações, como um tempo onde o inesquecível se fez presente, e a felicidade foi vivenciada, porque mesmo os livros que acumulam poeira nas estantes são revisitados em alguns momentos da eternidade, porque contêm em suas páginas histórias cheias de alegrias, que merecem a lembrança daqueles que leram e viveram as linhas ali grafadas.
“Adeus ano velho”, ele ouviu, e fechou os olhos para viver eternamente como uma lembrança, sem ter tempo de ouvir o desejo que ecoava pelo mundo...
Feliz Ano Novo.
O presente
Lá fora a noite caía lentamente, apagando do horizonte os últimos raios de sol que insistiam em morrer no ocaso, e alternando o tom púrpura do fim de tarde para o azul escurecido que precede o céu noturno. Em alguns pontos as primeiras estrelas surgiam, dando início ao que dentro em pouco seria um tapete de pontos brilhantes que se espalhariam pelo infinito firmamento.
Nas ruas, as primeiras luzes também começavam a ser acesas, substituindo a concisa iluminação natural do sol pela débil e incompleta iluminação artificial do homem. Mas naquela época as noites brilhavam mais do que de costume, porque era tempo de decorações espalhadas pelas ruas, postes, árvores e fachadas de casas e prédios, onde lâmpadas e mais lâmpadas das mais diversas formas e tonalidades eram organizadas em sequência, formando figuras, imagens e mosaicos com os mais diversos cenários.
Aqui e ali viam-se pinheiros formados por inúmeros pontos de luz verdes, representando brilhantes árvores de natal. De outro lado, papais noéis e pequenos elfos resplandeciam em meio a um trenó sequenciado com incontáveis lâmpadas, e aquelas imagens se repetiam, variando apenas de forma ou posição, para onde quer que se olhasse. Era natal, e o mundo brilhava com a expectativa de presentes, reconciliações e um ano melhor, que já batia à porta para tomar o lugar do que acabava de passar.
Mas onde ele estava não havia brilho, não havia luzes se espalhando como um exército de vagalumes, e muito menos havia expectativa de presentes e de um ano melhor que se avizinhava. Pelo contrário. Ali, onde ele estava, havia apenas penumbra, silêncio, abatimento e a certeza de que com o ano que findava, uma vida também chegava ao fim. A vida de uma das pessoas que ele mais amava.
Do alto de seus dez anos ele olhava para a cama do quarto de hospital, onde na penumbra se viam as frias luzes dos monitores que mantinham viva a pessoa que ali jazia. O silêncio era quebrado apenas pelo som do respirador, subindo e descendo em um ritmo lento e maçante, ou por um “bip” que tocava em intervalos de segundos, frio, distante e artificial. Algo sem vida, mantendo o que sobrara de alguém que um dia tivera a vida batendo no peito.
Aquele dia começara esperançoso, mas agora terminava trazendo uma sensação de perda e devastação que ele, em sua tenra idade, não conseguia assimilar. Ainda tentava digerir a notícia que o pai lhe dera no meio daquela tarde, tentando reencontrar o chão que lhe fora tirado de baixo dos pés, para conseguir apoiar-se em algo que não o deixasse cair no abismo de sofrimento que tinha se mostrado a ele nos últimos dias.
Dias antes era tudo alegria. Ele e a irmã menor brincavam em casa, já aproveitando as férias e imaginando o que o bom e velho papai noel traria em breve, enquanto o pai e a mãe sorriam com os absurdos carregados de inocência que só as crianças possuem aptidão para dizer com a felicidade estampada nas palavras.
Em sua lembrança era tudo alegria, tudo felicidade, e tudo expectativa, como sempre era em todos os anos desde que passara a conseguir guardar na estante de sua mente as memórias de sua ainda curta vida. Mas então a mãe atravessou a rua para comprar ir à farmácia enquanto ele e a irmã esperavam no carro, quando viram o reflexo de um veículo chegando em alta velocidade e lançando sua mãe no ar, fazendo com que seu corpo dançasse em movimentos estranhos e convulsivos, para logo em seguida chocar-se com o solo, causando um ruído que ele tinha certeza de que ecoaria para sempre em suas lembranças.
Depois daquilo ele via em sua cabeça apenas flashes do que se sucedera. Pessoas correndo para ajudar, a voz de sua irmã gritando estridente em seus ouvidos, as luzes da ambulância misturando-se às luzes de natal em uma paleta de cores que o tinham deixado confuso, atordoado. Logo após, recordou-se do pai percorrendo incrédulo o corredor do hospital, usando o seu característico jaleco com o qual saía de casa para dar seus plantões, e depois o corpo ferido da mãe passando por ele, ainda com marcas de sangue e sujeira da rua, direto para a mesa de cirurgia.
Desde então dias tinham se passado. Dias de espera, de expectativa, de orações dos familiares que tinham chegado e de sonhos confusos e inquietantes que tinha e que traziam à tona as imagens assustadoras do que se sucedera. E então, naquela tarde, recebera a notícia que não queria receber. O pai, com olhos marejados e a boca trêmula lhe dissera que o cérebro de sua mãe tinha parado, e que agora ela já não estava mais ali, com eles.
No começo ficou confuso. Como ela não estava mais lá se via na cama o corpo ferido da mãe, mas também a via respirando, como se estivesse dormindo? Como uma pessoa morria se o peito ainda subia e descia, mesmo com a ajuda de uma máquina e de vários tubos conectados a ela? Como ele via um corpo vivo, enquanto o pai dizia que aquela pessoa estava morta?
Custou para que entendesse o que o pai queria dizer. Custou para aceitar o que ele dissera, depois que tinha entendido a mensagem. E agora custava para acreditar que aquilo era verdade. Era vinte e quatro de dezembro, véspera de natal, e enquanto todos se arrumavam para se encontrar com as famílias, confraternizar e trocar presentes, ele estava em um quarto escuro de hospital, ao lado da cama onde jazia o corpo da mãe, que fora atropelada por um motorista bêbado, passara dias em coma, e naquela tarde tivera o diagnóstico de morte cerebral.
O pai saíra, dizendo que iria passar um tempo no repouso médico. A voz embargada, os olhos vermelhos, o rosto abatido, o corpo curvado. O menino disse que ele podia ir. Que ficaria bem, e que se precisasse chamaria alguém. Fez isso com um esforço que não soubera medir para conter o choro que queria escapar de seus olhos e sua garganta. Mesmo pequeno ele entendia a dor do pai, que além de perder quem amava, não pudera fazer nada para impedir aquilo, e não queria trazer-lhe mais sofrimento chorando na frente dele.
A irmã fora levada por uma das tias, para descansar um pouco, para afastar-se daquele ambiente de dor. Era pequena demais para entender o que ele já tinha entendido, mas ainda não tinha aceitado. Pensou em como tinham brincado dias antes, e em como jamais brincariam novamente depois do que acontecera. Pensou em como os dias nunca mais seriam da forma que tinham sido até então.
Era vinte e quatro de dezembro, e ele estava triste, perdido, confuso e exausto, e enquanto os pensamentos desfilavam em sua mente com a velocidade do imaginário, ele foi vencido pelo cansaço e dormiu, caindo num sono pesado e sem sonhos.
Acordou repentinamente, com um dos “bips” que soavam da máquina, frios, artificiais, sem vida. Mexeu-se na poltrona do quarto, com o pescoço dolorido, e com os olhos ainda turvos das lágrimas e do sono, acionou o celular e viu os números lentamente juntarem-se no visor. Eram mais de meia noite. Era natal. Confuso ele olhou para a cama, e teve um sobressalto, segurando por pouco o grito de espanto que estivera prestes a sair de sua boca.
Ao lado da cama havia um homem parado, olhando para sua mãe. Silencioso e impassível ele a fitava, e depois do susto e da confusão, o menino percebeu que usava um jaleco branco, semelhante ao do seu pai. Esfregou os olhos na tentativa de ver se era ele, mas acabou concluindo tratar-se de outro médico daquele hospital. Talvez um dos que a atendera. Tinham sido tantos.
- Quem é você? – Perguntou repentinamente ao estranho, que continuava a fitar silenciosamente a mulher na cama.
- Um amigo. – Disse ele, e quando os olhos do homem pousaram nos do menino, mesmo na penumbra do quarto ele sentiu uma calma e uma confiança que não tinha sentido em momento algum desde que chegara naquele hospital.
- Você é médico? – O garoto ajeitou-se na poltrona, fitando o homem com mais interesse.
- Pode-se dizer quem sim. – Respondeu ele, dando um breve sorriso que deu ao menino a impressão de enxergar melhor na escuridão do quarto.
- Você atendeu minha mãe, não atendeu? É verdade o que meu pai disse? É verdade que ela teve essa tal de morte cerebral? – Na esperança de ter uma notícia diferente da que recebera naquela tarde, ele interrogou aquele jovem médico, esperando que de sua boca saíssem palavras confortadoras. Mas o homem apenas olhou novamente para a mulher que jazia na cama, e pareceu trazer por um momento a tristeza no olhar.
- Sim. – Disse ele, com uma voz tranquila, porém triste. – Sim, é verdade.
O menino voltou a sentir o vazio tomando-lhe por dentro, e seus olhos começaram a encher-se de lágrimas novamente, mas ele se conteve. Não queria chorar na frente daquele estranho, por mais que diante dele sentisse algo que o deixava à vontade. Abaixou a cabeça e fitou as pequenas mãos entrelaçadas, pensando no que faria dali em diante, e em como seriam seus dias.
Enquanto lutava contra as lágrimas que brotavam de seus olhos, um novo silêncio tomou o quarto onde estavam aquelas três pessoas. O médico correu a vista pelo lugar, até parar em um ponto específico. Dependurado em um dos ganchos da cama estava um crucifixo de madeira, pequeno e discreto, quase imperceptível. O homem sorriu, e olhou novamente para o menino.
- Sua mãe é religiosa?
- Era. – Corrigiu o garoto, sem tirar os olhos das mãos. – Ela sempre ia à igreja, e rezava comigo todas as noites. Meu pai não gostava muito, mas ela pedia tanto que ele acabava parando de reclamar.
- Seu pai não acredita? – A voz do homem era suave e acalentadora, e deixava o menino à vontade o suficiente para responder.
- Não. Ele nunca acreditou.
- E você? Acredita?
O menino ponderou por alguns momentos em silêncio. Nunca duvidara, apesar das inúmeras vezes em que o pai tentou explicar-lhe, nos momentos em que a mãe não estava, que toda aquela história era inventada, e que tudo era fruto da mente das pessoas que não conseguiam explicar as coisas como elas realmente eram, então tinham inventado um DEUS para dar respostas às perguntas que não sabiam como responder. Ouvira aquilo tantas vezes que as palavras acabaram ficando decoradas em sua memória. Mas mesmo assim, nunca deixara de acreditar.
- Acredito. – Respondeu ele. - E acredito que minha mãe não morreu, e que ela vai acordar logo!
Disse aquelas palavras com uma determinação com a qual jamais havia proferido outras palavras antes, e naquele momento sentiu uma estranha força crescendo dentro dele, e de fato acreditou que a mãe não tinha morrido. O médico voltou a fita-lo, e seu olhar agora estava diferente.
- Mas o seu pai disse que ela teve morte cerebral. E de acordo com a medicina, quando isso acontece as pessoas não voltam.
O menino olhou para o homem com uma segurança com a qual jamais olhara alguém na vida, e sentindo uma estranha força tomando-lhe o peito disse:
- Pois eu não acredito nisso. Minha mãe me contou várias histórias de pessoas que não tinham esperança, porque os médicos tinham dito que não tinham mais jeito, mas elas rezaram tanto que acabaram ficando boas. – Havia desafio na voz e no olhar do garoto, como se a cada palavra que dissesse, a crença nelas aumentasse mais e mais.
O médico então deixou o lugar em que estivera desde que chegara, e lentamente caminhou em direção ao menino, com passos que mal podiam ser ouvidos. Na penumbra do quarto o garoto não conseguiu distinguir seus traços com precisão, mas havia algo em seu olhar, algo diferente, como se naqueles olhos só houvesse luz. O homem então agachou-se na frente do garoto, e pegou suas mãos, e ao sentir seu toque o menino teve um espasmo.
- Você realmente acredita que sua mãe possa voltar?
- Eu... eu acredito. – Disse o garoto, com a voz trêmula, mas com o coração seguro.
- Você me lembrou algo que um homem disse há muito, muito tempo.
- O que ele disse? – O garoto tentava, sem sucesso, decifrar o rosto daquele homem.
- “Se tu podes crer, tudo é possível ao que crê”.
- Eu creio. – Respondeu o menino, depois de sentir uma necessidade crescente e incontrolável de dizer aquilo.
E o homem sorriu para ele. E mesmo no escuro, o jovem pensou ter sido aquele o sorriso mais bonito que vira na vida. O médico então envolveu seu rosto com as duas mãos, e beijou-lhe a testa. Depois, levantou-se lentamente e afastou-se, e quando saiu de perto o menino reparou em suas mãos, e ficou curioso com o que vira.
Antes que o médico saísse pela porta do quarto ele perguntou:
- O que eu faço agora?
O homem parou e virou-se novamente para o menino, e seu rosto parecia brilhar, o que deixou o garoto impressionado. Então disse, com um sorriso no rosto e uma força na voz que fez com que o coração do jovem saltasse em seu peito:
- Espere e confie.
O médico saiu pela porta do quarto, e o menino sentiu-se invadido pelo cansaço. Mas antes de deitar e fechar os olhos ele foi até a mãe, e beijou-lhe a fronte, repetindo em voz baixa no ouvido dela:
- Eu creio.
Assim que deitou-se, dormiu, caindo novamente em um sono sem sonhos.
Confuso e sem ter noção de onde estava, ele sentiu um calor passando por suas pálpebras, e o que antes era escuro passou a tomar uma tonalidade amarronzada. Apertou os olhos e fez uma careta, abrindo-os lentamente e percebendo que a luz do sol entrava por uma das aberturas da persiana que cobria a janela do quarto. Com a vista ainda turva, e um pouco desorientado, o menino pegou o celular que estava ao seu lado e olhou para o visor. Os números lentamente formaram um padrão e se uniram, marcando as sete horas da manhã do dia 25 de dezembro. Era natal.
Finalmente dando-se conta de onde estava, ele correu os olhos em direção à cama onde a mãe estivera nos últimos dias, e ao olhar para lá sentiu uma espécie de vertigem lhe tomando. Ela estava ali, deitada, como estivera desde que saíra da sala de cirurgia, mas agora estava olhando para ele, e sorria, da mesma forma que sorrira quando o vira pela primeira vez no dia de seu nascimento.
- MÃE! – Gritou ele, sem conseguir conter a emoção que desaguou como uma torrente de dentro de si. De um pulo levantou-se da poltrona e correu em direção à cama, saltando sobre a mãe que soltou um leve gemido quando o peso do filho recaiu sobre seu corpo machucado.
- Calma menino. Assim você acaba comigo. – Disse ela, com uma voz ainda fraca e arrastada, mas que aos ouvidos do filho soou como a coisa mais bela que já ouvira na vida.
Ele olhou para a mãe, lembrando-se de como sua voz era doce, mas também dando-se conta do quanto ela ainda estava machucada, e imediatamente saltou da cama e ficou sem saber o que fazer. Queria gritar, queria abraça-la, queria correr e avisar para todo mundo o que estava acontecendo, mas tudo o que conseguia era ficar ali, parado, com um sorriso no rosto, sem perceber que lágrimas de alegria escorriam livremente por sua face.
Então foi retirado daquele estado quando viu o pai entrando repentinamente no quarto, e viu a expressão de incredulidade e confusão do homem ao ver que a esposa o fitava com um sorriso no rosto.
- O que... o que... mas o que está acontecendo?
Ele correu em direção à mulher, apalpando-a, conferindo os cabos, os fios e os números que desfilavam pelas telas dos aparelhos. Pegou o pulso dela, deitou o ouvido em seu peito, e antes que pudesse ter a oportunidade de examiná-la de alguma outra forma, ela segurou sua mão e disse:
- Um beijo agora seria ótimo.
Ele sorriu, e sentiu como se um peso tivesse sido retirado de seu peito. Lágrimas enormes caíram de seus olhos e ele a beijou, sentindo como se a estivesse beijando pela primeira vez. E o garoto sorria extasiado ao ver aquilo, ainda indeciso sobre o que fazer, mas ao mesmo tempo certo do que faria dali para frente.
- Mas o que... isso é... isso não é possível. – O marido dizia, em um misto de felicidade plena e incredulidade absoluta. - Como? Como? Você estava morta. Eles disseram. Eles viram...
- Eu que vi. – Ela o interrompeu. – Eu o vi!
- Quem? Quem?! – Ele perguntava, ainda apalpando o corpo dela, para ter certeza de que não se tratava de uma alucinação.
- ELE! ELE disse que eu devia voltar. Que eu receberia um presente... um presente do nosso filho.
Então ambos voltaram o olhar para o garoto, e todos se entreolharam sem saber o que falar, com as palavras presas na confusão que tomava seus pensamentos, estado do qual foram retirados quando dois outros médicos entraram no quarto. Os homens pararam de imediato com os olhos arregalados, parecendo duas estátuas cunhadas em um momento de susto. Tinham sido eles que haviam dado o diagnóstico de morte cerebral à mulher, e agora paravam ali, estarrecidos com o que viam.
Depois de horas de entra e sai no quarto que tornou-se a sensação do hospital naquele natal, a família finalmente teve um tempo para reunir-se e assimilar tudo o que tinha acontecido. O pai ainda estava atônito e incrédulo, mas feliz como nunca estivera, e a mãe fitava alegre os dois filhos que a cercavam, sem dar-lhe espaço para descanso.
- Eu ainda não acredito. – Disse o marido, olhando para ela como se visse algo de outro mundo. – É simplesmente impossível.
- Tudo é possível ao que crê. – Respondeu a mulher, enquanto afagava os cabelos da filha. O homem revirou os olhos, dando a entender a ela o que achava daquilo.
- Foi isso o que o médico que veio aqui de madrugada falou. – Disse o garoto, fitando a mãe espantado. – Você já estava acordada naquela hora mãe?
- Que médico? – Perguntou o pai.
- O que veio aqui de madrugada. Ele estava parado aí, nesse mesmo lugar que você está.
- Nenhum médico me disse ter vindo aqui de madrugada, e só tinham dois de plantão nessa ala. Como ele era?
- O quarto estava escuro e eu não vi direito o rosto dele. Mas deu pra ver que tinha barba, uma barba que não era nem clara e nem escura. Não sei dizer. E os cabelos eram do mesmo jeito, mas um pouco grandes.
- E ele disse que era médico?
- Quando eu perguntei ele disse que podia-se dizer que sim. Mas estava usando um jaleco como o seu pai, só tinha uma diferença, ele era bem maior. Ia até o chão, e estava amarrado na cintura, e não aberto, como você usa toda vez que vem pra cá.
Os olhos do homem correram em direção à esposa, e se espantaram quando a viram olhando seriamente para o menino, como se tivesse descoberto algo que estivera oculto até então.
- Tinha mais uma coisa. – Continuou o garoto. – Que só vi quando ele estava indo embora. Tive vontade de perguntar o que era, mas pensei que ele ia ficar chateado.
- E o que foi? – Perguntou a mãe, com a seriedade expressa na voz.
- As mãos dele. As duas. Tinham cicatrizes, como se fosse um ponto redondo em cada palma.
O homem fitou a esposa, e viu lágrimas brotando dos olhos dela. O menino continuou:
- Antes de ir embora ele olhou pra mim e falou exatamente isso que você disse mãe. Mas tinha mais coisa. Não consigo lembrar o que era.
- “Se tu podes crer, tudo é possível ao que crê”. – Disse ela, com a voz embargada.
- Isso! – Respondeu o garoto com euforia. – Então você estava mesmo acordada não era? E não me disse nada mãe. Isso não foi legal.
- Eu não estava acordada meu filho. Eu estava dormindo. Mas acho que mesmo dormindo eu ouvi o que ele falou. – E com o braço que não estava quebrado puxou lentamente o garoto, dando-lhe um abraço e um beijo enquanto lágrimas desciam de seus olhos.
O pai então levantou-se, sério, com a face petrificada, ainda sem acreditar no que via e no que ouvira. Era ateu desde que tinha lembrança, e aquelas coisas que a mulher tanto admirava nunca tinham feito sentido algum para ele, e não era agora que começariam a fazer.
- Eu..., eu vou na recepção. Preciso pegar a escala dos médicos e descobrir quem é esse rapaz que veio aqui.
- Eu acho que você sabe quem é. – Disse a mulher, com os olhos brilhando para ele, que devolveu-lhe o olhar de incredulidade que sempre fazia quando ouvia aquelas coisas. Mas antes de sair aproximou-se dela, beijou-a novamente e disse:
- Eu amo você. Nisso eu acredito.
Depois de rodar o hospital dando a descrição que o filho lhe passara e recebendo sucessivos nãos quando perguntava se alguém com aquela aparência trabalhava ali, ele desceu até o corredor de entrada, querendo sair e tomar um pouco de ar para assimilar tudo o que estava acontecendo. Mas ao chegar próximo à porta ele viu algo que o fez parar.
A porta de entrada do hospital estava aberta, e o sol do fim da tarde batia no piso branco, turvando um pouco sua visão, mas ainda assim ele pôde ver alguém que batia precisamente com a descrição que o filho dera. Um homem com cabelos longos, de barba e roupa branca estava agachado na frente de uma criancinha sem cabelos, provavelmente uma paciente com leucemia.
O homem conversava com a menina e sorria para ela, que também sorria alto em resposta, e ao ver aquilo seu peito encheu-se de algo que não lembrava de ter sentido antes.
Então aquele homem levantou-se e o fitou do modo como só os amigos que não se veem há muito tempo se olham quando se reencontram. Um olhar de quem sentia saudade, e de quem estava feliz em revê-lo.
Mas antes que pudesse ir até aquele estranho que repentinamente lhe pareceu ser um velho conhecido, ele ouviu uma voz de criança soando atrás de si.
- Obrigado. – Disse a voz. – E quando virou-se viu ali o seu filho, que também fitava o homem no fim do corredor. Quando o pai voltou-se novamente para a entrada já não havia ninguém lá, apenas a luz do sol que irradiava pelo mundo no fim daquela tarde. E então ele soube. Soube o que nunca soubera em toda sua vida, e sentiu as pernas tremendo e o coração batendo mais forte. Lágrimas desceram de seus olhos, e tudo o que conseguiu fazer foi ir em direção ao filho e abraça-lo, como nunca o abraçara em toda sua vida.
Lá fora, o homem via tudo de longe, com um largo sorriso no rosto. Estava feliz. Era natal. Era seu aniversário, e naquele dia recebera um presente único. Um presente de fé.
Feliz Natal.